segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Profeta (Kahlil Gibran)

Durante muitos anos, esperou pelo navio que o levaria de regresso à sua terra natal, deambulando entre as gentes e contemplando-as. Agora, é tempo de partir. O povo que o acolheu, porém, tem dificuldades em aceitar essa verdade e pede um último dia da sua sabedoria. Fala-lhes, pois, o profeta. De verdades que, no fundo, já conheciam.
Parte do que constitui a grande beleza deste livro está no seu delicado equilíbrio entre brevidade e vastidão. Não chega sequer às cem páginas e, ainda assim, debruça-se sobre todas as facetas da vida, de forma concisa, é certo, mas precisa, profunda e focada no essencial.
Outra razão de beleza está na harmonia das palavras e em como parecem falar de dentro da página. É absurdamente fácil imaginar o profeta a falar às pessoas, ouvir a sua voz a discursar. E há tanto de beleza e de harmonia neste discurso que as frases facilmente se entranham na memória.
Ainda um último ponto a ponderar prende-se com a inevitável espiritualidade. Envolve uma certa medida de crença, mas sem os limites estritos de uma fé específica. E assim, facilmente fala a todo o tipo de convicções, de forma mais ou menos completa, mas sempre próxima e sempre marcante.
É uma leitura muito breve, mas cheia de material para reflexão. Uma visão singular, mas que fala às nossa próprias perceções. E uma voz belíssima, harmoniosa, sedutora, cheia de palavras e imagens memoráveis. Fascinante, em suma.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Armazém Central: Ernest Latulippe | Charleston (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp)

Notre-Dame-des-Lacs sempre foi um sítio pacato... até ao dia em que as coisas começaram a mudar. Agora, há tensões no ar e dúvidas acerca do futuro. A partida de Marie para Montreal, sem qualquer indicação de quando poderá regressar, deixou os habitantes em alvoroço. Uns acham que é apenas justo. Outros sentem a sua falta. E todos começam a ver que a vida sem o armazém é mais difícil do que julgavam. Esperam que ela volte, e em breve. Mas uma coisa é certa: Marie até pode voltar de Montreal, mas levará consigo um pouco da nova liberdade que acaba de descobrir...
Chegados ao sexto e sétimo episódios desta série, existe já um conjunto de características que são, à partida expectáveis: o cenário vasto e tranquilo onde tudo acontece, o meio pequeno e coeso, onde todos sabem tudo e todos têm uma opinião a dar sobre todos os comportamentos, a forma como a mudança é interpretada como uma ameaça, para depois se revelar como algo diferente... É esta, de certo modo, a base de todos os volumes anteriores, e este não é exceção. Partidas e regressos, mudanças e reencontros e a introdução de novos elementos num cenário onde tudo muda, sem nunca perder de vista a base essencial.
Algo que também nunca deixa de cativar nestes livros é que, sendo embora uma história muito específica passada num espaço muito singular, tem, ainda assim, algo de comum a todos os meios pequenos. A união e a entreajuda quando alguém precisa, em contraste com a inevitável circulação de boatos e falatórios sempre que algo ou alguém não está de acordo com os padrões convencionais; a forma como certos locais se tornam ponto de encontro para toda a comunidade; e claro, a proximidade de um meio onde todos se conhecem. É uma história específica, mas onde é fácil reconhecer pontos de familiaridade, o que a torna ainda mais próxima. Além disso, sendo uma história que vive mais das relações entre as personagens do que dos grandes momentos, embora também os haja, esta afinidade emocional torna-se especialmente marcante.
É ainda - o que, aliás, é apenas expectável - uma história que vive tanto da imagem como da linguagem verbal. Claro que não faltam momentos notáveis no diálogo, que tem também as suas singularidades, mas há como que uma alma especial na vastidão dos cenários, na expressividade dos rostos e até na presença discreta, mas sempre oportuna, dos vários animais ao longo da história, que acrescentam um delicioso laivo de ternura. É como se a vida das personagens transbordasse das páginas - ao ponto de alguns dos momentos mais marcantes serem aqueles em que não há diálogo nenhum.
É sempre um prazer regressar a esta aldeia e à sua comunidade coesa. E cada história é não só um novo desenvolvimento na vida dos seus habitantes, mas também uma reflexão sobre a mudança e o progresso. Leva-nos a viajar e faz-nos refletir, em suma. E isso, associado à sua beleza transbordante, é mais do que suficiente para tornar este livro inesquecível. Muito à semelhança dos anteriores, aliás.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Do Rio ao Mar (Manuel Rui)

