quarta-feira, 31 de outubro de 2018

O Mundo de A Guerra dos Tronos (George R.R. Martin, Elio M. Garcia Jr. e Linda Antonsson)

A história de Westeros não começou com a visita do rei a Eddard Stark e sua subsequente nomeação como Mão do Rei. Não, o mundo em que estas personagens se movem é muito mais vasto e a sua história muito mais antiga. Este livro percorre a parte da história que estava por contar, desde o início dos tempos à chegada de Robert Baratheon ao trono, passando pelo longo reinado dos Targaryen e abrangendo toda a vastidão dos Sete Reinos (e até um pouco mais). Profusa e magnificamente ilustrado, dá rostos e paisagens a este vasto mundo, ao mesmo tempo que, numa construção meticulosa e fascinante, dá uma história completa e bastante interessante a um mundo saído da imaginação.
Sendo um livro grande, cheio de cor e com uma vasta abundância de belíssimas ilustrações, escusado será dizer que o primeiro elemento a chamar a atenção é o aspecto visual. Basta um primeiro olhar a este grande livro, um primeiro folhear, para se sentir o chamado deste mundo. E, se leram os livros das Crónicas de Gelo e Fogo, então provavelmente já sentiram a curiosidade em saber mais sobre este universo. Bem, este livro responde a essa curiosidade. Exaustivamente.
Outro aspecto notável é que se trata da história de um mundo fictício, mas isso não implica que essa história seja mais simples ou menos desenvolvida. Ler este livro é como ler um tratado sobre a história de um lugar real, com a sua vastidão de reis e de senhores, de povos e civilizações que se sucedem, de guerras, de intrigas, de facções, de conquistas e tratados de paz. Só que... com dragões (e mais uns quantos elementos surpreendentes) a tornar tudo ainda mais interessante.
Já disse que é um livro lindo. Há neste livro várias ilustrações capazes de prender o olhar durante um bom bocado. Mas também o texto tem esse condão: o de dar vida a cenários, figuras e batalhas com a mesma clareza que se estivéssemos a assistir a tudo de muito perto. Surgem até alguns momentos marcantes, embora o narrador do livro pretenda assumir-se como um estudioso imparcial, em que é difícil não sentir um bocadinho do coração a tomar partido. Afinal, é de Martin que se trata - o que significa que ninguém está seguro.
E quanto à curiosidade de saber mais? Bem, nesse aspecto, o resultado é curioso. É que, por um lado, ficamos a saber muito mais sobre este imenso mundo. Mas, por outro, ele é imenso. O que significa que há ainda mais aspectos a descobrir, elementos que, embora descritos de forma bastante clara, deixam no pensamento a questão de como seriam se imaginados mais a fundo. Porque é, afinal, um mundo completo, embora fictício. E esta ambígua sensação de ter ficado a saber muito mais, mas querer saber ainda mais, é a mesma que fica ao ler sobre a história real - porque, no fundo, há sempre mais para contar.
Terminada a viagem, fica, claro, a melhor das impressões: a de um livro belíssimo e fascinante, capaz de abrir portas a novas descobertas sobre um mundo já muito desenvolvido. Imperdível para os fãs das Crónicas de Gelo e Fogo, um livro notável em todos os aspectos. 

Autor: George R.R. Martin, Elio M. Garcia Jr. e Linda Antonsson
Origem: Aquisição pessoal

terça-feira, 30 de outubro de 2018

O Solilóquio do Rei Leopoldo (Mark Twain)

