domingo, 30 de junho de 2019

A Distância Entre Nós (Rachael Lippincott, Mikki Daughtry e Tobias Iaconis)

Stella sabe que viver com fibrose quística significa uma esperança de vida mais curta do que o normal, mas está disposta a fazer todos os possíveis para se manter viva o máximo de tempo possível enquanto espera pelo seu transplante pulmonar. Mas a mesma determinação que a leva a dedicar-se a fundo ao combate à doença tornou-a também obcecada pelo controlo. Por isso, quando conhece Will, um rapaz com a mesma doença, mas com uma infecção a agravar o seu prognóstico, o desinteresse dele em realizar os tratamentos tira-a do sério. Acaba, por isso, por dar por si involuntariamente interessada no que ele faz. Só que esse interesse é recíproco. E, à medida que começam a conhecer-se, a distância obrigatória de um metro e oitenta entre ambos - a fim de evitar qualquer contaminação - começa a tornar-se demasiado grande.
Basta conhecer a premissa deste livro e a situação em que os protagonistas se encontram para prever duas coisas acerca desta história: uma inundação de emoções e uma grande reflexão sobre o facto de a vida não ser algo tão certo como às vezes pensamos. Stella e Will são jovens com a certeza de uma morte prematura às costas e basta este facto para fazer com que esta história deixe a sua marca.
Mas, se a premissa é marcante em si mesma, a forma como os autores constroem a história a partir dela é algo de impressionante. Há todo um crescimento a acontecer, não só a nível das personagens e das suas relações, mas da visão que o livro transmite sobre a fibrose quística. E, tal como é inevitável chegar ao fim a saber muito mais sobre o tema, é também inevitável o percurso que vai da ligeira irritação que Will e Stella despertam - à sua maneira - no início da história ao profundo e devastador impacto dos últimos capítulos. Pelo caminho, estes miúdos tornaram-se mais que miúdo: tornaram-se heróis nas suas batalhas pessoais, falíveis e imperfeitos na forma como encaram uma situação imaginável, mas mais corajosos e humanos por isso. E há tanto a aprender com estas personagens - e tanto a descobrir sobre a vida.
Emoção não falta, é um facto, e há vários momentos de ficar com o coração nas mãos ou de lágrimas nos olhos. Mas há também um equilíbrio delicioso e contraste entre estes momentos mais dramáticos e a leveza das situações divertidas, dos momentos constrangedores ou da cumplicidade crescente que se vai manifestando, não só entre os protagonistas, mas também com aqueles que os rodeiam. Isto é particularmente notável não só porque permite uma assimilação mais fácil dos aspectos mais trágicos da vida das personagens e da sua convivência com a doença, mas também pelo muito que mostra da vida para lá da doença. Desde os momentos partilhados entre Stella, Will e Poe à relação com os funcionários do hospital, expandindo-se também às relações familiares e de amizade e à partilha de memórias boas e más, há em cada desenvolvimento algo de marcante para descobrir e isso tanto pode ser uma grande perda como a simples percepção de que, enquanto durar, a vida continua.
É, pois, no fundo, um poço de emoções. Um elogio à vida, à juventude e à descoberta do amor mesmo perante os mais terríveis obstáculos. E uma história cativante, surpreendente, repleta de momentos ternos e comoventes e com um equilíbrio tão delicado entre o humor e a emoção - ou, literalmente, entre sorrisos e lágrimas - que é difícil não guardar um lugar no coração para estas personagens uma vez terminada a leitura. Notável, em suma. E muito, muito marcante.

Autores: Rachael Lippincott, Mikki Daughtry e Tobias Iaconis
Origem: Recebido para crítica

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sábado, 29 de junho de 2019

Lenguluka (Onofre dos Santos)

Em tempos, os portugueses espalharam-se um pouco por todo o mundo. Agora, o padrão inverteu-se e Portugal foi povoado por uma série de comunidades de diferentes origens e costumes, mas que convivem em grande harmonia e com uma organização bastante eficiente. Só que a paz alcançada pelo equilíbrio entre as diferentes comunidades pode não ser tão sólida como parece. Basta um problema pessoal para pôr tudo em causa. Quando um jovem angolano vê a namorada cabo-verdiana trocá-lo pelo seu professor português, surgem os primeiros sinais do que pode acabar numa guerra pelas ruas. Por isso, os líderes das diferentes comunidades têm de tomar medidas, transformando o triângulo amoroso num problema nacional.
Embora situado num futuro imaginário, é na naturalidade com que os elementos diferentes se conjugam com a nossa realidade que está a faceta mais memorável deste livro. Se a transposição para um Portugal multicultural, povoado por comunidades étnicas autónomas em convívio harmonioso, está ainda longe do presente onde prevalecem ainda uns quantos preconceitos, a forma como a situação principal é gerida tem muito em comum com os nossos dias: desde a aparente separação de poderes (que, às vezes, precisa de ser contornada) ao direito à manifestação (mas, se possível, sem incomodar muito), é possível reconhecer nas altas instâncias deste cenário futuro certos comportamentos e ideias que facilmente encontraríamos nos jornais e redes sociais dos dias de hoje. Cenário diferente, portanto, mas com muito que permanece igual, abrindo assim espaço também para uma interessante crítica à sociedade presente.
Trata-se de um livro relativamente breve, ficando às vezes a sensação de que alguns momentos (como, por exemplo, o julgamento de Tomás Silveira) podiam ter sido um pouco mais desenvolvidos. Mas, curiosamente, também esta brevidade faz algum sentido, já que é um caso particular que serve de base a uma movimentação mais ampla. A história de Teresinha, Nelson e do professor Tomás Silveira não é apenas a tal história de amor a alta velocidade descrita na capa. É um acontecimento que abala o contexto político do seu tempo, fazendo todo o sentido que os percursos individuais se esbatam, por vezes, em nome do contexto global.
E, claro, neste livro todo ele de contrastes, há ainda um último a destacar: o contraste entre um ritmo relativamente pausado, em que longas descrições do contexto se tornam essenciais para compreender certas movimentações, e a leveza resultante da estranheza que paira sobre todos os acontecimentos. É uma ideia peculiar, afinal, a de uma relação amorosa capaz de abalar um país inteiro. E esta premissa inesperada torna tudo estranhamente divertido, mesmo quando as questões que surgem impõem uma certa seriedade ao tema.
Breve e invulgar, leve, mas estranhamente complexo, trata-se, pois, de um livro que conjuga um futuro não muito distante com várias questões marcantes do presente. E que, através do equilíbrio entre uma estranha história de amor e as meandros de uma política distinta, mas com muitos pontos em comum com as dos nossos dias, proporciona, ao mesmo tempo, uma leitura divertida e uma série de bases para reflexão. Vale a pena, pois, embarcar nesta viagem a alta velocidade. Sem dúvida.

Título: Lenguluka
Autor: Onofre dos Santos
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 28 de junho de 2019

O Sapinho Green (Joana Gonzalez, Lisa Maciel Toth e Raquel Santos)

De manhã bem cedo, o sapinho Green começa o seu dia em harmonia com a natureza. Cada movimento é uma experiência revigorante, mas tem também experiências para partilhar com os seus amigos. De visita a uma árvore, aprende os seus segredos. Ao conversar com os irmãos, ensina-lhes uma posição harmoniosa. E, ao chegar a noite, encontrar a serenidade na contagem das inúmeras estrelas no céu. Cada posição tem um significado - e, sem nunca o dizer directamente, os movimentos do Green são os movimentos do yoga.
Provavelmente o aspecto mais interessante deste livro é que, embora assente nos fundamentos e orientado segundo as posições essenciais do yoga, não exige um grande conhecimento sobre o tema para ser devidamente apreciado. Na verdade, ao apresentar os gestos como eles são, sem explicações elaboradas, a tal harmonia que o Green tem com a natureza acaba por fluir de forma mais simples e natural. Não é preciso saber que se trata de yoga para perceber as ideias da história, até porque a intenção parece ser a do percurso contrário: a de um ponto de partida para a descoberta.
É um livro pensado para os mais novos e perfeitamente capaz de os cativar. À história simples e divertida juntam-se as ilustrações bonitas e cheias de cor - de verde, principalmente - que, além de tornarem a leitura mais divertida, permitem uma melhor visualização das diferentes posições. E, claro, é esta mesma combinação de cor e descontracção que faz com que o livro não cative apenas os mais pequenos: há algo de particularmente cativante  -e, porque não dizê-lo, de fofo - no sapinho que protagoniza esta história, e que é capaz de arrancar sorrisos a leitores de todas as idades.
E há ainda outro aspecto, que é particularmente relevante sendo um livro infantil, mas que acaba por um efeito curioso nos leitores mais velhos que possam não estar tão familiarizados com o yoga. É que, quando pensamos em yoga, imaginamos, talvez, uma filosofia complexa, cheia de conceitos estranhos e de exercícios peculiares... E depois vamos nesta aventura com o Green e descobrimos que, afinal, talvez as coisas sejam mais simples do que parecem. O resultado é, claro, uma nova vontade de saber mais.
Simples, cativante e muito bonito: são estas as principais características de um livro que, com o seu registo descontraído e a naturalidade com que introduz ideias e posições numa história que, à primeira vista, nada tem de complicado, consegue despertar curiosidade e também sorrisos. Um bom livro, em suma, e um belo ponto de partida para descobrir o yoga.