Do rio ao mar, fluxo eterno e inevitável das águas... mas não só. Também de fluxos são feitas as vidas dos homens e também eles percorrem caminhos de descoberta, de criação e de perda. Como a família que, discretamente, se vai revelando nas palavras deste livro, homem, mulher e criança, plenamente inseridos no costume e na mitologia da comunidade a que pertencem, mas confrontados com a necessidade de migrar, de fluir. São história sem história, caminho feito de falas discretas... mas caminho, ainda assim, do rio ao mar.
Às vezes, ao ler um livro breve, fica a impressão de que tudo é demasiado conciso, de que mais haveria a dizer. Seria, aliás, de esperar essa impressão neste livro, pelo menos até certo ponto, pois vive mais de imagens poética e os acontecimentos insinuam-se nas sombras da imagem. Pois bem, não é assim. A brevidade é a forma perfeita para este percurso, pois traça linhas individuais, mas deixa em aberto percursos comuns. A tribo, os hábitos, as pragas, as guerras, a fuga, são passos muito específicos desta viagem. Mas têm o seu lado universal e o facto de tanto ser deixado à imaginação de quem lê torna essa universalidade mais óbvia.
Outro aspeto que sobressai é, naturalmente, a parte visual. É um livro bonito de folhear, com os seus contrastes de preto e branco. E é também um livro enigmático, já que as ilustrações algo ambíguas, mas estranhamente adequadas, evocam na perfeição a aura a modos que tribal que brota das palavras.
Ainda um último ponto a destacar é a inesperada emotividade que transborda das palavras. Sendo um texto essencialmente poético, em que acontecimentos e visões surgem de forma relativamente ambígua, não deixa de ser notável a forma como estas personagens aparentemente difusas acabam por se entranhar no coração. Além disso, esta voz mais poética, mais vaga, está repleta de frases memoráveis, que acabam por ir para lá do percurso individual das figuras que vão surgindo.
Muito breve, mas muito cativante, é quase tanto o que diz como o que deixa em aberto. Mas essa ambiguidade acaba por ser também uma força, pois funciona como um apelo à imaginação. Afinal, é de fluxos que fala... e o fluxo do imaginário vive em todos nós.

domingo, 21 de novembro de 2021

A Biblioteca da Meia-Noite (Matt Haig)

Nora Seed tem muitos arrependimentos. Ao longo da vida, sente que as suas escolhas nunca foram as melhores e, ao olhar para o que tem agora, sente que ficou aquém em tudo e que falhou a todos os que a rodeavam. Já não vê razões para continuar, e é por isso que decide pôr termo à vida. Mas, em vez do nada ou do além, depara-se com o mais inesperado dos lugares: uma biblioteca. Uma biblioteca entre a vida e a morte, onde o tempo parou na meia-noite e onde cada livro é uma vida alternativa: a vida correspondente a cada arrependimento e ao que teria acontecido perante uma decisão diferente. Nora vê-se, pois ante a possibilidade de viver todas as vidas que não viveu e de escolher, talvez, uma que lhe sirva melhor. Mas será realmente assim tão simples? E estará a vida perfeita a apenas uma decisão diferente de distância?
Parte do encanto dos livros deste autor, e diga-se desde já que este não é exceção, é a forma como transmite uma mensagem positiva sem criar, de modo algum, uma visão demasiado cor-de-rosa. Muito pelo contrário, aliás. Conhece como ninguém as profundezas insuspeitas daquele fundo mais fundo quando julgámos que já batemos no fundo e, por isso, cada uma das suas histórias é uma viagem diferente através do que nos abala e também uma lembrança das razões por que a vida continua... mesmo a partir do fundo. Neste caso, a protagonista está perfeitamente embrenhada nesse abismo e é a partir dessa raiz sombria que a história se vai desenvolvendo. E a viagem de descoberta de Nora - dos sonhos, da imprevisibilidade das coisas, da importância das pequenas coisas, do amor, da vida, enfim - leva-nos a refletir sobre como essas realidades se repercutem em nós.
Outra das grandes forças deste autor é a capacidade de abordar temas sérios com leveza, sem lhes retirar a sua devida importância, mas transpondo-os para situações mais simples, com rasgos de ternura, de emoção e de humor. O caminho de Nora está cheio de momentos intensos e dramáticos, mas também o está de pequenos gestos comoventes e de rasgos inesperadamente divertidos, o que faz com que a leitura seja sempre surpreendentemente leve... mesmo nos momentos inevitavelmente mais sombrios.
E, claro, importa olhar ainda para um outro aspeto da construção desta história: a biblioteca. É ela, afinal, que está no cerne de todo este percurso. É uma ideia singular, e assenta numa teoria fascinante. Mas é sobretudo uma visão especial sobre o nosso lugar do mundo e a vida que nos coube em sorte. Se víssemos a nossa história como um livro, como o classificaríamos? E que opinião teríamos dele, já agora? A ideia de uma biblioteca de (infinitas) possibilidades é particularmente cativante para quem entende os livros como histórias vivas. Porque também nós temos uma história, não é?
Leve, emotiva e cheia de beleza, há algo de único e de irrepetível nesta história sobre vida e morte. Algo que nos fala a todos sobre as nossas imperfeições e arrependimentos e nos leva a viajar com a protagonista e a ver nela um pouco de nós. É uma história memorável, como a biblioteca que lhe serve de base. E carregadinha de emoção, da primeira à última página.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O Combate Quotidiano - Volume Um (Manu Larcenet)

