quarta-feira, 28 de julho de 2021

Mademoiselle Chanel e o Perfume do Amor (Michelle Marly)

1919. O nome de Coco Chanel é conhecido para todos. Conta entre as suas clientes inúmeras figuras importantes, muitas das quais a veem como indigna das suas atenções, ainda que não se importem nada de exibir as suas peças. Mas Coco - ou Gabrielle - nunca se importou com o que os outros pensavam. Bastam-lhe o sucesso, os amigos e o amor. Só que nada é eterno na vida, e muito menos o amor. E a perda do seu grande amor lança Gabrielle numa busca incessante por preservar a sua memória, os projetos que fizeram juntos. Um hino, em suma, ao amor partilhado - em forma de perfume.
Provavelmente o aspeto mais marcante neste livro é a forma como a autora parte de um conjunto de personagens reais para dar vida a uma história em que o verdadeiro protagonista é, na verdade, o perfume. Sim, claro, que é Gabrielle Chanel que domina, e uma Gabrielle que é muito mais fascinante pela forma intensa e emotiva que a autora tem de explorar o seu percurso e as suas relações. Mas a verdadeira força motriz da história é a criação do perfume, desde a sua origem enquanto projeto partilhado de amor à sua efetiva criação e desenvolvimento.
Não quer isto dizer, naturalmente, que as personagens sejam secundárias, ainda que tudo gire em torno deste grande projeto. É que, ao longo do caminho de Gabrielle, há muitas relações e contactos, desde a amizade algo possessiva com Misia à relação atribulada com Stravinsky, sem esquecer o amor de conto de fadas com Dimitri. Há todo um percurso a acompanhar e, nele, muitos momentos marcantes. E há também uma fluidez de narrativa que faz com que todo o enredo progrida com naturalidade, com uma voz leve quanto baste, mas cheia de emoção.
Há, finalmente, uma certa ambiguidade, que é necessária, não só por ser uma história de figuras reais, mas também porque o próprio percurso o exige. Não há amores perfeitos nesta história, tal como também não há personagens perfeitas. Coco Chanel pode desafiar as convenções da sociedade, mas essas continuam bem presentes. E, assim, há desenvolvimentos que nem sempre serão os mais desejados, mas são os que fazem mais sentido - ou os que mais se aproximam da realidade. E que podem tornar a história mais agridoce, mas tornam-na também mais viva.
Envolvente na escrita, fascinante nas personagens e muito equilibrado na forma como dá vida a um projeto de sonho sem esquecer a realidade, trata-se, pois, de uma leitura cativante e que mostra um lado diferente da sempre célebre Coco Chanel. Vale bem a pena conhecer esta história, portanto.

segunda-feira, 26 de julho de 2021

A Melodia do Pássaro Amarelo (Jennifer Rosner)

Tinham uma vida cheia de música, até que o silêncio se abateu sobre o mundo. Agora, a pequena Shira tem de aprender a conter os mais ínfimos sons para que os soldados não a descubram no celeiro onde está escondida com a mãe. Para se consolar, cria mentalmente melodias para o seu pássaro amarelo e espera que tudo passe. Mas o perigo está perto e aquele esconderijo não durará para sempre.
Um dos aspetos mais surpreendentes deste livro vem da forma como, passada num contexto sobejamente conhecido, a história adquire, ainda assim, um registo singular e pessoal. Centrada na sobrevivência das protagonistas, deixa para segundo plano o contexto global para se focar nas experiências pessoais e na forma como estas se repercutem em cada passo.
O resultado desta perspetiva é uma história mais simples, mas também mais emotiva, mais ambígua, no sentido em que há aspetos que são apenas sugeridos, mas mais próxima. E sempre com um lado inocente que, passado para primeiro plano, contrasta vivamente com a crueldade em que se enquadra. 
Ainda um último ponto marcante é a presença da música em toda a história, das memórias de um passado menor ao conforto no meio do medo, passando pela capacidade de unir, inspirar a comover, a música acaba por ser também uma personagem, e uma que confere a esta história um enternecedor rasgo de poesia.
Simples quando baste, mas carregado de sentimento e de intensidade, trata-se, em suma, de uma leitura cativante, sobre tempos negros e perda, mas também amor e esperança. Uma bonita história. 

