Regressar ao mundo das Jóias Negras é como voltar, mais uma vez, a entrar numa casa muito querida e muito especial, reencontrar personagens que, de forma muito pessoal, se tornaram quase parte da família e voltar a conhecer ternura, emotividade e diversão num cenário que, apesar do ambiente obscuro, desperta uma empatia que se torna inesquecível. Este livro encerra um ciclo - ou marca, pelo menos, uma ausência de algum tempo - e fá-lo criando, em cada história, uma sensação de finalidade e, em certa medida, de conforto, que, apesar do vazio que, inevitavelmente, fica depois da leitura, deixa também a impressão de que tudo acabou da melhor forma possível. Mas vamos por partes.
Abrindo de uma forma divertida e descontraída, Prendas de Winsol apresenta os preparativos da primeira celebração do Winsol com Daemon Sadi como verdadeiro soberano de Dhemlan. E o que marca nesta história é principalmente a visão enternecedora da intensidade nos laços que unem a família SaDiablo. Terno, emotivo e com momentos deliciosamente divertidos, a história reflecte, acima de tudo, o amor nos seus múltiplos aspectos. Apresenta ainda uma maravilhosa visão do quotidiano no Paço, bem como das relações familiares. Delicioso do princípio ao fim, com vários momentos comoventes e um final cheio de ternura.
Em Cambiantes de Honra o tom torna-se bem mais sério. A história é a do retiro de Surreal em Ebon Rih, numa tentativa de recuperar dos acontecimentos da casa arrepiante. Mas quando alguém se atreve a questionar a autoridade de Lucivar Yaslana, a reacção necessária será dura e precisa. Mais complexo que o anterior, também num tom mais sério - como o exigem os acontecimentos - e também algo soturno na visão das inevitáveis consequências associadas a cada grande acontecimento. Reflexão acerca de como tudo na vida deixa cicatrizes, no corpo e na alma, é também uma história envolvente, com momentos emotivos e que levanta algumas questões interessantes, nomeadamente na questão da raça. Também presentes os deliciosos laivos de humor por entre a seriedade geral, numa história que revela muito de Lucivar, mas também de Surreal e que, num final marcado pela justiça na sua máxima crueza, mostra as personagens de sempre no seu melhor.
Família parte de uma cilada armada à Rainha Sylvia e aos seus dois filhos, numa situação que colocará em alerta toda a família SaDiablo. Nesta história, é na tensão e na necessidade de agir que se encontra o destaque. Intensa e envolvente, revela, mais uma vez, a força dos laços familiares quando uma acção é necessária, sendo impressionante a forma como união e preocupação transparecem nos actos de cada personagem. Interessante, mais uma vez, o contraste entre a sobriedade geral e os pequenos momentos de humor, e particularmente bela a forma como o conforto da fase final prepara território para o que virá a seguir.
De A Filha do Senhor Supremo é difícil falar sem dizer demasiado. Aqui, a autora coloca Daemon perante o máximo de perda na sua vida, numa história de dor e de recuperação perante o inevitável. Os factos dolorosos são apresentados sem prelúdios, causando inicialmente choque, e depois a aceitação quase inconsciente causada pela simplicidade com que a autora apresenta os grandes momentos. Marca, principalmente, a visão de Sadi no seu mais vulnerável (mas também no mais terno), a sua posição num percurso que, marcado por uma grande emoção, se torna quase doloroso de seguir. É muito o que acontece. O espaço temporal é vasto para um texto relativamente curto, mas, ainda assim, permanece a intensidade. Há, também, um marcado contraste entre momentos de quase leveza e a agonia de uma mágoa excruciante, dois mundos em colisão na chegada de uma nova vida, na prova de que tudo tem um preço. Fica desta história a revelação de um novo lado de personagens já por demais conhecidas, a descoberta de uma nova forma de amor, a importância da família e os inevitáveis paralelismos entre passado e futuro. Fica a inevitável sensação de que se fechou um ciclo e, de uma forma comovente, ao mesmo tempo dolorosa e fascinante, a mensagem que fica é a de que a memória prevalece sempre.
Impõe-se ainda, e mais uma vez, uma breve referência ao excelente trabalho de tradução de Cristina Correia que, mais uma vez, nos traz a voz e o mundo de Anne Bishop em toda a sua sombria glória.
Terminada esta leitura, a impressão que fica é a de uma despedida inconsciente a personagens que se tornaram parte de um mundo muito pessoal. Talvez venha a existir um regresso ao mundo das Jóias Negras, mas houve muito que acabou aqui. E o que fica deste longo percurso de sombras, de amor e de sonhos obscuros é este vazio estranhamente reconfortante, esta certeza de que a história que conquistou e fascinou fica agora para trás. Mas a memória... essa ficará para sempre.
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