A vida é feita, muitas vezes, de expetativas, e é com base nelas que construímos as nossas vidas. Até ao dia em que o que parecia ser a escolha de uma vida deixa de ser assim tão agradável. Esta é a história de um fotógrafo que, cansado da vida que construiu, decide deixar tudo para trás e tentar descobrir o que realmente quer e quem realmente é. Só que esse caminho não é tão fácil como parece. Até o amor mais incondicional do mundo tem os seus limites na inevitabilidade da morte. E as novas relações que vão surgindo também não são imaculadas - todos carregam sobre os ombros a sombra de um passado e das suas consequências. E a vida vai passando... e as coisas vão mudando... e a busca da identidade começa a revelar menos certezas e mais ambiguidades.
Parte da beleza deste livro está na forma como, partindo de uma história muito pessoal e singular, transmite situações e pensamentos com que qualquer leitor facilmente se poderá identificar. Escolhemos uma profissão, mas a vida leva-nos por outros rumos. Esperamos construir relações, mas nunca conhecemos realmente ninguém. Julgamos que alguém é uma boa pessoa, ou que determinadas escolhas fazem com que seja impossível sê-lo, mas há mais vida para além dessa escolha. Idolatramos a obra de alguém, mas o criador é tudo menos perfeito. E somos... somos o que somos, apesar de tudo isto. Tal como o protagonista deste livro.
Outra das grandes forças desta história, e da forma como está construída, é a forma como vive das pequenas coisas. Não é propriamente um livro que viva de grandes dramas, pois até as inevitáveis perdas assumem o seu lugar na inevitabilidade do percurso. Mas dá alma e emoção até aos mais pequenos momentos, do primeiro encontro com alguém à aceitação das suas falhas. E, ao longo de todo este percurso, há todo um leque de emoções, da ternura ao humor, da nostalgia à revolta, da angústia à esperança. A angústia acaba, aliás, por ser quase uma personagem, e uma personagem que nos aproxima inesperadamente da história.
Visualmente falando, fica, mais do que uma impressão específica, a sensação de que repercute na mente a pegada emocional das personagens. Os rasgos vermelhos da angústia, o azul da melancolia, as expressões contemplativas da perda que se reflete nas personagens... é como se as emoções falassem através dos traços. E, numa história que vive tanto do interior das personagens como do seu exterior quotidiano, este retrato visual das emoções é particularmente importante.
Um combate quotidiano... é disso que se trata, de facto. Contra a angústia, contra a tristeza, contra a desorientação, contra o que nos faz sentir menos vivos enquanto o estamos. E um combate que todos conhecemos de alguma forma. É essa, no fundo, a verdadeira marca desta história em que não somos o protagonista, mas entendemo-lo. Ou o que ele reflete de nós.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nós Tínhamos de Acontecer (Gayle Forman)