domingo, 18 de julho de 2021

Monstress, Vol. 5 - Filha da Guerra (Marjorie Liu e Sana Takeda)

A guerra tornou-se inevitável. Se antes as movimentações eram feitas sobretudo nas sombras, agora os ataques tornaram-se óbvios e mais brutais do que nunca. Ravenna está prestes a ser atacada e não tem grandes hipóteses de se defender. E, embora Maika tenha aparentemente coisas mais importantes com que se preocupar, até porque todos continuam a ter planos para ela que não consegue entender, dá por si a entrar na cidade e ocupar um lugar que nunca desejou. Entretanto, o passado vai vindo à tona. As antigas ligações revelam-se mais frágeis do que parecem. E pode não haver limites para o que é preciso fazer. Pode ser preciso aceitar o inaceitável.
Há algo de impressionante na forma como, a cada volume, esta história se vai tornando mais densa e mais complexa sem nunca perder de vista a base que a faz girar. O caos tornou-se global. A guerra arrasta tudo à sua passagem. Maika está mais perdida do que nunca e confiança é coisa que tem tudo para correr mal. E, ainda assim, continua a haver espaço para emoções profundas, para a ternura no meio do sangue, para a sensação de proximidade que brota mesmo dos tormentos mais sombrios. Maika tem de se aceitar como aquilo que é - e esse caminho quase transborda das páginas. E, à medida que as coisas se vão tornando cada vez mais moralmente ambíguas, o cada vez mais ténue cerne de inocência torna-se também cada vez mais precioso.
Outra das grandes forças desta série é, obviamente a arte, com a sua abundância de pormenores e os padrões fascinantes que vão brotando, seja dos cenários, das vestes ou até de certas expressões nos rostos. Neste volume, tudo parece adquirir tons algo mais negros, o que faz especial sentido tendo em conta os desenvolvimentos. E, ainda assim, há um equilíbrio poderoso entre os rasgos de beleza - sim, mesmo no caos - e a inevitável brutalidade da guerra, que assume também uma face bem visível. Há beleza por entre as sombras, intensidade nas expressões e um cenário tão único que, mesmo ao atravessar as mais sombrias mudanças, nunca perde o seu estranho encanto.
Ainda não é aqui que a história acaba, o que significa que, mais uma vez, ficam muitíssimas possibilidades em aberto. Mas, mais uma vez, também a forma como tudo termina parece perfeitamente ajustada ao fluxo da narrativa: encerrando uma etapa e abrindo caminho para novos passos; revelando novas facetas e insinuando sombras que ainda se poderão manifestar. Tudo indica que o caminho destas personagens está ainda longe do fim - e é grande a vontade de saber o que se seguirá.
Uma voz especial, páginas que transbordam de beleza, um núcleo de personagens tão ambíguo quanto fascinante e um mundo tão cheio de surpresas como os seus desenvolvimentos: é de toda esta matéria que é feito este livro magnífico. Que não desilude em nada e deixa expetativas ainda maiores para o que se poderá seguir. Belíssimo, em suma.

sábado, 17 de julho de 2021

Apesar de Tudo (Jordi Lafebre)