Título: O Sapinho Green
Autora: Joana Gonzalez, Lisa Maciel Toth e Raquel Santos
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Raparigas Como Nós (Helena Magalhães)

Quando tinha catorze anos, Isabel viveu um grande - e não correspondido - amor por um colega mais velho e passou os anos seguintes a comparar todos os rapazes com ele. Mas as coisas estão prestes a mudar, quando numa discoteca, conhece um amigo do namorado da sua melhor amiga. Isabel não é propriamente a maior fã do Ventura, mas quando o seu caminho se cruza com o de Afonso começa a ver o porquê daquela apresentação. Ambos um pouco desenquadrados, nenhum deles parece pertencer àquele mesmo grupo que os juntou. E Afonso acaba também de protagonizar um momento dramático. Instantaneamente atraídos um para o outro, começam a descobrir-se aos olhos um do outro. Mas na juventude nada é para sempre, e os altos e baixos do amor são ainda mais irregulares...
Chama-se Raparigas Como Nós e uma das primeiras coisas a sobressair da leitura é que o título lhe assenta como uma luva. Provavelmente terá mais impacto para quem sempre viveu num meio citadino, com o mundo das festas, das discotecas e da praia ali ao virar da esquina. Ainda assim, e mesmo quando o ambiente não é assim tão familiar, há uma sensação quase imediata de proximidade com aquela jovem para quem cada ano parece uma eternidade e cujo amor de adolescência definiu os padrões para todos os relacionamentos. Há como que um delicado equilíbrio de inconsequência e dramatismo que retrata na perfeição os anos da adolescência, aqueles em que tudo é uma tragédia ou então nada tem assim tanta importância (conforme o estado de espírito).
Não se pense, porém, que é apenas uma leitura ligeira. Não. Por detrás das festas, da diversão, da partilha de momentos ternos e engraçados com namorados ou amigos, há um conjunto de questões mais profundas e marcantes, que vão desde o simples processo de crescimento e de que a vida é muito mais dura e complicada do que julgamos a uma análise particularmente certeira do mundo das drogas, passando ainda pelas mudanças de ciclo associadas a ir para a universidade ou trabalhar, pela descoberta de que uma relação vive de mais do que apenas amor e de que todas as escolhas têm consequências. Há muito material para reflexão e tudo se torna mais marcante pelo facto de haver também pontos em comum: já todos passamos pela fase em que tudo é novo. E todos tropeçamos, de uma forma ou de outra.
Mas, claro, pontos em comum à parte, trata-se de um romance e de uma história muito específica. Uma história que leva a protagonista a crescer, mas que também a faz passar por uma sucessão de grandes e pequenos momentos. Começa num registo aparentemente descontraído, que vai crescendo em emoção e intensidade para culminar num final poderosíssimo. E há sempre uma empatia, potenciada talvez pelo facto de a história ser contada pela voz de Isabel, mas também pelo equilíbrio entre o humor e a emoção, entre os momentos dolorosos e as descobertas que iluminam um dia.
É uma rapariga muito específica, sim, mas uma rapariga como nós - com os seus sonhos, anseios, paixões e desilusões. E é esta, acima de tudo, a marca que fica deste tão cativante livro: a sensação de que a história de Isabel é única, mas fala directamente a certas partes de nós. Emotivo, envolvente e cheio de momentos marcáveis, um livro para recordar, em suma. Muito bom.

Autora: Helena Magalhães
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Get Jiro! Todos Querem Apanhar o Jiro (Anthony Bourdain, Joel Rose e Langdon Foss)

Num futuro em que a cultura da comida se tornou a força motriz do mundo e o poder está dividido entre dois grandes chefs que controlam a vida e o sucesso de todos os restantes, o recém-chegado Jiro parece ser uma incógnita. Mas a facilidade com que despachou um cliente que ousara cometer uma verdadeira heresia contra o sushi desperta o interesse das duas facções em conflito. Habituados a obter o que querem, abordam-no de todas as formas para o tentar convencer a juntar-se a eles. Mas Jiro tem uma visão diferente - e um plano bem traçado para lidar com os seus aliciadores.
Tendo em conta o nome do autor, não é propriamente uma surpresa que a história deste livro gire em torno da culinária, embora o que nasce deste tema seja, de facto, muito surpreendente. É, aliás, o aspecto mais intrigante deste livro: a construção de um mundo assente nas artes culinárias, transpondo para este mundo as facetas mais sombrias das manipulações dos poderosos e, ao mesmo tempo, analisando certos comportamentos e preconceitos que, embora com consequências menos mortíferas, existem também no mundo real.
É também um livro que abrange um ciclo completo. Embora exista um segundo volume, a linha central deste livro tem princípio, meio e fim, partindo da entrada em cena do misterioso Jiro e evoluindo depois para as fases do aliciamento, do conflito e da revolução. Há, na verdade, tanto a acontecer e tantos elementos a explorar que este volume poderia facilmente ter dado origem a uma série inteira. Ainda assim, se certos aspectos poderiam ter sido mais desenvolvidos (principalmente no que toca à fase final), também é certo que não há nada de essencial que não esteja presente e que a forma como tudo termina é perfeitamente adequada ao percurso das personagens.
Há ainda um último aspecto que importa destacar: sendo um mundo dominado pela comida e em que grande parte das personagens são chefs, é apenas de esperar que estes elementos dominem não só a história, mas a representação dos locais. Cenários como o mercado de peixe, as zonas periféricas onde domina a comida de plástico e até a estranha e perigosa serenidade do restaurante de Jiro, com a sua dedicação ao sushi tradicional, tornam-se mais vivos pela imagem precisa e peculiar que lhes é dada através da arte. É, aliás, delicioso olhar para um dos planos mais vastos e detectar pequenos pormenores - como o bonequinho gordo no semáforo, por exemplo - que, embora discretamente, parecem também funcionar como uma crítica.
Somados todos estes aspectos, o resultado é uma história surpreendente, cheia de acção e de intriga e que transpõe para o percurso das personagens os mais peculiares aspectos do mundo da gastronomia. Cativante, visualmente muito apelativo e cheio de bons momentos, uma boa leitura.

Título: Get Jiro! Todos Querem Apanhar o Jiro
Autores: Anthony Bourdain, Joel Rose e Langdon Foss
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 25 de junho de 2019

Um Trono Negro (Kendare Blake)

O Ano da Ascensão começou e todos sabem que só pode terminar de uma maneira: com duas rainhas mortas e a terceira coroada. Por isso, as três rainhas e os seus aliados põem em jogo todos os meios de que dispõem para tentar fazer com que seja a sua rainha a vencedora. Mas este não é um ano como os outros. Katharine regressou do que deveria ter sido morte certa bem diferente e muito mais implacável do que a rapariga frágil do ano anterior. Arsinoe descobriu um segredo que condiciona inevitavelmente o seu papel nas hostilidades. E Mirabella, inicialmente relutante, vê-se agora movida à acção pelo que julga ter sido um ataque da irmã. Cada uma tem os seus motivos e os seus planos, mas a vontade da Deusa não é tão clara como todos parecem pensar. E a luta até à morte que todos prevêem pode muito bem tomar um rumo diferente...
Com a sua história intensa, as suas personagens marcantes e um cenário cheio de peculiaridades fascinantes, este é um daqueles livros que, à semelhança do anterior, cativam desde o início e não deixam de surpreender até ao fim. Já o final do anterior prometia muito de bom para os desenvolvimentos e a verdade é que este segundo volume supera todas as expectativas, tanto ao nível de acontecimentos inesperados como do crescimento e mudança das personagens principais.
Katharine, Arsinoe e Mirabella já não as mesmas personagens que conhecemos no primeiro volume: o caminho mudou-as. E essa é uma das grandes qualidades deste livro, a capacidade de gerar sentimentos fortes e de os ir moldado ao ritmo dos avanços da história. Há sempre uma empatia forte, mas nem sempre é a mesma rainha o alvo dessa empatia. E, tal como há uma teia de intrigas a rodear os diferentes intervenientes, há também uma complexa teia de emoções intensas, sejam elas de proximidade, ressentimento, afecto ou aversão, em que umas se transformam nas outras, abrindo espaço a novas possibilidades.
É a força das personagens, rainhas e não só, que dá força ao enredo, pois cria uma proximidade que torna irresistível a vontade de saber o que acontece a seguir. Mas também o fluir da história contém em si muito de bom, desde os grandes confrontos aos rasgos mais emotivos, passando pela forma como o mundo e as regras que o regem parecem ir-se ajustando às suas estranhas rainhas. Há toda uma vastidão de momentos impressionantes ao longo deste percurso. Percurso esse que continuará, pelo que inevitavelmente ficam muitas questões em aberto, mas que atinge no final deste livro um ponto de viragem que é, ao mesmo tempo, uma conclusão satisfatória e uma promessa do muito que está para vir.
Com um cenário tão fascinante como as personagens que o povoam, trata-se, pois, de um segundo volume que supera amplamente as altas expectativas geradas pelo primeiro, prometendo ainda melhor para a parte que falta contar. Intenso, viciante e cheio de surpresas, um livro que recomendo sem reservas.