Foi com alegadas intenções piedosas e a mais altruísta das inspirações que Leopoldo II, rei da Bélgica, conseguiu obter para si o governo do Estado Livre do Congo. Só que, nas mãos de Leopoldo... nem livre, nem estado. E se, durante algum tempo, as suas influências e alegadas boas intenções lhe permitiram fazer daquele território o seu próprio "coração das trevas", a oposição acabaria, ainda assim, por chegar. Entre as vozes contrárias contar-se-ia, claro, a de Mark Twain, que, neste curioso solilóquio, consegue, ao mesmo tempo, satirizar a figura real, questionar a aceitação das outras potências e relatar com toda a clareza as linhas essenciais da atrocidade.
Sendo certo que o Solilóquio é, em si, bastante esclarecedor, tanto pelo muito que exprime no texto como pelas imagens que o acompanham, importa começar por referir o extenso e também esclarecedor prefácio de António Araújo. É que livros como O Coração das Trevas podem ter tornado esta história bastante célebre, mas não deixa de ser essencial entender o contexto e as forças em movimento que permitiram que tudo acontecesse. O prefácio é, pois, uma viagem em si mesmo, permitindo compreender os acontecimentos, vislumbrar o alcance das atrocidades e, depois, conhecer também os movimentos da oposição, entre os quais se contaria o próprio Solilóquio.
Importa também dizer que, embora construído como que em estilo de dramatização, este é essencialmente um manifesto - embora seja absurdamente fácil imaginar Leopoldo II a barafustar contra os que o "caluniam" com a verdade. Assim, mais do que o estilo (e, diga-se, quase bastaria o estilo para que a leitura valesse a pena) destaca a mensagem que as palavras transmitem: o relato da brutalidade, que é, em si, factor de choque, mas que serve também de base para uma reflexão sobre o potencial corruptor do poder, principalmente quando concentrado nas mãos de um só homem.
E talvez seja uma coisa estranha de dizer sobre um texto satírico, mas a verdade é que, neste livro, Mark Twain soa invulgarmente sério. Talvez devido ao tema em si (e é do mais sombrio que se pode imaginar) ou a um pessimismo inerente, mas há algo de notável na forma como, de um texto que quase ridiculariza o seu protagonista, é possível nascer uma imagem tão grave.
É uma leitura relativamente breve e bastante cativante - e isto aplica-se tanto ao Solilóquio como ao muito interessante prefácio. Mas é, acima de tudo, um livro pertinente, não só para manter na memória as crueldades passadas, mas para lembrar a facilidade absurda com que, por vezes, as liberdades se apagam. Muito interessante.

Autor: Mark Twain
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Outcast, Vol. 2: Uma Ruína Sem Fim (Robert Kirkman e Paul Azaceta)

Kyle Barnes precisa de respostas. Só assim poderá recuperar um pouco da vida que perdeu. Mas está rodeado de sombras por toda a parte e até o seu único aliado, o reverendo, começa a ter dúvidas sobre a eficácia do que fez no passado. Parece haver demónios - ou seja lá o que eles são - em todo o lado e Kyle só sabe que, mesmo que sinta que está a enlouquecer (ele ou o mundo inteiro) precisa de fazer alguma coisa. Mas o que se passa é tudo menos loucura, e embora Kyle pouco saiba além de que os demónios o chamam de proscrito e anseiam pelo seu poder, há coisas que começam a ganhar forma. E, com as respostas, vêm também novas ameaças... mais uma vez, àqueles que lhe são mais próximos.
Talvez um bom ponto de partida para começar a falar sobre este livro seja o título. Chama-se Uma Ruína Sem Fim e dificilmente poderia ser mais adequado. Pois se já antes a vida de Kyle era feita de sombras, há agora todo um manto de desolação a cobrir tudo o que rodeia. Além do passado que o assombra, assombram-no também agora os actos do presente, e isto deixando de fora a (também muito capaz de assombrar) parte sobrenatural. Há, pois, um manto de profunda tristeza subjacente ao mistério e ao horror e também seja isso o que mais marca neste segundo volume: a sensação de mergulhar nas trevas com Kyle, sabendo que é bem possível que não haja retorno.
É uma história sombria, não só ao nível dos demónios... bem, literais... como também dos demónios interiores das personagens. Estes assumem, aliás, um papel bastante preponderante neste segundo volume. O resultado é um equilíbrio delicado, mas muito eficaz, entre o que parecem ser duas facetas distintas, mas profundamente entrelaçadas, da mesma história: por um lado, o obscuro e fascinante mundo dos demónios, cujas acções e intenções começam apenas a assumir um pouco de sentido; por outro, a história pessoal de Kyle, cujas angústias compreendemos cada vez melhor.
E neste delicado equilíbrio entre o horror e a tristeza também o elemento visual desempenha um papel crucial. É tão fácil sentir o que atormenta as personagens numa frase notável como na expressão devastada que, muitas vezes, lhes atravessa as feições. É tão fácil sentir as sombras nos diálogos do misterioso Sidney como na aura de escuridão que parece envolver todos os locais. E, no fim, não há nada que não faça falta e as personagens entranharam-se de tal forma que é impossível resistir à vontade de descobrir, o mais rapidamente possível, o que reserva o futuro para o atormentado Kyle Barnes.
Inteiramente à altura das expectativas e com um equilíbrio ainda mais intenso que o do primeiro volume entre os elementos de horror e as sombras internas que povoam a alma das personagens, trata-se, pois, de mais um livro viciante, surpreendente e marcante em todos os momentos certos. Altamente recomendado, em suma.