Dizem que o coração tem razões que a razão desconhece. E, apesar de tudo, quando sente, persiste nos sentimentos. Apesar dos desentendimentos, das incompatibilidades, da passagem do tempo, da vida, dos obstáculos, das ilusões. Apesar de tudo, persiste. E, quando escolhe, se escolhe, persiste também nessa escolha. É esse o caso do que une os corações de Ana e de Zeno, uma vida inteira de contactos dispersos e um amor que persiste... apesar de tudo. Ela, a mulher dedicada a modernizar a sua cidade, ele, a provar que o tempo pode voltar para trás. E será que não pode mesmo?
Com uma história simples e, ainda assim, cheia de emoção, é na sua estrutura invulgar que este livro tem o primeiro de vários pontos marcantes. Basta abri-lo e encontrar um capítulo 20 logo no início para perceber que esta história não vai ter um rumo linear. Mas tendo em conta a missão de Zeno - e será que o tempo pode realmente voltar para trás? - esta linha cronológica faz todo o sentido. Além disso, tendo em conta o tema central - os longos desencontros do amor - não podia ajustar-se mais esta viagem ao passado.
Outro aspeto notável, mas agora em termos visuais, é a imensa expressividade dos rostos. Claro que todo o livro é visualmente bonito, a começar desde logo pelos cenários, com o seu marcante contraste entre os locais por onde as personagens deambulam, e sem esquecer o movimento que, às vezes, diz mais do que todas as palavras. Mas é a expressão dos rostos - seja melancólica, expectante, irónica ou até um pouco travessa - que mais fica na memória. Até porque o amor que une estas duas personagens parece transbordar-lhes das expressões.
Quanto à história propriamente dita, fica uma impressão curiosa: é que é tanto o impacto do que é dito como o do que fica por dizer. A história é feita de momentos no tempo - e do tempo que passa, claro - o que significa que, de cada um desses retalhos, há aspetos apenas aflorados. E, ainda assim, não é uma sensação de curiosidade insatisfeita, mas mais como que de um equilíbrio entre o que passa e o que fica na memória ao longo do tempo. O que fica connosco para sempre.
Relativamente simples, mas transbordante de amor e de vida, trata-se, pois, de uma leitura relativamente leve, mas memorável em todos os seus aspetos. Uma história de amor e de tempo e de como nunca é tarde para encontrar o que faltava.

terça-feira, 13 de julho de 2021

A Anomalia (Hervé Le Tellier)

É um voo conturbado, mas aparentemente normal, tirando o grande susto da enorme turbulência. Nele, viajam um assassino profissional, um escritor e tradutor talentoso, mas pouco famoso, uma atriz, uma advogada, um arquiteto e a sua cada vez mais relutante namorada, um cantor à beira da fama e muitos outros passageiros. Passam pela turbulência e acabam por aterrar. E a vida continua, feliz para uns, infeliz para outros, absurdamente terminal para mais uns quantos. E, passados três meses, algo de estranho se revela. E a vida nunca mais será a mesma, para eles e para o resto do mundo.
Provavelmente o aspeto mais cativante neste livro - e diga-se de passagem que não lhe faltam aspetos cativantes - é a sua capacidade de conjugar quotidiano e impossível, tragédias pessoas e fenómenos à escala mundial, vidas individuais e o peso da humanidade como um todo. Cada personagem tem a sua própria vida, os seus segredos e motivações. Cada personagem tem uma identidade própria. E, ainda assim, todas convergem para um fenómeno inexplicável que mudará tudo aquilo que conhecem, conjugando singular e global de uma forma que é também ela singular.
Outro ponto marcante resulta, naturalmente, da própria escrita e da forma como o autor parece moldar o registo ao percurso individual de cada personagem. Da profunda frieza do assassino profissional à profunda emotividade da iminência da perda, passando pela perda de um amor, do sentido para a vida, da inocência e das aspirações, cada personagem tem também o seu próprio espetro emocional, e o autor dá-lhes voz de forma particularmente intensa. Além disso, à medida que o enredo se vai desenvolvendo, explorando novas perspetivas com o desvendar do fenómeno e as inevitáveis consequências, a história vai-se adensando, as situações tornam-se mais complexas, mas tudo continua a fluir com uma naturalidade notável.
Ainda um último ponto a salientar é a imprevisibilidade, com a necessária ambiguidade que a acompanha. Tudo nesta história é imprevisível, a começar, desde logo, pela anomalia central, e a forma como o autor conduz o enredo faz com que tudo surpreenda, nas grandes coisas e nos pequenos pormenores. Mas mais do que isso. A imprevisibilidade absoluta significa que não pode haver explicações para tudo e o equilíbrio brilhante que o autor consegue atingir, deixando por explicar o que não pode ser explicado, mas conduzindo cada peça para o final mais adequado (mas não necessariamente perfeito) é algo de particularmente genial.
Notável será, pois, uma boa palavra para descrever este livro: na escrita, no enredo, nas personagens, nas emoções. No equilíbrio que faz com que tudo faça sentido, mesmo o que jamais o poderia fazer. E na intensidade que faz com que se entranhe na memória, do início ao fim... e mais além.

domingo, 11 de julho de 2021

A Minha Irmã é uma Serial Killer (Oyinkan Braithwaite)