Título: Um Trono Negro
Autora: Kendare Blake
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 24 de junho de 2019

A Revolta de Atlas - Volume 1 (Ayn Rand)

Quem é John Galt? De uma questão genuína, esta pergunta passou a ser expressão de inevitabilidade, de desespero, da incompreensibilidade da vida. Há, no entanto, muito a acontecer no mundo e uma ordem social onde os valores se tornaram um obstáculo a eliminar. No centro de tudo isto, está Dagny Taggart com a sua ambição de salvar a empresa familiar, de construir algo que nunca antes foi feito e de obter com isso o máximo lucro possível. No poder, porém, parecem estar adversários que não compreendem a sua ambição, dispostos aparentemente a sacrificar tudo em nome de princípios que, para ela, são incompreensíveis. Ainda assim, talhada para o sucesso contra tudo e contra todos, Dagny não está disposta a desistir.
Descrito como o romance que serve de base a toda uma filosofia, é importante olhar para esta leitura tendo em conta as suas facetas: vendo como apenas uma história e analisando depois os ideais que a fundamentam. É esta, aliás, a fonte da grande ambiguidade que fica ao terminar de ler este primeiro volume: enquanto história, é cativante, desperta interesse e até emoções fortes relativamente às diferentes personagens e consegue gerar momentos de grande intensidade. Enquanto filosofia, é perturbador.
Seria agradável poder separar integralmente estas duas facetas, até porque há na construção das personagens algo de estranhamente fascinante. Há uma certa inevitável empatia ante a história de alguém que parece lutar contra tudo e todos, procurando o seu lugar no mundo e construindo quando todos os outros procuram destruir. Há também uma certa envolvência na descoberta de laivos de sentimento numa história que vive tanto de mecanismos, esquemas, planos de construção e manobras legislativas. E há ainda várias surpresas, sendo a maior delas a forma como este primeiro volume termina, com um gesto dramático particularmente marcante.
Só que tudo muda ao olhar para os ideais, para um sistema onde os sistemas sociais, a atenção aos mais fracos, a definição de valores morais como o altruísmo, o auxílio aos mais fracos e até a simples aspiração a algo mais além da prosperidade financeira são ridicularizados. Levados ao extremo, representados como uma matilha de predadores destinados a cair sobre os bem-sucedidos, os que olham para o mundo como mais que lucro são representados como vilões, adversários implacáveis, enquanto o individualismo dos protagonistas, sem ver mais do que os seus próprios objectivos, é glorificado. E o que torna tudo mais perturbador é que esta inversão de valores não é tão linear como esta descrição, já que o evoluir do enredo consegue mesmo, a espaços, insinuar uma relutante compreensão relativamente à posição das personagens. As impressões oscilam, pois, constantemente entre a inevitável vontade de continuar a seguir o percurso dos protagonistas, de ver como vencerão as barreiras com que se confrontam, e o sempre renovado impacto de saber que essas barreiras são afinal uma versão caricatural de valores genuinamente importantes.
Tudo se faz, pois, de ambiguidade, e de uma ambiguidade que permanece depois de terminada a leitura, pois fica ainda a curiosidade em ver que evolução ocorre nos restantes volumes da obra. Fica, por isso, esta contradição: de uma história que consegue ser estranhamente cativante, mas cujos ideais importa questionar.

Autora: Ayn Rand
Origem: Recebido para crítica

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domingo, 23 de junho de 2019

A Rapariga que Veio do Frio (Gilberto Pinto)

Algo de estranho se passa no Porto. Vários homens ligados ao tráfico de mulheres foram encontrados mortos pela cidade e agora também o jornalista que andava a investigar o caso acaba de ser descoberto, também morto, no seu carro. No mesmo local, no interior de um apartamento, o cadáver de uma rapariga com um violino nos braços. Nasce assim uma possível história para acompanhar, mas para o jornalista Leonardo Pedra é também mais do que isso. Da noite anterior, não guarda quaisquer memórias, mas o colega enviou-lhe uma fotografia do seu carro bem perto do local do crime. E as poucas pistas que tem para seguir apontam mais para o seu passado do que para qualquer outro tipo de resposta...
Oscilando entre dois protagonistas e duas formas de contar a história, é na aura de mistério que envolve as possíveis ligações entre estas duas linhas do enredo - e, claro, todos os incidentes que as rodeiam - que reside a grande força deste livro. De um lado, Aníbal, com a sua lealdade talvez deslocada a um espaço e o seu papel de guardião de segredos sombrios, vai desvelando um passado que tão importante será para o desfecho dos acontecimentos. Do outro, Leonardo, com a memória turva, a certeza de que algo se passa e a sensação de estar dividido entre a necessidade de respostas e partes da sua vida que não quer enfrentar, prepara caminho para uma descoberta que segue para o leitor o mesmo ritmo que para as personagens. O resultado é um enigma constante, que mantém acesa a vontade de saber o que acontece a seguir e maximiza o impacto das revelações finais.
Embora as circunstâncias das personagens gerem uma certa empatia, a proximidade é algo que se vai estabelecendo gradualmente e de forma limitada, talvez porque ninguém é linearmente bom nesta história. Ainda assim, se inicialmente isto gera uma certa sensação de distância, fazendo com que a leitura flua um pouco mais lentamente, com o adensar do enredo as coisas tornam-se mais intensas, ao ponto de, a partir de determinada altura, ser difícil parar de ler antes do fim.
E há ainda um outro aspecto a ter em conta: é que, embora a história gire maioritariamente em torno da morte de Sofia e de tudo o que essa traz consigo, há outras questões a virem à tona. Temas como os vícios secretos dos poderosos e a sua impunidade, a brutalidade reservada às vítimas de tráfico humano e as repercussões que um único segredo sombrio pode ter em múltiplas vidas estão bem presentes ao longo deste livro, acrescentando complexidade ao mistério e, ao mesmo tempo, apelando à reflexão.
Trata-se, pois, de um livro que, da sensação inicial de mistério e de estranheza, evolui para uma cativante intensidade, que se vai expandido a cada nova revelação para culminar num final surpreendente e equilibrado. Cativante desde o início, torna-se gradualmente mais viciante, para se gravar depois na memória como uma intrigante e muito agradável leitura.

Autor: Gilberto Pinto
Origem: Recebido para crítica

sábado, 22 de junho de 2019

Filhos do Rato (Luís Zhang e Fábio Veras)

Vivem-se os últimos dias da guerra colonial e, na Guiné, há quem apele aos guineenses que lutam ao lado dos portugueses para quem mudem de facção. Mas é possível que a lealdade ainda exista, mesmo no meio do caos e da morte. O tipo de lealdade que, onde é tudo é devastação, terá consequências igualmente esmagadoras.
Centrado num percurso individual, ainda que com um vasto contexto por trás, este é um livro que não é propriamente fácil de descrever, mesmo tendo em vista o contexto apresentado no final do livro. E, contudo, é inevitável que a sensação de confusão que parece pairar ao longo de toda a leitura pareça também estranhamente adequada: afinal é de guerra que se trata, e portanto de caos e morte. Faz, pois, sentido que o mesmo caos que submerge as personagens se expanda também para quem lê a sua história.
Parece ser, aliás, um caos meticulosamente construído, assente nas oscilações temporais, que passam de um momento cruel a um futuro de consequências igualmente brutais, mas também numa arte que confere a todos os momentos a sensação de brutalidade - e ao mesmo tempo de inutilidade - que parece caracterizar qualquer guerra. As próprias cores realçam este impacto, com o contraste entre o preto e branco dominante e os rasgos de cor nos momentos mais pungentes. É confuso, porque o cenário em que as personagens se movem é confuso - mas é precisamente isso que se pretende transmitir, e há em tudo isso uma certa mestria.
É também, em certa medida, uma história deliberadamente vaga, deixando em aberto as possibilidades de enquadramento deste percurso individual num contexto mais amplo. Também isto faz sentido, pois não é de um livro de história que se trata, mas de uma história muito específica. E se é certo que muito é deixado em aberto, ficando como que uma ambiguidade a pairar uma vez terminada a leitura, também o é que há uma lógica em tudo isto. Mais uma vez, guerra significa caos, e no caos não há espaço para finais imaculados.
A imagem que fica é, pois, a de uma leitura em que os acontecimentos se tornam impressões e em que a história de um único indivíduo abre espaço para uma reflexão sobre o impacto da guerra naqueles que a viveram por dentro. Peculiar, mas estranhamente marcante, um livro que vale a pena descobrir.