Tal como o pai, Aaron julgava que os livros eram milagres... até ao dia em que o seu mundo colapsou. Agora, são apenas o cerne de uma crise que tem de resolver para se libertar. E é por isso que decide vender a livraria da família, mesmo sabendo que isso irá partir o coração do pai. Só que é nesse exato momento que começam a acontecer coisas inesperadas. E Aaron começa a descobrir que nem todos os inevitáveis são negativos.
Provavelmente o aspeto mais marcante deste livro prende-se com o contraste entre os temas mais sérios e a leveza geral da história. Fala de situações duras como o vício, as dificuldades financeiras e o luto, mas constrói uma história cheia de momentos leves e divertidos. Tanto que começa por parecer um pouco exagerada, mas vai ganhando força com o evoluir dos acontecimentos.
Outra das grandes forças deste livro é, naturalmente, a sua relação com os livros e as histórias em geral. Qualquer leitor assíduo se identificará facilmente com a visão da leitura enquanto milagre, e esta perspetiva cria também uma proximidade mais profunda, mesmo quando as escolhas das personagens não são fáceis de entender. Além disso, se é certo que as personagens se mostram por vezes caricatas, também o é que têm o coração no sítio certo, e que as suas imperfeições e vulnerabilidades as tornam também mais humanas.
Finalmente, importa destacar o crescendo de emoção que se vai desenvolvendo ao ritmo do enredo e que culmina num final que, não sendo perfeito, tal como a vida não é, acaba por ser, ainda assim, perfeitamente adequado. Não há finais absolutamente felizes, mas há a felicidade possível e a superação. Como na vida, não é?
Leve e com o seu lado caricato, mas muito cativante e cheio de emoções fortes, trata-se, pois, de uma história de descoberta sobre o que somos e o que nos ajuda a viver. Uma bela viagem, em suma.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Initium Magia! (María J. Cuesta)

Todos nós já lemos histórias de magos e feiticeiros, histórias que nos transportaram para mundos de poderes insondáveis ao alcance de uma palavra ou do agitar de uma varinha mágica. Mas sempre entendemos a magia - ou pelo menos a partir de uma certa idade - como fruto da imaginação, como algo que só existe nas histórias. Será assim? Ou será mais o contrário? Talvez as histórias e a imaginação sejam as bases da magia e possa haver magia nas coisas mais inesperadas: no lápis que faz aparecer figuras e palavras numa folha em branco, nas viagens que nos levam à aventura, nos objetos do quotidiano que podem ser base para a imaginação e até nos números e no muito que podemos fazer com eles. Este livro fala-nos de magos e de magia. De vassouras, feitiços e varinhas mágicas. Mas fala-nos sobretudo da magia da imaginação.
Provavelmente um dos aspetos mais interessantes deste livro é a forma como desperta a nostalgia, a lembrança das muitas histórias de magia que fomos conhecendo ao longo da vida, construindo a partir delas um tipo de magia diferente. São fáceis de reconhecer as muitas referências que surgem ao longo do livro, mas são particularmente notáveis os contrastes entre estas referências e um tipo de magia mais simples: a da vida quotidiana e das suas infinitas possibilidades.
Outro aspeto marcante tem a ver com o facto de, apesar de ser um livro muito simples, deixar também a impressão de ser bastante completo. Faz sentido, aliás, que seja simples, ou não fosse um livro pensado para os mais novos. Mas é completo sobretudo por isto: porque aborda as múltiplas facetas do que imaginamos ser a vida de um mago e porque cada uma destas facetas reflete um aspeto da nossa vida (alegadamente) não mágica. Em suma, transpõe para a realidade as potencialidades da imaginação, o que dificilmente poderia ser mais positivo, principalmente tendo em conta o público a que se destina.
Importa destacar, por último, os muitos "truques de magia" sugeridos ao longo do livro, que, além de estabelecerem uma certa interatividade, podem também ser um belo ponto de partida para despertar a curiosidade para esse tipo muito específico de magia que é a ciência. Brincar com os números e com os objetos pode ser um belo ponto de partida para despertar a curiosidade sobre como o mundo funciona, e este aspeto educativo contribui também para fazer deste livro uma descoberta cativante.
Tudo se resume, portanto, a uma conjugação eficaz entre a misteriosa e fascinante magia de outros mundos e outras histórias e a tão conhecida mas tão surpreendente magia deste mesmo mundo em que vivemos. Perfeito para despertar a curiosidade e a imaginação dos mais novos... e a magia da memória naqueles que entre nós já não o são assim tanto.

