De uma ponte que é quase uma casa e de um grupo de jovens divididos entre uma vida familiar disfuncional, um conjunto de relações algo indefinidas e a companhia do álcool como refúgio possível. Assim se poderia definir a base do que constitui este livro. E isto bastaria para deduzir que, apesar da sua brevidade, a história contada nas pouco mais de cem páginas de Os Cães será tudo menos simples. Mas, entre ligações que não são bem de amizade, mas que estão muito longe do conceito clássico de amor, interacções familiares que são de tudo menos de protecção e de ternura e de actos de convivência em que o único ponto comum parece ser a satisfação de um vício, há toda uma base de material para reflexão que torna este pequeno livro inesperadamente complexo. Mas vamos por partes.
Algo que impressiona desde as primeiras linhas é a escrita. Há uma muito interessante conjugação entre a relativa simplicidade com que o autor descreve os acontecimentos, de forma sucinta, sintética, e a forma como, também em poucas linhas, atribui às suas personagens reflexões de uma inesperada complexidade. Os temas são universais - a mortalidade, o envelhecimento e a forma como a passagem dos anos exerce mudanças sobre cada indivíduo, mas também a forma como o mundo em volta condiciona o processo de crescimento - , mas a abordagem é muito particular. Muitas das reflexões surgem a partir dos actos - inspiradas por estes às personagens, ou até evocadas pela simples narração do acontecimento. O resultado é que mesmo as situações de maior estranheza acabam por se enquadrar na perfeição no que parece ser a mensagem global.
A esta base muitíssimo bem conseguida juntam-se ainda dois outros aspectos. Um deles é o desenvolvimento das personagens, percorrendo em segmentos curtos o caminho das suas vidas e entrelaçando memórias para definir aquilo que, de bom ou mau, os define no tempo presente. O outro é a criação de momentos de grande intensidade, dos quais se destacam os descritos nas primeiras e nas últimas páginas. Estas situações de maior impacto emocional contribuem também para estabelecer um bom equilíbrio entre o lado mais introspectivo e o lado emocional que cria uma certa empatia.
Trata-se, portanto, de um livro que conjuga da melhor forma os seus múltiplos aspectos. Escrita aparentemente simples, mas com momentos quase poéticos que realçam a complexidade do conteúdo. Momentos de forte intensidade emocional a equilibrar um lado introspectivo em que as reflexões surgem dos actos. E um cenário onde o percurso das personagens que o habitam é caracterização suficiente para definir as complexidades da vida. Tudo isto faz de Os Cães uma obra impressionante. Muito bom.
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