Título: Filhos do Rato
Autores: Luís Zhang e Fábio Veras
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Dentes de Dragão (Michael Crichton)

William Johnson planeava viajar para a Europa nas férias, mas uma aposta com o seu grande rival em Yale fez com que esses planos mudassem. Agora, encontra-se a caminho do Oeste selvagem na companhia da equipa do professor Marsh, em busca de fósseis de dinossauros. É uma viagem cheia de perigosos, rumo a um território pouco conhecido e onde a ameaça dos índios paira como uma sombra. Mas os problemas não se cingem aos índios e às adversidades da viagem: não quando a rivalidade de Marsh com um outro paleontologista faz com que ele desconfie de tudo e todos. Johnson ver-se-á bem longe de casa, em companhia de outros que não o grupo com quem partiu e obrigado a crescer... ou a morrer no Oeste.
Dividido entre as dificuldades de uma longa e perigosa viagem e a caracterização de uma época diferente, este é um livro que, não sendo propriamente o típico western, tem tudo o que de mais cativante existe nas histórias do Oeste selvagem. E, curiosamente, estes elementos começam a manifestar-se ainda bem longe do Oeste, com a paranóia de Marsh a dar origem à primeira surpresa no que toca ao longo e sinuoso do protagonista. A partir daí, há espaço para todas as possibilidades, desde os duelos numa rua deserta (ou não tão deserta) aos ataques furiosos dos índios, passando pela paixão assolada por uma mulher que não é bem o que parece e pelas dificuldades em encontrar o caminho de regresso a casa.
Se há algo a apontar neste livro, é que talvez pudesse ter sido consideravelmente mais extenso, já que os acontecimentos, grandes momentos de acção incluídos, são descritos de forma relativamente concisa, o mesmo acontecendo com as descrições relativas à guerra e às movimentações do exército. Ainda assim, a verdade é que não falta nada de essencial e que esta relativa simplicidade consegue também fazer com que os grandes momentos tenham mais impacto. E isto pode aplicar-se às grandes descobertas ou às pequenas surpresas que vão ocorrendo ao longo da narrativa, aos momentos de vida ou morte ou aos pequenos gestos de... chamemos-lhe justiça poética.
Há ainda um outro aspecto curioso, relativamente aos fósseis e ao papel que desempenham em toda esta história. Embora nenhum deles seja realmente o protagonista, é da rivalidade entre Cope e Marsh que nascem muitos dos conflitos presentes neste livro. E, assim sendo, não deixa de ser curioso notar como, partindo de uma expedição feita em nome da ciência, a história se expande para realidades muito distintas, abrindo espaço a outro tipo de interesses e fazendo dos dinossauros os mais inofensivos dos intervenientes nesta história.
Relativamente sucinto na abordagem aos diferentes elementos da história, mas sempre cativante e sempre surpreendente, trata-se, pois, de uma leitura envolvente e agradável, com uma perspectiva bastante diferente das habituais histórias do velho Oeste. Uma boa história, em suma, e um livro que nunca deixa de surpreender.

Autor: Michael Crichton
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 20 de junho de 2019

O Sacrifício de Um Homem (Sandra Brown)

Ella Barron não tem uma vida fácil. Sozinha e com um filho que quase todos vêm como sendo o idiota da vila, vê-se obrigada a gerir uma pensão para sobreviver, e fá-lo com toda a precisão e exigência. Mas tudo muda com a entrada em cena do senhor Rainwater. Chega na companhia do médico local para se hospedar na sua pensão, mas traz consigo um pesado segredo: não lhe resta muito tempo de vida. Há, ainda assim, algo que leva Ella a aceitá-lo, embora saiba que o tempo será limitado e que há sofrimento à espera no futuro. Mas David Rainwater é muito mais de que um homem à espera da morte e, nos tempos conturbados que todos vivem, entre a seca, a Grande Depressão e a crueldade dos homens poderosos, está decidido a deixar a sua marca antes do fim.
Parte do que torna este livro notável é a forma como a autora consegue, centrando-se essencialmente num grupo reduzido de personagens e sem expandir demasiado as complexidades do contexto em que a história decorre, abordar questões pertinentes, despertar emoções fortes e criar uma proximidade avassaladora relativamente aos seus protagonistas. Nem o passado de Ella nem o do senhor Rainwater são explorados a fundo, mas há, ainda assim, a sensação de que a história que carregam fez deles aquilo que são. E quanto ao presente, há toda uma série de desenvolvimentos, tanto nos grandes confrontos como nas pequenas coisas, a fazer vir à tona o melhor das personagens.
Embora não seja explorado a fundo, o contexto da época é crucial para o enredo e a verdade é que todos os elementos fundamentais são abordados com a máxima precisão. Situações como a do Irmão Calvin e a de Solly confrontam o leitor com um período em que o racismo era prevalente e a diferença podia ter consequências terríveis. O programa do governo e a sua aplicação põem em evidência um cenário em que aos poderosos tudo é permitido - com todos os conflitos, violências e manipulações associadas. E a situação de Ella, sozinha com o filho e a tentar manter uma reputação imaculada, realça o preconceito e as formas como este pode condicionar a vida de uma mulher. Tudo temas pertinentes, retratados segundo o período em que o enredo decorre, mas muitíssimo actuais.
E o que realmente marca é que, no meio de tudo isto, entre obstáculos, confrontos, dificuldades, há espaço para os sentimentos nobres. Não só o afecto que começa a crescer entre Ella e o senhor Rainwater, mas também a sua devoção ao filho, o espírito de solidariedade que une os habitantes da vila e até a coragem de enfrentar os poderosos numa batalha que parece perdida à partida. Há algo de profundamente memorável nos sentimentos fortes que emergem deste percurso. E se o final é parcialmente expectável, pelo menos no que toca a David Rainwater, já tudo o que rodeia esse facto inevitável é absolutamente surpreendente. E comovente também. Muito, muito comovente.
Com um núcleo relativamente conciso de personagens e uma história mais voltada para os seus percursos pessoais, embora não descurando o contexto global, trata-se, pois, de um livro que esconde sob a sua aparente simplicidade todo um poço de emoções fortes. Belo, emotivo e marcante em todos os aspectos, é, ao mesmo tempo, um apelo à reflexão e um diálogo com o coração do leitor. E, no fim, fica na memória, pois, como dizia o senhor Rainwater, seria impensável perder a beleza de um livro só pela possibilidade de o final ser triste. E beleza é algo que não falta a esta história.

Autora: Sandra Brown
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Stephen Hawking (Maria Isabel Sánchez Vegara e Matt Hunt)

Desde muito novo que o pequeno Stephen deu por si fascinado pelas estrelas que via no céu à noite. Mas estava longe de imaginar o imenso contributo que daria para a compreensão do universo. Apesar dos obstáculos e da doença, a marca que viria a deixar no mundo seria colossal. E esta é a sua história, resumida ao essencial, mas sem lhe tirar nenhuma da sua imensa importância.
Muito, muito breves, com um ritmo encantador na rima e na fluidez da palavra e com uma visão bastante completa, embora muitíssimo concisa, da vida dos seus protagonistas, há nos livros desta colecção algo de cativante que tanto é capaz de cumprir o seu papel didáctico, de dar a conhecer aos mais novos as grandes figuras do mundo, como de lembrar que às vezes o essencial é mais simples do que parece. Claro que figuras como Stephen Hawking têm histórias capazes de preencher extensas biografias, mas que melhor ponto de partida do que um resumo simples, divertido e capaz de gerar curiosidade?
Também é interessante - e possivelmente um belo incentivo à leitura - o facto de a história de Stephen, como a dos outros protagonistas desta colecção, partir da sua infância. Há, aliás, toda uma mensagem subjacente que não podia ser mais positiva: a de que os sonhos de criança, daquele tempo em que tudo parece possível, podem afinal concretizar-se com esforço e coragem. Além disso, entrar na história de uma criança gera também uma maior sensação de proximidade, o que tornará certamente a leitura mais cativante.
E há ainda o habitual toque de magia, nas ilustrações que tão bem parecem adequar-se à história e ao seu protagonista. Desta vez, dominam os astros, os elementos da ciência, o azul nocturno de um céu cheio de estrelas. E a simplicidade, também, à altura da história em si, que, concentrando-se no essencial, consegue, ainda assim, contar uma história completa e realçar as infinitas possibilidades do sonho.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura muito breve, mas também muito equilibrada nos diversos elementos que a constituem. Os mesmos que, dando forma a um pequeno universo, proporcionam uma leitura cativante e agradável para pequenos leitores... e não só.