Korede é enfermeira. Tem como missão cuidar das pessoas nos seus momentos mais vulneráveis. E também a irmã mais velha de Ayoola e sempre lhe foi incutido que a sua missão era proteger a irmã, principalmente tendo em conta o passado de ambos. Ayoola é tudo o que Korede não é: bela, irresistivelmente atraente, impulsiva, extrovertida. E tem um segredo sombrio, do qual Korede é cúmplice. Já matou vários dos homens com quem se envolveu. Korede está habituada a proteger a irmã, a ajudá-la a ocultar os crimes. Mas agora o olhar de Ayoola voltou-se para alguém que lhe é muito querido. E talvez seja tempo de tomar uma decisão definitiva sobre quem é e que posição quer assumir.
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que, apesar de envolver uma assassina em série, está muito longe de ser um policial. É muitas outras coisas: uma história de irmãs, uma visão de conflito entre tradição e modernidade, uma história de trauma e das suas consequências e até uma história de amor não correspondido. E, sim, também é uma história de crime, mas construída de uma forma tão diferente que, mesmo tendo em conta esses elementos, não são de todo o mistério e o crime a predominar.
É também uma história bastante singular, não só pelas particularidades do enredo, mas sobretudo pelo percurso pessoal das várias personagens e pela moralidade algo ambígua que as move. Ayoola, tendo em conta o seu historial, dificilmente poderá ser vista como uma personagem benigna, mas Korede, enquanto narradora, mostra-a em tempos mais inocentes, o que acaba por despertar alguma empatia. Já Korede parece seguir o percurso contrário, pois a empatia inicial face às suas circunstâncias vai dando lugar a algo mais complexo à medida que o enredo progride.
A ambiguidade não se cinge à moral das personagens. É uma história narrada na primeira pessoa, em capítulos relativamente curtos e com uma perspetiva inevitavelmente parcial, o que significa que ficam inevitáveis sentimentos ambíguos acerca de certos desenvolvimentos. Não deixa, ainda assim, de ser uma ambiguidade curiosamente adequada. Confrontada com uma escolha impossível, Korede encontra o caminho possível. Dividida entre o que é e o que pode ser, opta pela decisão mais realista. E, tendo em conta a forma como tudo termina, é também esta ambiguidade que faz com que as possibilidades fiquem no pensamento mesmo depois de terminada a leitura.
Singular e cativante, leve no registo, mas surpreendentemente complexo na perspetiva moral, trata-se de um livro ambíguo no sentido mais positivo do termo. E que leva o seu tempo a assimilar, mas acaba por se entranhar na memória com as suas estranhas e fascinantes circunstâncias.

sábado, 10 de julho de 2021

Gideon Falls, Vol. 5: Mundos Malvados (Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart)

Devia ter sido o fim. A destruição do Celeiro Negro devia ter finalmente posto termo à maldade intangível que persistia em alastrar-se. Mas não foi isso que aconteceu. Agora, os cinco viajantes dispersaram-se por múltiplos universos, múltiplas Gideon Falls, cada uma mais perturbadora que a anterior. E não estão sozinhos. A presença do Celeiro não foi destruída - foi libertada. E o que parecia ser o fim foi na verdade o início do fim. Agora, não sabem o que fazer além de tentar sobreviver e procurar-se uns aos outros. E sabem que têm de fazer alguma coisa. Não importa o quê. Antes que seja tarde.
Provavelmente o mais estranho de todos os volumes desta série até agora, é também o que deixa mais perguntas em resposta, até porque parece ser todo ele uma grande preparação para o derradeiro final. Dividida entre múltiplos cenários e os passos dos diferentes protagonistas, esta fase da história é essencialmente uma corrida contra o tempo, sem grandes explicações nem resoluções, até porque essas virão depois, mas como que a montar o palco para a derradeira explosão.
É o livro onde a história parece menos coesa, até porque faz sentido que assim seja, já que parece ser uma espécie de caos antes da ordem (ou da implosão final). Mas é também o livro que, visualmente, mais parece expandir este universo, pois não só oscila entre múltiplos cenários como há uma convergência a acontecer, que é refletida de forma particularmente brilhante nos contrastes e na transição entre imagens.
Tudo parece ter mudado desde o ponto em que tudo começou. O halo de sombra e a óbvia presença sinistra continuam bem presentes, mas o horror primitivo parece ter dado lugar a algo mais complexo e difícil de decifrar. Tendo isto em conta, o que não falta ao fim deste quinto volume são perguntas sem resposta, mas fica também uma grande curiosidade em saber de que forma tudo acabará por encaixar no fim. Até porque, chegados a este ponto, tudo é possível, desde uma colisão de mundos ao não muito expectável triunfo do bem sobre o mal, passando por todos os cenários intermédios. É impossível prever como tudo isto acabará.
Pode não ser o volume mais marcante desta série, mas não deixa de gerar grandes expetativas nos caminhos que prepara para o que se poderá seguir. E, com a intensidade das cores e dos contrastes, com as personagens já tão conhecidas e com o grande enigma por resolver, não deixa de proporcionar uma boa leitura e de cativar... como o que veio... e o que ainda está para vir.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