Autores: Robert Kirkman e Paul Azaceta
Origem: Recebido para crítica

domingo, 28 de outubro de 2018

Anassa (Josh Martin)

A história devia ter acabado quando Aula e Joomia se uniram, unindo também assim os seus povos. Mas não foi isso que aconteceu. Embora juntos à força, os dois povos continuam centrados nas suas divergências e Etain, a líder profetizada, está muito longe de conseguir levá-los a superar as diferenças. E eis que tudo se agrava. Primeiro, um dos sues elementos adquire um estranho poder e começa a espalhar o caos na ilha. Depois, um grupo de guerreiros hostis chega a Chloris, inegavelmente mais fortes e decididos a colher os recursos de que precisam, seja qual for o custo para os habitantes da ilha. Agrava-se ainda mais o caos. Etain estava destinada a ser líder - mas, para o ser, tem um longo caminho pela frente. E, com os amigos de sempre e alguns novos e improváveis aliados, terá de arriscar tudo para salvar o seu povo.
Sendo uma continuidade de Ariadnis e, tal como este, narrado de múltiplos pontos de vista, uma das primeiras coisas a chamar a atenção neste livro é a evidente sensação de que o que se deveria atingir com a forma como tudo terminou... não correu bem como o esperado. Ora, isto tem um efeito interessante: por um lado, ressuscita a mesma confusão sentida do início do primeiro livro, pois tudo o que pensávamos saber sobre este mundo é afinal um pouco diferente; por outro, transmite toda a frustração, confusão e medo das personagens, o que acaba por as tornar mais próximas, mesmo quando as suas escolhas não são as mais fáceis de entender.
Outro aspecto especialmente intrigante é esta expansão do mundo, permitindo a entrada de um novo povo com novos comportamentos. Chloris foi alegadamente criada para dar uma nova oportunidade aos humanos, mas, ao que parece, Govinda mantém os mesmos problemas do passado. Escusado será dizer que este é um excelente ponto de partida para a reflexão sobre questões de raça, igualdade e género que, embora surgindo de forma gradual, estão bem presentes ao longo desta história. Além disso, há ambiguidade suficiente para realçar algo de positivo: os defeitos individuais não são os defeitos de todo um povo. E isso é particularmente evidente nas diferenças que separam Vulcan e Sol.
Embora haja muita matéria para reflexão, o ritmo da história nunca se torna pausado. Muito pelo contrário. Há sempre alguma coisa a acontecer, seja uma invasão, uma batalha no mar, uma discussão feroz entre amigos, uma traição ou uma espécie de redenção. Há muitos momentos intensos ao longo da história e também um percurso de crescimento e de aceitação nas personagens. Além, claro, de uns quantos momentos de humor que acrescentam um agradável laivo de descontracção a uma história repleta de tensões.
E quanto ao fim... bem, ficam novamente perguntas sem resposta, nomeadamente acerca de Sol e Domaga (ainda que, em menor grau, também sobre Aula e Taurus). Mas é, ainda assim, o final mais adequado: deixando resolvido o enredo central e, para o resto, todas as esperanças e possibilidades do início de um novo ciclo.
Intenso, cativante e cheio de surpresas, trata-se, pois, de um livro em que todos os elementos parecem contribuir com algo de positivo para criar uma história com uma mensagem forte, personagens tão falíveis quanto complexas e um enredo totalmente imprevisível. O resultado é, claro, uma boa história. E uma boa leitura.

Título: Anassa
Autor: Josh Martin
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A Menina que Queria Salvar os Livros (Klaus Hagerup e Lisa Aisato)

Anna adora ler e, ao longo dos seus quase dez anos, já fez muitos amigos nos livros. E um ou outro inimigo (a vida é mesmo assim). Mas, quando a bibliotecária lhe diz que há livros que são destruídos porque ninguém os leva emprestados, Anna decide salvá-los. De uma só vez, leva cinquenta livros para casa e lê-os a todos. E, quando se sente cansada, a bibliotecária sugere-lhe um último livro com um misterioso final. Anna devora A Floresta Encantada e, quando se depara com o mistério do final, faz tudo para descobrir a resposta que lhe falta. Só que, nos livros como na vida... as respostas nunca são bem as que se esperam.
Bastam as primeiras páginas para perceber o porquê de este ser um livro para leitores de todas as idades - e principalmente para os realmente apaixonados, os que devoram livros como se não houvesse mais dias, que fazem amizade com as personagens e as guardam na memória para sempre. É que Anna é uma das nossas: uma menina apaixonada pelos livros e pela gente que neles habita. O resultado é, claro, empatia imediata e uma afinidade que nunca desaparece à medida que acompanhamos os seus passos.
É também uma história cheia de ternura e que não tem apenas uma mensagem positiva: tem várias! Desde o amor pela leitura à aceitação do futuro desconhecido, passando pela entreajuda, pela descoberta do conhecimento e, enfim, pela vontade de ajudar inerente à pequena Anna, há todo um mundo de valores nesta pequena história. E, além das mensagens, há a história em si, bonita, ternurenta, cheia de surpresas e capaz de conter mundos inteiros na sua simplicidade.
Há mais ainda. Além do texto cativante, da história surpreendente da protagonista especial, há um delicioso equilíbrio entre texto e ilustrações, com o aspecto visual a dar nova vida à história, ao mesmo tempo que enche de cor, de sonho e principalmente de criatividade esta história sobre sonhos... e cores... e a criatividade infinita contida no interior de um livro. Tudo tem precisamente a medida perfeita e leva-nos na aventura de Anna como se estivéssemos lá, ao lado dela.
Fica, então, esta impressão encantadora de termos vivido uma aventura com alguém que partilha da mesma paixão. Uma aventura feita de sonhos e de inocência, mas, acima de tudo, do poder das histórias. Belíssimo. 