sábado, 13 de novembro de 2021

Confia em Ti (Ralph Waldo Emerson)

A ideia de confiança pode parecer algo muito simples, mas é tudo menos isso. E, embora possa parecer que o mais difícil é confiar nos outros, pois não se sabe realmente que resultados se poderão obter, a autoconfiança não é necessariamente mais fácil. Vivemos num mundo de interações, de ruído, de multidões que influenciam e arrastam. E manter a serenidade e a confiança em nós próprios num mundo em permanente turbilhão é tudo menos simples. É sobre essa confiança - nas escolhas, na ação, na nossa própria natureza - que este pequeno livro nos fala.
Sempre que se discute o que faz de um livro um clássico, um dos termos inevitavelmente evocados é a intemporalidade: a forma como uma história ou visão do passado se repercute com precisão nos nossos tempos. Bem, este livro cumpre plenamente esse requisito. As referências podem ser específicas do seu tempo, mas a mensagem transcende-o e as suas ideias são tão pertinentes para os nossos dias como foram no passado. E a sua capacidade de nos fazer refletir sobre o que somos - e principalmente sobre como nos vemos - não podiam ser mais atuais.
Trata-se de um livro muito breve, o que significa que, apesar do seu registo algo contemplativo, se lê praticamente de uma assentada. Mas isso não se deve apenas à brevidade. Há na forma como este livro está escrito como que uma voz que nos fala por dentro: facilmente o podemos ouvir como um discurso à medida que as páginas vão passando. E, assim, o efeito que fica, logo ao primeiro contacto, é como que uma vontade de ouvir a lição até ao fim para depois a assimilar.
Trata-se ainda de um texto repleto de citações memoráveis, de ideias expressas de forma tão clara que quase poderiam surgir como mantras. E, tendo isto em vista, importa salientar um aspeto particular desta edição: além de visualmente bonito, põe em evidência muitas destas citações mais pertinentes, o que facilita os inevitáveis regressos às ideias memoráveis do texto. Sendo certo que todo ele é propício a um regresso, pois, além de muito marcante na mensagem, é também uma leitura muito agradável.
Finalmente, destaca-se um último ponto curioso: sendo um texto sobre autoconfiança e sobre não nos deixarmos influenciar demasiado pelas opiniões e determinações dos outros, é interessante notar a presença de possíveis pontos de discordância. Ao longo deste texto, são afirmadas convicções fortes, e é inevitável não se estar absolutamente de acordo com tudo. Mas, tendo em conta o tema, é também inevitável que estes pontos de divergência surjam como ainda uma nova base para reflexão.
É uma leitura muito breve, mas cheia de aspetos memoráveis, desde a escrita à mensagem, sem esquecer a forma natural e fascinante como nos conduz à reflexão. E é, por isso, de certa forma, também um início de caminho... O resto cabe-nos a nós percorrer.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

O Comboio da Esperança (Gill Thompson)