A Instalação do Medo (Rui Zink)

Chegam aos pares, um com ar aprumado e elegante, outro com ar de quem está ali mais para o trabalho físico. Trazem a mesma intenção. «Viemos para instalar o medo.» E qual equipa técnica de uma qualquer empresa de comunicações, é exatamente isso que estão ali para fazer: instalar o equipamento e depois demonstrar como funciona. Para bem da nação. E a mulher, vítima inocente que lhes abriu a porta, depois de ter escondido o filho na casa de banho, não tem alternativa a não ser deixá-los entrar e fazer o que têm para fazer. Porque o medo... Bem, o medo está em toda a parte. E o produto que os dois homens têm para lhe oferecer (ou impor) é mais abrangente do que, à primeira vista, seria de esperar.
Comecemos... pelo início. E pelo início porque a primeira coisa a chamar a atenção para este livro é, desde logo, a premissa. A instalação do medo em forma quase que de qualquer serviço de telecomunicações parece uma ideia curiosa, não parece? E basta realmente para despertar a curiosidade para esta história que, além de absurdamente certeira na forma como reflete os medos que temos instalados em nós, é toda ela cheia de surpresas. Além, claro, de muito cativante na surpreendente leveza com que aborda tantos - e, oh, tão profundos - medos.
E, por falar em medos instalados... Será que se olharmos bem para o mundo não reconhecemos estes mesmos medos cravados na nossa vida real. Lembram-se dos mercados? Dos sacrifícios? Do "andámos a viver acima das nossas possibilidades"? E claro que se lembram da pandemia, do medo do outro, dos que "vêm para cá roubar o que é nosso". São temas que não podiam ser mais atuais. E tudo isto está bem presente neste livro, numa imagem que, além de inesperada pela forma, o é também pela surpreendente leveza - e pela acutilância que se esconde atrás dela.
Ainda um último ponto a sobressair é como que uma certa intemporalidade. O ambiente da história não é o nosso presente. Tanto quanto sei, ainda não anda por aí ninguém a instalar o medo nas casas das pessoas... pelo menos, não de forma tão técnica. Existem, aliás, certos aspetos que apontam para um possível futuro, talvez ligeiramente apocalíptico... E, ainda assim, não faltam referências fáceis de reconhecer e medos - sempre os medos, claro - que não podiam estar mais presentes na nossa atualidade. Não é (ainda) o mundo em que nos movemos. Mas podia ser... Podia ser.
Surpreendentemente leve e de uma perspicácia irresistível, trata-se, em suma, de um equilíbrio certeiro: uma leitura leve sobre temas que são tudo menos isso e que acerta em cheio na sua análise aos medos recorrentes da nossa sociedade. Lê-se num instante, é certo... mas dá muito que pensar.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

Good Samaritans (Will Carver)