Título: Stephen Hawking
Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Matt Hunt
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 18 de junho de 2019

A Fúria dos Reis - Volume 1 (George R.R. Martin, Landry Q. Walker e Mel Rubi)

Muitas coisas podem mudar no espaço de um ano. Com a morte do rei e as subsequentes intrigas, os Sete Reinos dividiram-se. Agora, há demasiados reis e ainda mais interessados em manipular as cordas do jogo dos tronos da forma que lhes for mais favorável. Uns lutam pela sobrevivência, outros pela ascensão ao poder. E, no meio de tudo isto, os mais fracos ardem, morrem... ou encontram formas de se tornarem mais fortes. Porque, no jogo dos tronos, ou se vence ou se morre. E, assim sendo, não se pode realmente confiar em ninguém.
Quem já leu os livros das Crónicas de Gelo e Fogo poderá, talvez, pensar que esta adaptação não tem muito de novo para acrescentar. E embora essencialmente fiel ao enredo original, basta a construção visual para fazer com que esta versão da história acrescente algo de novo ao mundo. Dar rostos aos nomes - rostos diferentes dos da série - , dar vida aos cenários e movimento às cenas mais movimentadas confere logo uma nova perspectiva às coisas. E se nem todas as personagens são exactamente como as imaginámos, a verdade é que não deixam por isso de estar bastante próximas do que é descrito nos romances.
Outro aspecto que importa destacar neste livro é o facto de ser apenas um primeiro volume, o que significa que abrange apenas parte da história do livro original. Ora, também isto é um ponto a favor, pois, sendo um mundo tão vasto e um enredo tão extenso, abreviá-lo retirar-lhe-ia naturalmente parte da força. Trata-se também de uma história contada através de múltiplos pontos de vista, e também isso é transposto para esta adaptação, reflectindo a mesma sensação de proximidade que se sente nos romance e transpondo-a também para os rostos das personagens.
E, claro, até podemos já conhecer a história, mas isto não quer dizer que ela perca o seu impacto, principalmente se já tiver passado algum tempo desde a leitura do original. Não deixam de surpreender, mesmo já conhecendo partes do futuro, as complexidades da intriga, a capacidade de gerar emoção nas pequenas coisas, o mistério que envolve as personagens e as suas motivações e os sempre deliciosos momentos de humor e astúcia protagonizados maioritariamente pelo estranhamente carismático Tyrion Lannister.
No fundo, é como regressar a uma história onde já fomos felizes e encontrá-la um pouco mudada, mas com a mesma alma e as mesmas qualidades que tanto cativaram da primeira vez. É a mesma história, mas diferente. O mesmo mundo, mas mais vivo. E o mesmo complexo xadrez de gentes e de poderes que torna este mundo tão infinitamente fascinante. Maravilhoso, em suma.

Autores: George R.R. Martin, Landry Q. Walker e Mel Rubi
Origem: Aquisição pessoal

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Inesquecível (Alexandra Bracken)

Ruby nunca gostou verdadeiramente dos poderes que lhe arruinaram a vida e parte do mundo tal como o conhecia. E, depois de ter visto as suas aplicações mais sombrias, agradam-lhe ainda menos. Mas o passado não pode ser invertido e, julgando tomar a decisão certa, Ruby juntou-se à Liga das Crianças na esperança de proteger Liam do lado mais assustador do novo mundo. Só que as boas intenções não bastam e os seus caminhos terão de se cruzar de novo. Cole, o irmão de Liam, esteve em contacto com ele e, acidentalmente, deixou-o na posse de informações sensíveis. E Ruby tem de o encontrar, não só para recuperar essa informação, mas porque também na Liga há inimigos à espreita. E o tempo pode muito bem estar a esgotar-se...
Parte do que torna esta série tão cativante é a forma como a autora consegue conjugar um cenário cheio de conflitos e brutalidade com um conjunto de personagens que, embora marcadas pelos percalços da vida, continuam a manter uma certa inocência. É agora Jude quem assume a posição da inocente Zu, tendo em comum uma afectividade que marca num cenário todo ele tão duro. Mas essa mesma inocência - ou talvez devesse chamar-lhe esperança - continua também bem presente em Liam e até na própria Ruby, o que não deixa de ser uma grande surpresa - e fonte de vários momentos emocionalmente poderosos - num enredo onde dominam a acção e a crueldade.
Outra grande força é a constante capacidade de surpreender. Tendo em conta o cenário global, não é propriamente inesperado que a situação não se afigure muito sorridente, mas cada novo desenvolvimento vem acrescentar novas sombras e cada nova revelação põe em causa tudo o que julgávamos saber. Isto aplica-se não só aos planos globais das diferentes forças em conflito, mas também à posição das diferentes personagens, o que faz com que haja sempre uma surpresa ao virar da esquina, seja ela um conflito inesperado ou um surpreendente rasgo de emoção.
E é essa talvez a mais impressionante das facetas deste livro: a capacidade de gerar emoção num mundo em modo de sobrevivência. Há carinho entre amigos, um amor que se recusa a esmorecer, empatia e conflitos interiores (principalmente no caso de Ruby). E há momentos dilacerantes, não só face às inevitáveis perdas (porque outra das marcas desta história vem da certeza de não se poderem travar batalhas sem que haja perdas envolvidas), mas também nos reencontros, nas esperanças, nas breves partilhas de algo maior do que a simples sobrevivência. Tudo no seio de uma história que é também uma corrida constante em busca de algo ou para o evitar.
Tudo somado, o que fica é a história intensa e memorável de um conjunto de personagens marcantes e complexas a tentar resgatar um mundo abalado por algo ainda intangível, mas cujos contornos começam a definir-se. E a vontade quase irresistível de descobrir o mais cedo possível o que se segue para Ruby, Liam e o seu grupo de amigos e aliados. 

Título: Inesquecível
Autora: Alexandra Bracken
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Inesquecível, clique aqui.

domingo, 16 de junho de 2019

Entre Cães e Gatos (José Jorge Letria)

Quem convive com animais de estimação sabe o tipo de magia que eles podem trazer à vida das pessoas. E, tal como não há duas pessoas iguais, também cada cão ou gato tem os seus hábitos, carácter e comportamento únicos. Este livro é um registo pessoal, bem como uma declaração sentimental de amor aos animais que foram passando pela vida do autor. E, elogiando os vivos e realçando a memória dos que já partiram, é também uma lição de amor e perda. Quem disse que o amor é algo exclusivamente humano e que só pode ser sentido por humanos? Pois está redondamente enganado.
Para quem tem ou teve animais de estimação, ou para quem simplesmente gosta deles, este é um daqueles livros que nos falam directamente ao coração. É um registo pessoal, feito das memórias do autor, mas quem já partilhou espaço e emoções com um cão ou um gato (ou com vários!) reconhecer-se-á em muitos dos sentimentos que vêm à tona ao longo desta leitura. E, mais do que as histórias particulares, também elas muito bonitas, é esta sensação de proximidade que torna o livro tão memorável. Não são os nossos cães e gatos - mas podiam muito bem ser.
Não será, por isso, uma surpresa que seja uma leitura capaz de arrancar lágrimas e sorrisos. Ter um animal de estimação é saber que também a perda é inevitável e o afecto com que o autor escreve sobre os seus companheiros caninos e felinos tem tanto de comovente pela beleza das palavras como pela já referida proximidade. Quem passou por lá reconhece-se nas palavras. E, tendo ou não vivido pessoalmente esse tipo de perda, há algo de comovente e de inefável na forma como a ternura parece emanar até do mais ínfimo dos momentos.
São essencialmente histórias bastante breves, como que retratos traçados dos diferentes protagonistas deste livro. E, embora houvesse certamente mais peripécias para contar sobre estas belíssimas figuras, a sensação que fica é a de que cada texto, seja ele um memorial ou um simples elogio, capta a alma completa do seu protagonista. É fácil imaginá-los, a deambular pela casa, nos seus momentos de traquinice ou de serenidade, de amor, enfim. E é interessante também ver que, entre tantos cães e gatos, é possível reconhecer em cada texto aquilo que os individualiza. São muitos - mas são todos diferentes. São todos únicos.
Feitas de afectos, de dedicação e do tipo de companheirismo fiel que só um animal de estimação pode dar: assim são as histórias deste livro. Terno e comovente, um livro imperdível para quem gosta ou convive com animais de estimação e - porque não? - para aqueles que ainda não descobriram a magia de ter um companheiro (ou vários!) de quatro patas. Encantador.

