terça-feira, 16 de agosto de 2011

As Naves de Calígula (Maria Grazia Siliato)

Os que contaram a sua história descreveram-no como um louco sanguinário. Mas ele era um homem com um sonho. Desde criança marcado pelas consequências de intrigas e condenações, Caio César descobriu-se na necessidade de parecer dócil e lento de raciocínio para preservar a própria vida. E a imagem que construiu, tal como a linhagem do seu sangue levou-o ao poder. Um poder que, tal como a sua ambição de criar a paz no império, se viria a revelar fatal.
O grande sucesso na construção desta história, aquilo que realmente marca nesta leitura, é, sem dúvida, a construção da personagem de Calígula. Contrariamente aos que criaram a reputação do imperador, a figura que a autora nos apresenta é, acima de tudo, um homem. Partindo de uma infância traçada nas linhas do sonho e, depois, da destruição, Maria Grazia Siliato molda a personalidade do seu protagonista através das suas experiências e sentimentos. A impotência ante progressivas perdas, a necessidade de se fingir néscio para se evadir à morte e, mais tarde, a ilusão de ingenuidade que lhe conquistaria o poder imperial, fazem de Caio César uma figura solitária, por vezes atormentada por dúvidas, mas radiante e intensa nos seus sonhos e ideais. Humana, em suma, com todas as suas forças e vulnerabilidades.
Esta construção gradual, juntamente com a relevância dada aos dados familiares, tornam o ritmo da narrativa um pouco lento. Principalmente na fase inicial, a apresentação dos múltiplos acontecimentos que marcaram as perdas na família de Caio César (e até na história dos seus antecessores) fazem com que a história avança de forma pausada, crescendo aos poucos, tal como o seu protagonista. Ainda assim, este aspecto é amplamente compensado pela força dos grandes momentos e pelo impacto que estes exercem quer sobre o protagonista, quer sobre os que, de uma ou outra forma, a ele estão ligados.
Ainda de referir a forma como a autora demonstra, em diversas circunstâncias, o poder do rumor e do escândalo no que toca à destruição de um homem. O contraste entre o sonho de Calígula e a quase revolta com que o Senado reage às suas intenções, tanto em palavras como em actos, representa na perfeição a ténue linha onde, entre domínio e traição, o poder se sustenta, enquanto acto solitário.
Interessante nos aspectos históricos, cativante no essencial da narrativa, mas impressionante, principalmente, pela construção da personalidade de Calígula, pode não ser um livro de leitura compulsiva. Mas fica, sem dúvida, na memória.

1 comentário:

  1. Cara Carla Ribeiro:
    O comentário vai distante, quase desfasado no tempo, que só agora, por mera casualidade, o seu blogue me passou pelos olhos. Também eu li o livro de Maria Grazia Siliato e para além daquilo que a Carla expressa na sua interpretação e comentário, com os quais concordo no geral, penso que falta referir o essencial e que porventura nunca iremos esclarecer: - a forma hedionda, sinistra e perversa como se destrói a imagem de um homem, que, possivelmente, e à imagem dos pais que o educaram e sobretudo Agripina, a mãe que o acompanhou mais de perto, seria mais do que um homem normal, um ser sensível a quem são atribuídos (com a cumplicidade dos historiadores romanos da altura, mas não contemporâneos, como Tácito e Suetónio, que nasceram bem depois de ele ter sido assassinado) defeitos e actos monstruosos, que muito possivelmente não praticou. É esse o verdadeiro mistério que Maria Grazia tenta descortinar, apoiando-se no poder destrutivo do rumor, da maledicência e na intenção clara de destruir. Não creio que um Império que durou mais de 1100 anos no Ocidente e cerca de 2000 se contarmos com Constantinopla (que não nasceu ao mesmo tempo mas é a continuidade natural do Império Romano), possa ter subsistido com imperadores brutais como aqueles que a História refere. Não que não houvesse brutalidade, aos olhos do que hoje pensamos, mas certamente ela não pode ter sido apoiada pelos homens que deram corpo ao Direito Romano, que ainda hoje é a base de partida em que a nossa Civilização se estriba. Sobretudo porque ele não teve tempo, apenas 4 anos como imperador, não lhe deram tempo para, defendendo-se dos ataques obscuros e malévolos de certos senadores que assistiam preocupados à ascensão do "garoto" que eles pensavam poder controlar. De resto, foi o primeiro imperador a publicar um documento com os registos das despesas que realizara, algo de inédito naquele tempo; os afectados pelos incêndios, vulgares em Roma, sobretudo na Suburra, foram ajudados; aboliu alguns impostos e apoiou os eventos desportivos e os espectáculo no Grande Circo. Sendo imperador, pretendeu voltar a instituir eleições democráticas, o que seguramente foi o o processo que o condenou em definitivo, pois punha em causa muitos direitos que se consideravam garantidos.
    Vivemos hoje um tempo em que a insistência na mentira e a distorção dos factos vai tendo sucesso e impondo cada vez mais uma tirania no pensamento que se pensava já não ser possível. E isto da forma mais descarada, contando com o silêncio assustador e cúmplice, dos que tinham a obrigação moral de defender a Verdade. Repetem-se de algum modo os tempos e cada vez mais me convenço da importância de tentar descobrir o que de facto aconteceu. Aceito, a caminho de acreditar, que Caio César (Calígula) foi apenas a primeira vítima deste processo infame que destrói a imagem de pessoas perigosas (para alguns) e diviniza e entroniza medíocres e mentecaptos em benefício dos mesmos.
    Os melhores cumprimentos
    A. Teixeira-Pinto

    ResponderEliminar