Eva tinha um futuro brilhante pela frente, até à noite em que, ao optar pelo caminho mais curto para casa, acabou por ser atacada por um grupo de jovens alemães e todos os seus sonhos ficaram destruídos. Casada à pressa com um homem mais velho, conseguiu, ainda assim, reconstruir-se um pouco e constituir em Praga uma família razoavelmente feliz. Só que também essa tranquilidade é frágil e, quando os nazis invadem o seu país, Eva vê-se confrontada com a mais difícil das decisões: manter a filha ao seu lado, sabendo que o risco é enorme, ou enviá-la para Inglaterra contra a vontade do marido, sabendo que aí estará segura, mas que é possível que nunca mais a volte a ver. Entretanto, em Londres, Pamela sente-se segura e é por isso que dedica todos os seus esforços em proteger as crianças judias que todos os dias chegam ao seu país. Mas a guerra não está tão longe como julga e também a sua família pode vir a ser novamente abalada pela perda.
Provavelmente a maior força deste romance é a forma como entrelaça as vidas das diferentes personagens, num contexto que é por natureza complexo e sem nunca seguir pelas soluções mais simples, mas também sem nunca perder de vista a proximidade emocional que faz com que toda esta história transborde de intensidade e de emoção. Basta o contexto em que decorre para perceber que não faltarão momentos dramáticos e dolorosos, mas a autora tem uma capacidade natural para fazer brotar emoção tanto das pequenas coisas como dos grandes momentos.
Outro aspeto marcante é que, ao acompanhar diferentes personagens, abre espaço também a diferentes perspetivas do que está a acontecer. Pamela surge de um ambiente de relativa segurança, enquanto Eva está no cerne de um crescendo de perigo. Miriam encontra refúgio, carregando, porém, consigo a sombra da perda. Will representa a impetuosidade, mas também as consequências que resultam, por vezes, de fazer uma escolha corajosa. E todos eles - e mais - representam personalidades muito próprias num mundo cheio de complexidades e ambiguidades, onde nada pode ser perfeito e os finais felizes parecem mais difíceis do que nunca de imaginar.
Ainda um último ponto notável surge da própria escrita e do equilíbrio entre os seus momentos quase poéticos, carregados de uma emotividade transbordante, e a lucidez com que descreve a brutalidade dos factos. Quando as próprias personagens são confrontadas com escolhas ambíguas, a perceção clara de que certo e errado não deixaram de existir, mesmo em situações impensáveis, é algo de particularmente relevante numa história como esta.
Trata-se, portanto, de um livro carregado de emoção e de intensidade, com uma história complexa, mas sempre fascinante, e personagens marcantes em todas as suas facetas. Uma leitura notável, e uma história de música e de afeto que brilham mesmo no meio da mais densa escuridão.

domingo, 7 de novembro de 2021

Jane Goodall (Beatrice Cerocchi e María Isabel Sánchez Vegara)

A história de Jane Goodall é sobejamente conhecida, sobretudo no que diz respeito ao seu estudo dos chimpanzés e às suas ações pioneiras na defesa do planeta. Mas, como muitas outras histórias, também esta parte de um grande sonho de criança. É desse sonho e dessa história que esta livro nos fala, contando de forma concisa e cativante, as origens e o crescimento de um grande percurso.
Parte do que cativa nesta coleção é a capacidade de resumir de forma muito sucinta - ou não fosse este um livro infantil - um percurso sempre vasto e notável. Este caso não é exceção. De forma muito, muito breve, mas também muito cativante, com a rima a contribuir para lhe dar também um ritmo agradável, este livro reduz ao essencial um vasto percurso, apresentando aos mais novos a sua protagonista e despertando desde logo a curiosidade em saber mais.
Outro aspeto particularmente bem conseguido prende-se com as ilustrações, cheias de cor e de criatividade, mas também fiéis à realidade que lhe serve de base. Basta, aliás, consultar a breve nota biográfica no final para reconhecer certas semelhanças entre as fotografias de Jane Goodall e as imagens deste livro, o que contribui também para criar uma ligação mais forte.
Ainda um último ponto, comum aos vários livros desta coleção e também bem presente aqui, é a forma como cada história individual contribui para transmitir uma mensagem muito clara: a de que os grandes sonhos de infância se podem converter em realidades, com esforço, prática, dedicação e crescimento. Alimentar as aspirações dos mais novos pode ser o ponto de partida fulcral para as grandes figuras do futuro, e este livro é uma bela forma de recordar isso.
Muito breve e simples, mas muito cativante e cheio de cor e vida, trata-se, pois, de um belo livro para dar a conhecer aos mais novos a grande figura que o protagoniza. E, tal como os outros volumes da coleção, de uma boa forma de partilhar conhecimento e aventuras.

sábado, 6 de novembro de 2021

Dante - Uma Vida (Alessandro Barbero)