Autor: José Jorge Letria
Origem: Recebido para crítica

sábado, 15 de junho de 2019

O Suspeito (Fiona Barton)

Quando duas jovens são dadas como desaparecidas na sequência de uma viagem à Tailândia, inicialmente só os pais parecem estar realmente preocupados. Afinal, os jovens ficam incontactáveis, às vezes, quando partem à aventura. Mas não tarda a que a verdadeira gravidade da situação venha à tona. Alex e Rosie morreram na Tailândia, aparentemente devido a um incêndio acidental no local onde estavam hospedadas. Só que também essa teoria tem falhas. Os pais insistem numa investigação como deve ser, o que leva à intervenção da polícia inglesa. E eis que a situação se complica ainda mais. Kate Waters, jornalista, que viajara para a Tailândia para seguir a história, vê-se confrontada com pistas de que o seu filho, que não vê há anos, pode ter estado no local do crime. Inicialmente visto como herói, Jake Waters rapidamente se torna suspeito. E mais uma vez o enredo adensa-se, com novas respostas a trazer consigo novas e perturbadoras perguntas...
Alternando entre os pontos de vista de três personagens fulcrais, esta é uma história que facilmente se torna viciante. Por várias razões: pela intensidade do enredo, pela fluidez e envolvência da escrita e principalmente para construção de personagens complexas em torno de um mistério igualmente complexo. Estes três elementos, e o equilíbrio praticamente perfeito entre eles, fazem com que este livro, embora relativamente extenso, seja praticamente impossível de largar.
Não há quase nada nesta história que seja previsível. Para cada novo desenvolvimento que parece apontar num sentido surge uma nova reviravolta que faz com que a situação se inverta. O maior exemplo disso é a situação de Jake Waters, que assume alternadamente (e dependendo dos olhos que o vêem) os papéis de herói, de potencial assassino, de amigo de confiança e de rival a eliminar. Nada segue pelo caminho mais fácil. E esta sucessão de reviravoltas, de obstáculos, de dificuldades tem o condão de, além de tornar a história ainda mais viciante, tornar também mais complexas as personagens que a povoam.
Há muitas surpresas ao longo da história principal. Mas há ainda outros aspectos a sobressair: a história da relação de Kate com o filho põe-na perante escolhas inimagináveis, além de realçar as dificuldades de equilibrar uma vida familiar estável com o seu trabalho errático de jornalista. A situação pessoal de Sparkes confronta-o com a iminência da perda, gerando alguns dos momentos mais emotivos da história e acrescentando humanidade a uma personagem cuja profissão lhe exige um certo distanciamento. E quanto a Lesley... bem, Lesley é o retrato perfeito do maior medo de uma mãe e da inevitável continuidade após a concretização desse medo. 
Tudo converge, então, num enredo surpreendentemente complexo, mas tão intenso e viciante que é impossível parar de ler. E tudo converge também para um final à altura do percurso: surpreendente, perturbador e equilibrando todas as escolhas difíceis resultantes do longo caminho. O resultado é uma viagem intensa, uma história a todos os níveis memorável e um livro que fica no pensamento bem depois de terminada a leitura. Muito, muito bom.

Título: O Suspeito
Autora: Fiona Barton
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Contos Espirituais da Índia (Ramiro Calle)

Às vezes, é mais fácil explicar as grandes verdades recorrendo a histórias e imagens para lhes dar uma forma mais perceptível. Assim, através do exemplo, a mensagem passa mais facilmente, acrescentando à envolvência da história propriamente dita uma assimilação mais pessoal das ideias que lhe estão subjacentes. É o que acontece com este conjunto de pequenos contos, cada um deles uma história cativante e também cada uma grande lição.
Quando pensamos na Índia, e particularmente no hinduísmo, vem imediatamente ao pensamento um sistema de crenças de elevada espiritualidade, ainda que também de regras e castas muito estritas. Ora, é este contexto que serve de base a todas estas pequenas histórias, o que lhes confere logo à partida uma ligeira aura de mistério. Afinal, é um mundo diferente, não é? De crenças e comportamentos diferentes. E é do contraste entre a diferença e tudo o que estas histórias têm de universal que surge a primeira das qualidades deste livro.
Outro aspecto interessante é que, tratando-se embora de um livro de contos espirituais, sendo portanto de espiritualidade a sua mensagem essencial, é perfeitamente possível apreciar as histórias pelo que elas são independentemente de se ter um olhar mais ou menos céptico sobre a vida. Nem todas as lições implicam grandes crenças como a de múltiplas existências ou de um Ser supremo que tudo rege. Nalguns casos, basta a crença na bondade e nos valores - e esses estão também bem presentes nestas histórias.
No fundo, trata-se de um olhar aos valores essenciais, tantas vezes esbatidos pela ambição e pela ânsia de conquistas. Faz, por isso, também todo o sentido que sejam histórias simples, curtas, escritas de forma directa e centradas na mensagem essencial. Se haveria mais a dizer sobre as pessoas que povoam estes contos? Provavelmente. Mas os fundamentos da mensagem estão lá e acaba por ser isso o mais importante.
Feito de histórias simples, mas com uma grande mensagem, trata-se, pois, de uma leitura cativante e repleta de material para reflexão. Envolvente pelas histórias em si, mas também pela base de ponderação que elas constituem, um bom livro para ver a vida de uma forma um pouco menos materialista. E para pensar, em suma, que é o essencial.

Autor: Ramiro Calle
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Y - O Último Homem: Bonecas de Papel (Brian K. Vaughan, Pia Guerra, Goran Sudzuka e José Marzán Jr.)

Yorick chegou finalmente à Austrália, e embora se trate apenas de uma paragem de vinte e quatro horas, não está disposto a seguir caminho até ao Japão sem antes tentar descobrir o que aconteceu à sua namorada. Mas muito pode acontecer em vinte e quatro horas, do encontro com uma jornalista metediça a uma furiosa fuga de um bando de canibais. Passando, claro, por algumas respostas - mas não todas - acerca do paradeiro de Beth. O caminho de Yorick está ainda muito longe do fim e, embora a resposta para o porquê de ser o único sobrevivente esteja agora mais perto, isso não facilitou assim tanto as coisas. Que respostas estarão ainda, pois, à sua espera?
Sétimo volume da saga do último homem na terra e, mais uma vez, quando parece que já sabemos tudo, a história volta a surpreender. Dividido entre a busca por Beth, o passado de 355 e até do próprio Ampersand, a pequena missão de Hero e as buscas e movimentações das diferentes forças interessadas em "salvar" a humanidade, o enredo e o contexto expandem-se um pouco mais a cada novo desenvolvimento, proporcionando não só umas quantas reviravoltas, mas também vários momentos memoráveis tanto a nível de acção e intriga como de humor e de emoção.
Yorick continua a ser, para todos os efeitos, a personagem principal, mas perdeu algum do seu protagonismo com a expansão gradual da história para as suas diferentes ramificações. Ao aprofundar passados, a história torna-se mais pessoal, fazendo com que as personagens cresçam em complexidade e empatia. E, embora tudo pareça encaminhar-se para a derradeira conclusão (afinal, trata-se já do sétimo volume) a sensação que fica é a de que há sempre novos desenvolvimentos a explorar, novas revelações para descobrir. E tudo isso torna a leitura viciante.
Há ainda um outro aspecto que, embora comum a todos os volumes, parece também reflectir uma certa evolução: a expressividade das personagens. A facilidade com que se lêem as emoções no rosto das personagens tem sido desde o início um dos pontos fortes desta série em termos de componente visual, mas, passados todos estes livros, há algo mais a emergir: é possível ver o crescimento das personagens nas suas expressões, ver o que passaram e o que isso fez delas. Transpor algo de tão íntimo para uma caracterização externa é algo impressionante e faz também parte do que torna esta série tão memorável.
Finda a leitura, fica a impressão do costume: a de ter vivido uma grande aventura, cheia de acção, mas também repleta de momentos marcantes, e que promete ainda novos desenvolvimentos para a parte da história que falta contar. Intenso, viciante e deliciosamente surpreendente, um livro que corresponde inteiramente às altas expectativas. Muito bom.

Autores: Brian K. Vaughan, Pia Guerra, Goran Sudzuka e José Marzán Jr. 
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 12 de junho de 2019

A Paciente Silenciosa (Alex Michaelides)

Alicia Berenson tinha uma vida perfeita: uma belíssima casa, um marido afectuoso e um percurso artístico de sucesso. Até ao dia em que, aparentemente sem que nada o fizesse prever, matou o marido com cinco tiros. E calou-se. Nem nos dias seguintes, nem no julgamento, nem depois do internamento psiquiátrico que a salvou da prisão, Alicia voltou a dizer uma palavra que fosse. Agora, Theo Faber, um novo psicoterapeuta, acaba de chegar à unidade onde ela está internada. E está decidido a fazê-la falar, mesmo que isso signifique rebuscar todo o passado de Alicia - e também um pouco do seu.
Narrado integralmente na primeira pessoa e maioritariamente pela voz de Theo - mas com uns quantos vislumbres essenciais a partir do diário de Alicia, - este é um livro em que tudo parece alinhar-se para uma sucessão de grandes surpresas. Desde as primeiras páginas, em que o amor que transborda do diário de Alicia dá lugar à revelação de um crime, à progressiva evolução de Theo na busca pela verdade e pela voz de Alicia, passando ainda pelas sombras do passado de ambos os protagonistas, há toda uma sucessão de revelações inesperadas ao longo da narrativa, sendo, naturalmente, a maior de todas o grande final. E cada revelação é como uma peça do puzzle, num percurso em que tudo parece ir encaixando na perfeição - mas não exactamente como se esperava.
Há também algo de fascinante na forma como o autor parece mergulhar de cabeça na mente das personagens, revelando profundidades insuspeitas ao mesmo tempo que põe em causa o que eles julgam saber. Afinal, o papel de Theo e Alicia faz deles narradores pouco fiáveis, pelo menos no que aos seus próprios passos diz respeito. Isto torna a história mais intrigante, não só porque só no fim sabemos realmente quem - e quando - estava a dizer a verdade, mas também porque estas personagens são mais do que imperfeitas: oscilam entre o heroísmo e a vilania ao ritmo de cada nova revelação.
Até a própria escrita contribui para reforçar este impacto, com o seu delicado equilíbrio entre um estilo directo na narração dos acontecimentos e o mergulho introspectivo na mente e nas motivações das diferentes personagens. Com Theo e Alicia no centro de tudo, claro, ou não fossem eles as vozes desta história. Mas também com uma visão naturalmente ambígua das outras personagens que faz com que, ao longo de toda a história, praticamente todos possam ser suspeitos - menos, talvez, os mais directamente implicados.
Tudo converge, pois, numa leitura intensa e cheia de surpresas, onde ninguém é tão inocente como parece e as verdades mais profundas da história vêm sempre à tona da mais inesperada das formas. Viciante, enigmático e sempre surpreendente, um livro memorável, em suma, e que não posso deixar de recomendar.