Seth Beauman não consegue dormir. E a melhor forma que encontrou de lidar com a insónia foi começar a ligar para pessoas ao acaso durante a noite, na esperança de uma delas querer falar. A maioria não está interessada. Alguns chegam mesmo a ser rudes. Mas, às vezes, gera-se uma ligação. Seth encontra o contacto de que precisa. É um bom ouvinte. Mas as coisas tendem a descontrolar-se. E, quando uma linha cruzada o põe em contacto com a vulnerável e possivelmente suicida Hadley Serf, o seu estranho ciclo de contacto e disfunção para estar prestes a recomeçar. Seth é casado. E o seu casamento está longe de ser perfeito. E a única ligação que parecem partilhar é ver as notícias sobre uma série de estranhos homicídios a ocorrer ali perto…
Parte do que torna este livro tão intrigante é o facto de ser totalmente imprevisível. Assim, é difícil dizer seja o que for sobre a história sem estragar algumas surpresas. Fiquemos, pois, por isto: cada perspetiva, cada desenvolvimento e cada peça neste mosaico estranhamente viciante encaixa perfeitamente no cenário global. E o resultado é absolutamente viciante e fascinante.
Existem algumas caraterísticas que podem, ainda assim, ser referidas sem revelar demasiado da história. A começar, claro, pela construção das personagens. Seth, com a sua insónia e a sua necessidade de ligação, gera um forte sentimento de empatia. (Já todos passámos por isso, certo? Noites sem dormir devido às complexidades da vida.) Mas esta empatia transforma-se em algo diferente com o desenrolar da história. O mesmo se aplica a Ant, com os seus truamas passados a alimentar o que parecem ser boas intenções… que depois se transformam noutra coisa. E, no meio de tudo isto, com uma presença surpreendentemente discreta – mas, oh, que presença – está o detetive-sargento Pace e a sua tão deliciosamente ambígua escuridão.
Depois, há a escrita. Os capítulos relativamente breves, alternando entre diferentes pontos de vista e dando uma voz individual a cada personagem, ao ponto de se tornarem absurdamente familiares. As múltiplas frases memoráveis que dão uma voz única não só às personagens, mas também aos seus motivos e circunstâncias. E o mistério que parece irradiar das palavras, tornando cada nova surpresa ainda mais intensa.
Verdadeiramente notável em todas as suas facetas, este livro não é apenas uma história cheia de surpresas: é todo ele uma enorme surpresa. Personagens memoráveis, um turbilhão de revelações e uma escrita que nos conduz diretamente aos mais negros, estranhos e fascinantes aspetos destas sinuosas mentes tornam-no impossível de largar do início ao fim. E fica no pensamento durante muito tempo.
 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

O Espião Português (Nuno Nepomuceno)

André Marques-Smith tem uma vida dupla. Oficialmente, dirige o Gabinete de Informação e Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Nas sombras, trabalha para uma agência secreta que parece ter em mãos uma possível descoberta revolucionária. Mas nem o próprio André sabe como todo o seu mundo assenta em frágeis mentiras. E que a sua participação na busca pelos documentos do Projeto Lebodin pode fazer implodir todo o seu mundo.
Parte da magia de regressar, por assim dizer, a um livro onde já fomos felizes é a reconfortante sensação de reencontro. Com um protagonista carismático e vulnerável, um enredo cheio de choques emocionais e um ritmo absolutamente viciante, este é o tipo de livro em que se mergulha de cabeça, e é delicioso notar que essa impressão resiste à segunda leitura. Além disso, conhecer a história não lhe retira impacto: os grandes momentos têm a mesma força e não faltam pormenores para assimilar.
Quem ainda não conhece a história... não sabe o que anda a perder. E pode prepara-se para uma leitura empolgante, com um ritmo alucinante e cheio de surpresas. Povoada por um núcleo de personagens marcantes, humanas e capazes de inspirar emoções fortes. (Sim, vilões incluídos.) E há ainda um ponto que importa sempre destacar nesta história: o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, que se materializa em momentos de grande tensão e intensidade que contrastam com a emoção e a leveza (e também os dramas e dificuldades) das relações de amizade e familiares.
Voltando ainda ao André, sobressai ainda, mesmo num reencontro, a sua falibilidade. Não é uma personagem de atributos perfeitos. Tem sucessos e fracassos, rasgos de brilhantismo e erros de consequências pesadas. Tem força e vulnerabilidade e, acima de tudo, o coração no sítio certo. E é precisamente este equilíbrio de imperfeições que o torna... bem, perfeito.
Há livros que resistem à segunda leitura. E depois há os que se superam no regresso. Este é um desses. Intenso e viciante, emotivo e com deliciosos rasgos de leveza, cativa tanto pela sua teia de intrigas como pelo protagonista magistral. E continua a surpreender sempre, mesmo sendo os momentos já conhecidos. O reencontro perfeito, em suma, e uma história a que vale sempre a pena regressar.