De fama incontornável devido à sua Divina Comédia, o nome de Dante Alighieri é conhecido por todos. Menos conhecida será certamente a história da sua vida, até porque existem múltiplas teorias e menos certezas do que as desejadas a esse respeito. Ainda assim, há linhas que podem ser traçadas, relações que podem ser admitidas, hipóteses que se afiguram como mais prováveis. E é a partir destes elementos e mais que nasce esta biografia memorável.
Parte do que sobressai nesta biografia é a sua abrangência às vezes exaustiva (sobretudo nas notas) e a forma como, apesar da vastidão de informações que contém, consegue ser uma leitura acessível e até mesmo empolgante. Acompanhando os passos conhecidos - e explorando as teorias sobre os menos conhecidos - da vida de Dante, traça um percurso completo, dentro das possibilidades do conhecimento, para uma vida que é mais do que o se reflete na obra.
Faz também o contrário, encontrando nas diferentes obras bases para fundamentar os factos biográficos. E assim, partindo de uma vida inevitavelmente envolta em mistério, dada a escassez de documentos e a abundância de teorias, consegue traçar um retrato completo do poeta e da sua vida. Vida essa cuja base pública assenta curiosamente mais na política do que na poesia que lhe granjeará a fama imortal.
É um livro relativamente longo e, dada a abundância de informação, exige o seu tempo para ser devidamente assimilado. Mas nunca se torna monótono ou cansativo. Há momentos, aliás, em que se lê quase como um romance, tal é a capacidade do autor de juntar as peças para formar uma imagem coesa. E tem ainda um agradável o efeito secundário: o de despertar uma profunda vontade de reler a Divina Comédia, agora tendo em mente os conhecimentos transmitidos nesta obra.
Vasto, mas acessível; extenso, mas sempre cativante; carregado de informação, mas capaz de intrigar como um mistério dadas as inevitáveis lacunas da história. Assim é esta biografia, história de uma vida complexa e misteriosa num tempo igualmente misterioso e fascinante. Recomendo.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

O Humor da Minha Vida (Paz Padilla)

A morte é uma das grandes inevitabilidades da vida e, por mais que julguemos o contrário, estamos muito longe de estar preparados para lidar com ela. Com a nossa e sobretudo com a dos que nos são mais queridos. Paz Padilla sofreu duas grandes perdas num curto espaço de tempo, mas esse percurso ensinou-a a ver a morte - e a vida, sobretudo - de uma forma diferente. Esta é a história da sua viagem, a narrativa das perceções que foi construindo e a sua própria visão de como lidar com a iminência da morte e com o peso do luto: com força, humor e muito amor.
Quando pensamos na morte, o que vem inevitavelmente ao pensamento são imagens sombrias, sentimentos tenebrosos, a mais que conhecida imagem da figura encapuzada a segurar uma foice. São também emoções difíceis, sensações desconfortáveis e muitas, muitas perguntas. Quem nunca se questionou, afinal, sobre a sua própria mortalidade? Por isso, uma das primeiras coisas a surpreender neste livro é necessariamente a sua leveza. Com um sentido de humor muito próprio, que contrasta com a gravidade do tema, e também com uma visão muito abrangente, com uma certa medida de espiritualidade, mas sem se cingir a crenças específicas, trata-se de uma leitura surpreendentemente leve e descontraída, com momentos verdadeiramente divertidos e uma visão bastante positiva da continuidade da vida face à morte.
Tendo como objetivo assumido a possibilidade de ajudar pessoas a lidar com a mesma experiência, este livro pode ser classificado de várias formas. Tem o seu quê de livro de autoajuda, embora assumindo uma forma bastante diferente do comum, mas é também a história de um percurso pessoal, uma espécie de livro de memórias, pontuado ainda por algumas análises a ideia da morte dos pontos de vista filosófico, religioso e espiritual. Reúne todo um conjunto de elementos diferentes, e fá-lo sem perder a leveza e a proximidade do que é, acima de tudo, uma partilha de experiências pessoais. E é essa proximidade, associada ao já referido sentido de humor, que torna a leitura tão envolvente.
É fundamentalmente uma história pessoal, ainda que carregadinha de aspetos com que muitos leitores se poderão identificar. E, se juntarmos a isto um contexto muito próprio e um sentido de humor também peculiar, haverá momentos de maior proximidade e outros também de uma certa estranheza. Mas domina a proximidade e o que, desta história individual, pode ser transposto para outras. E, assim, torna-se mais do que um testemunho singular; torna-se um ponto de partida para as reflexões de cada um.
Surpreendentemente leve para a história que conta e para as questões que aborda, trata-se, em suma, de um percurso pessoal e intransmissível que abre portas a uma visão mais serena e mais natural da morte e do luto. E basta isso - essa capacidade de expandir horizontes mesmo numa questão tão delicada - para fazer com que esta leitura valha a pena.