Autor: Alex Michaelides
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro A Paciente Silenciosa, clique aqui.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Diário de uma Miúda Como Tu (Maria Inês Almeida e Catarina Bakker)

A Francisca tem nove anos e três quartos, detesta legumes, adora gomas e está decidida a salvar o ambiente um vídeo de cada vez. Mas para isso precisa de duas coisas: primeiro, superar o castigo de uma semana sem internet que a levou a começar um diário; e depois, conseguir que os pais a deixem ter um telemóvel. Ora, o castigo parece penoso, mas o diário revela-se uma boa companhia. E quanto ao telemóvel... bem, a Francisca é uma rapariga determinada e de certeza que tem boas ideias para resolver o problema. Afinal, é por uma boa causa!
Sendo um livro pensado para os mais novos, e nada menos que um diário, uma das primeiras coisas a destacar-se nesta pequena aventura é precisamente o aspecto visual. Desde as linhas que lhe conferem o aspecto de um verdadeiro diário às ilustrações simples e divertidas que facilmente imaginamos a Francisca a desenhar, basta um primeiro folhear para imaginar a Francisca como uma rapariga real a escrever os seus "segredos mais secretos".
Além de visualmente apelativo, é também um livro com uma mensagem muito importante: a dedicação da Francisca ao combate ao aquecimento global podia ensinar umas quantas coisas a muitos adultos. E, além de passar a mensagem desta luta aos seus leitores, a história da Francisca fá-lo com uma simplicidade descontraída e divertida, realçando os aspectos importantes sem complicações nem explicações incompreensíveis.
Mas, claro, a vida da Francisca não se resume ao seu activismo ambiental: há a relação com o irmão, a situação escolar, a pequena aventura da viagem de finalistas e ainda os seus gostos e aversões que, sendo embora os característicos de alguém da sua idade, conseguem também lembrar tempos mais simples. Não, não se pode jantar gomas - mas que criança de nove anos não teve uma ligeira aversão aos legumes e uma predilecção por gomas, chocolate e afins?
Trata-se, pois, de uma leitura simples e descontraída, com uma protagonista divertida e uma mensagem muito pertinente. Uma boa leitura para os mais novos, em suma, e que também pode ensinar algumas coisinhas sobre o ambiente aos que já não são assim tão novos.

Autoras: Maria Inês Almeida e Catarina Bakker
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Juro Amar-me (Isabel Baía Marques)

A vida é feita de desafios. E entre os desafios, os obstáculos, as dúvidas e as dificuldades, às vezes é difícil manter o optimismo. Este livro é uma experiência pessoal de optimismo: um olhar à vida segundo o interior, pondo de parte expectativas e obrigações sociais para olhar para o que realmente importa. É também, além da descoberta pessoal da autora, um conjunto de visões inspiradoras, com as quais podemos identificar-nos de forma mais ou menos completa, mas das quais há sempre um conjunto de boas ideias a ponderar.
Quando se lê um livro deste género, muitas vezes importa partir de um certo estado de espírito, pois, se formos de natureza mais pessimista, é inevitável, muitas vezes, a sensação de que tudo parece "demasiado fácil". E, sendo um livro escrito de forma relativamente simples, desfiando as ideias quase como se de poemas se tratassem, é inevitável a sensação de que a vida é muito mais complexa do que estas ideias concisas e aparentemente simples. Nunca é assim tão fácil, pois não? Mas, passada a ambiguidade inicial de olhar para as coisas desta forma - desta impressão de simplificar algo que é bastante mais complexo - surge outra possibilidade. Simplificar é um bom ponto de partida quando o todo parece demasiado vasto para suportar. E estas visões simples podem muito bem funcionar como a base para uma inspiração maior.
Outro aspecto a ter em conta é que nem todos vemos a vida da mesma forma. Nem todos partilhamos das mesmas crenças. Assim, é perfeitamente possível ler alguns textos e concordar integralmente com eles e, ao ler outros, sentir uma certa impressão de que as coisas não são bem assim, como é o caso da recorrente associação entre mente e doença física. Ainda assim, discordâncias à parte, emerge uma imagem geral que é, acima de tudo, positiva: uma mensagem de força, de descoberta, de sermos mais por nós do que pelas expectativas do mundo, de olharmos para o que verdadeiramente tem significado para nós.
E há ainda um aspecto surpreendente: a forma como estas ideias são apresentadas, quase em forma poética, mas com a fluidez de uma escrita ao ritmo do pensamento, conferem as ideias uma maior naturalidade, quase como se tivessem saído directamente da mente - ou do coração - para o papel. Esta expressão simples, mas ao mesmo tempo invulgar, confere à leitura uma espécie de genuinidade que torna mais fácil a assimilação das ideias - e do que eventualmente possam fazer sentir.
Terminada a leitura, vai já bem longe a ambiguidade inicial. Ficam as ideias positivas, aquilo que se pode adaptar à experiência pessoal de cada um. E a impressão de uma visão que, embora aparentemente simples, é suficientemente vasta para passar uma mensagem positiva a diferentes leitores em diferentes fases da vida. 

Título: Juro Amar-me
Autora: Isabel Baía Marques
Origem: Recebido para crítica

sábado, 8 de junho de 2019

Nome de Código: Águia-Real (Anónimo)

Grace Elliot acaba de descobrir a bomba que fará finalmente dela uma jornalista a sério: uma actriz de filmes pornográficos está disposta a falar sobre o relacionamento que teve com o polémico candidato a presidente dos Estados Unidos. Mas ninguém quer publicar essa história e, como prémio de consolação, é oferecida a Grace uma viagem com a ex-mulher do candidato, Elena Craig, pelos lugares da sua infância. É aí que as incongruências começam a tornar-se evidentes: Elena Craig não é apenas quem diz ser. Mas quando Grace começa a investigar a fundo, descobre-se na mira de inimigos poderosos, capazes de tudo para manter os seus segredos a salvo.
Provavelmente o aspecto mais memorável deste livro é que, sendo embora uma obra de ficção, tem muitas e evidentes semelhanças com certas figuras da realidade actual. É difícil não ver em Anthony Craig as características de um certo presidente e toda a história de Elena faz lembrar as muitas notícias sobre ligações à Rússia. Fica, pois, no ar uma questão intrigante: será que qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência?
Mas as qualidades não se resumem a esta intrigante ambiguidade. Toda a história parece ser uma corrida contra o tempo (ou contra a morte) e a forma como o autor a constrói, alternando entre a procura da verdade por parte de Grace e essa mesma verdade vista pelos olhos de Elena, faz com que a abrangência da conspiração se torne particularmente impressionante. Além disso, este equilíbrio entre as duas partes consegue também transmitir os sentimentos mais fortes: a impotência de Grace face ao seu isolamento na busca da verdade é a mesma impotência de Elena, arrastada para uma prisão dourada da qual não há uma verdadeira saída.
E eis que o enredo avança, de revelação em revelação, desvendando verdades desconfortáveis e colocando a protagonista em situações cada vez mais perigosa. Gera-se, assim, a expectativa de um final poderoso, de uma grande revelação dramática, de uma verdade capaz de fazer o mundo desabar. E eis que surge nova ambiguidade: o final é dramático, de facto, mas não é aquele para onde a história parecia encaminhar-se. E se, por um lado, este final não corresponde ao esperado, por outro é especialmente adequado se considerarmos uma vez mais as semelhanças com a realidade. Na vida, nem sempre os bons ganham e os vilões são punidos. Tudo é bastante mais complexo. E, assim sendo, faz sentido que tudo termine com o equilíbrio possível. E com uma promessa também.
Observadas as suas múltiplas facetas, o que fica deste livro é a imagem de uma história intensa e cativante, escrita num estilo directo e aparentemente simples, mas que contém uma análise surpreendentemente eficaz das intrigas subjacentes ao mundo dos poderosos. Intrigante e surpreendente, um livro para devorar de uma assentada... e, talvez, para ver o mundo com outros olhos.

Autor: Anónimo
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 7 de junho de 2019

The Wicked + The Divine: Suicídio Comercial (Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles)

Após uma série de acontecimentos dramáticos que resultaram em várias mortes incluindo a de um deus, os deuses do panteão vêem-se obrigados a voltar-se para o interior numa tentativa de analisar o que se passa. Mas a verdade é que nem todos estão na mesma posição. Enquanto uns compram facilmente a história do culpado mais fácil, outros há que estão por dentro do segredo. E, entre as suas origens e a posição que parecem assumir, é neste terceiro volume que as circunstâncias dos diferentes deuses começam a tornar-se mais claras. Pois uma coisa é certa: a situação não está a melhorar. E a guerra anunciada pode muito bem vir de onde eles menos esperam. Pelo menos alguns deles...
Dividido entre os passos dos diferentes deuses e voltando-se ora para o passado, ora para um futuro relativamente próximo dos acontecimentos do volume anterior, este é um livro que funciona em certa medida como um volume de transição, revelando posições como que num tabuleiro de xadrez ao mesmo tempo que permite alguns vislumbres do que move as personagens e do que as moldou no que são. Mas, ao contrário do que acontece com muitas transições, este não é um livro mais lento nem mais aborrecido. Muito pelo contrário: a maior proximidade das personagens torna-as mais complexas e intrigantes. E não faltam, embora a linha geral da história pareça não avançar muito, momentos dramáticos e de acção a acrescentar novas perspectivas, prometendo ao mesmo tempo grandes desenvolvimentos para o que se seguirá.
Há outro aspecto a sobressair no livro e que transpõe o contraste entre as histórias e personalidades dos diferentes deuses para a arte que os representa. É que este livro conta com a participação de diferentes artistas convidados, cada um com um estilo diferente e capaz de acrescentar coisas novas às diferentes personagens. O contraste é amplo e evidente, indo de cenários e trajes mais elaborados no número dedicado a Amaterasu a uma simplicidade inesperadamente eficaz na história de Sakhmet. Ora, além de introduzir diversidade, este contraste tem ainda um outro efeito curioso: é que parece ajustar-se na perfeição à natureza e temperamento das personagens correspondentes. Sakhmet é talvez a dona da mente mais simples de todos os deuses - e isso reflecte-se na forma como a sua parte da história está representada. Amaterasu é uma deusa solar, pelo que faz todo o sentido que as suas cenas sejam cheias de luz, em contraste com os tons bem mais sombrios da Morrigan. E isto aplica-se, de uma forma ou de outra, a todos os intervenientes.
E quanto à história em si, importa ainda referir que o facto de não haver um grande avanço em termos de história global não quer dizer que não haja desenvolvimentos importantes. O passado permite uma melhor compreensão de certos mistérios. E o presente, esse... bem, além dos muitos momentos notáveis, culmina num elemento de suspense que deixa uma vontade praticamente irresistível de ler o próximo volume o mais cedo possível.
Beleza, intriga, emoção e mistério nas medidas certas fazem de enredo, mundo e personagens uma aventura irresistível. E uma vastidão de pequenas coisas faz com que cada volume seja sempre mais fascinante que o anterior. Deuses feitos celebridades numa intriga de dimensões cada vez mais vastas: é esta a natureza da história que, neste terceiro volume, se expande ainda um pouco mais. Uma história brilhante e memorável. Genial, como sempre.

Autores: Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Má (Chloé Esposito)

Nem sempre acordar num hotel de luxo significa que a vida corre bem. No caso de Alvina Knightly, é precisamente o contrário. O seu companheiro de fuga e cúmplice de uns quantos crimes acaba de fugir com o dinheiro que roubaram, deixando-a apenas com umas quantas jóias e um desafio: caso o encontre, poderão trabalhar juntos. Alvie, porém, tem outras intenções. Quer encontrar Nino, de facto, mas para acabar com ele. Só que não é assim tão fácil. Nino desapareceu e a única pista de Alvie - uma app de localização de telemóveis - rapidamente se revela pouco fiável. E, embora os acasos pareçam estar a seu favor, Alvie pode muito bem ser a pior assassina de todos os tempos.
É na inversão de tudo o que se espera de uma história deste género que se encontra o aspecto mais cativante deste livro. Alvie é tudo menos uma boa pessoa, dificilmente desperta empatia (salvo por certos laivos do seu passado) e não tem propriamente grandes escrúpulos no que toca a conseguir o que quer. Já o caminho, bem, com uma protagonista assim, é fácil de prever que haverá uma boa variedade de crimes ao longo do percurso. E porém, ao ser precisamente o contrário do que se espera, há nesta aventura algo de estranhamente cativante - mesmo que isso signifique não saber se estamos a torcer por Alvie ou contra ela.
Além da muito vincada falta de escrúpulos, Alvie tem também uma considerável falta de jeito, o que, além de peculiar, torna a história bastante divertida. Não, não é propriamente fácil gostar da protagonista, mas é impossível não rir de algumas das suas peripécias. Além disso, uma coisa é certa nesta história: praticamente nada corre conforme planeado. E se o caminho de Alvie a levará, certamente, a cruzar-se com Nino, a forma e as consequências estão longe de ser as mais previsíveis.
Claro que, sendo o segundo volume de uma trilogia, deixa umas quantas questões em aberto sobre o que futuro reserva para a protagonista. Mas funciona, ainda assim, como uma fase completa: a situação com Nino fica resolvido e, além disso, certos problemas vindos de trás encontram como que uma resolução provisória. Tudo fica em aberto para o futuro de Alvie, mas esta parte do percurso terminou. E isto faz com que à curiosidade acerca do que virá depois se junte a sensação de um fecho adequado.
Peculiar, moralmente ambíguo (na melhor das hipóteses), mas estranhamente cativante e divertido, trata-se, pois, daquele livro invulgar em que, mesmo não se gostando particularmente da protagonista, a história se torna quase viciante. Talvez seja precisamente por ser peculiar e ambígua. Ou então porque há um futuro para Alvie que promete ainda maiores aventuras. Seja como for, o certo é que as páginas voam... e também isso é sinal de uma boa leitura.

Título:
Autora: Chloé Esposito
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 5 de junho de 2019

O Periférico (William Gibson)

Flynne e Burton vivem num futuro aparentemente não muito longínquo, mas em que múltiplas viragens na economia e não só alteraram todo o funcionamento do sistema. Agora, as poucas opções viáveis de emprego prendem-se com negócios obscuros, drogas e as forças militares - com consequências desastrosas. É, pois, a fazer alguns biscates que Flynne e Burton sobrevivem... até ao dia em que, substituindo o irmão num desses trabalhos, Flynne assiste a algo que não devia ter visto. O que julgava ser um jogo é afinal um futuro diferente do seu. E o facto de ser a única testemunha de um homicídio faz com que haja gente nesse futuro muito interessada em contactá-la... ou silenciá-la.
Não é propriamente fácil falar sobre este livro, pelo menos não sem correr o risco de desvendar algo de importante para a resolução do enredo. Desde o início que são tantos os elementos entrelaçados ou em colisão que é difícil escolher uma linha específica para traçar uma descrição do enredo sem deixar de fora algo importante ou sem dizer demasiado. Talvez por isso a impressão inicial seja de uma certa confusão, com uma vastidão de coisas novas a exigir atenção constante para assimilar tudo devidamente. Até que, uma vez entendidas as bases, se abre um estranho e fascinante mundo.
Mais do que a história e as próprias personagens (embora também estas tenham bastantes qualidades) é o mundo em si o que realmente intriga. Desde os contactos entre o passado e um futuro possível à movimentação de economias inteiras como se num tabuleiro de xadrez, passando pela tecnologia absolutamente inimaginável que, para algumas das personagens, parece ter-se tornado absolutamente normal, há neste livro toda uma vastidão de elementos únicos e é precisamente isso que o torna mais fascinante. E é esta mesma vastidão que faz com que a história seja inicialmente um pouco difícil de seguir e que depois surpreende a cada novo desenvolvimento. Afinal, com tantas possibilidades novas, também no enredo tudo acaba por ser possível.
E, claro, importa ainda olhar um pouco mais de perto das personagens. Longe de serem perfeitas, o que torna tudo inesperadamente mais real, conseguem, à sua maneira, deixar a sua marca. Flynne, perdida no meio de algo muito maior do que pensava, levada, às vezes, ao sabor da intriga, mas capaz de tomar decisões importantes quando realmente importa. Conner, o guerreiro caído, com o seu tão peculiar temperamento. Netherton, ligeiramente cobarde, mas com o coração no sítio certo. E figuras misteriosas como Ash e Lowbeer cuja verdadeira complexidade se revela aos poucos. É o mundo que é realmente novo, mas é a sua associação a personagens capazes de gerar empatia e proximidade, mesmo nas suas falhas, que torna a história memorável.
Complexo, surpreendente e cheio de pormenores inesperados, é um livro que levará o seu tempo a assimilar, mas que, passada a confusão inicial, cativa pelo seu equilíbrio entre a complexidade do mundo, a multiplicidade de possibilidades e a natureza ainda e sempre humana das suas personagens. Cativante, ainda que de ritmo pausado, começa por intrigar e rapidamente se torna memorável. E basta isto para fazer dele uma boa leitura.

Título: O Periférico
Autor: William Gibson
Origem: Recebido para crítica