Autores: Klaus Hagerup e Lisa Aisato
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidades Bizâncio

Estamos a entrar numa nova Idade de Ouro da exploração espacial.
Até agora do domínio da ficção, transferir a civilização humana para outros planetas é cada vez mais uma possibilidade científica – e uma necessidade se, algum dia, tivermos de deixar a Terra.
Michio Kaku, físico de renome mundial, explora a visão deslumbrante de como poderá a Humanidade desenvolver uma civilização sustentável no espaço, revelando-nos os progressos das diversas ciências que poderão permitir-nos terraformar e construir cidades habitáveis em Marte e mais além.

 «Deslumbrante… Kaku tem um pensamento de grande amplitude e as perspectivas que nos apresenta valem a viagem.» - The New York Times


A  hora dos desenhos animados chegou e as três crianças preparam-se para se instalarem em frente ao ecrã de comando na mão. Mas o avô tem um plano diferente: propõe-lhes contar uma história.
O seu repertório é contestado pelos pequenos que já conhecem todas as histórias. Resolve, então, mudar de táctica e acaba por conseguir cativá-los para desenvolverem a sua própria história.
Um livro da autoria de Jean Leroy e Matthieu Maudet sobre o poder e a importância da imaginação.
Para crianças a partir dos 3 anos.


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Em O Todo ou o seu Nada, o autor recria, com as liberdades próprias do ficcionista, a vida atribulada e aventurosa de João Falcato, homem de sete fôlegos e personagem multifacetada do século XX português: marinheiro e náufrago, viajante, escritor, professor, jornalista, vinicultor.
Contador de histórias, viveu uma existência ora trágica, ora mediana. Criador de ilusões, possuía a sabedoria para, entre a tristeza e a alegria escolher a alegria, e entre o nada e a tristeza escolher a tristeza.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Mal Me Quer (M. J. Arlidge)

Helen Grace desceu ao inferno e voltou, mas a sua vida nunca mais será a mesma. Onde antes havia uma confiança imbatível, há agora suspeita e instabilidade. Mas nunca como agora Helen precisou tanto de estar no seu melhor. Há um par de assassinos à solta e o que parece movê-los é um furioso plano de vingança. Numa corrida contra o tempo, Helen e a sua equipa terão de concentrar todos os seus esforços no caso, pois cada momento perdido pode significar uma nova vítima. E cada fracasso é uma nova dúvida numa base já bastante abalada.
Começo pelo evidente: é sempre uma maravilha reencontrar Helen Grace e a sua equipa (mas principalmente Helen). Ainda assim, e tendo em conta os acontecimentos do último volume, as expectativas eram particularmente elevadas e as possibilidades particularmente delicadas. Não foi propriamente uma surpresa, por isso, quando, após um primeiro vislumbre do impacto do passado recente, o caso seguiu um rumo (salvo raros momentos de abertura) menos pessoal. A surpresa vem depois, quando, embora concentrada no caso e na inevitável corrida contra o tempo, os inevitáveis paralelismos e as cicatrizes do passado começam a vir à superfície. E no fim... Bem, no fim, naquele momento em que pensamos que desta vez o coração vai sair um bocadinho menos abalado desta vez, é quando as verdadeiras sombras vêm à tona, e é isso que torna o final tão impressionante.
Chegados a este ponto da série, talvez não seja preciso dizer muito sobre as personagens. Complexas, falíveis, fortes na essência, mas com as vulnerabilidades que tanto as humanizam, deixam em cada momento a sua marca específica. E, claro, Helen é Helen, com todos os seus demónios e cicatrizes. Mas o mais impressionante aqui é a delicada mistura de familiaridade e de mudança: familiaridade, porque as personagens mantêm ainda e sempre a sua identidade essencial; mudança, porque as experiências vividas projectaram-nas para uma perspectiva diferente. E isto não se aplica apenas a Helen, mas também à sempre ambígua Emilia Garanita.
Mas, claro, há o caso em si e, embora seja a linha mais global o que mais marca quem acompanha a série desde o início, este caso em específico tem também muitos aspectos notáveis. Como sempre, é uma investigação com princípio, meio e fim - e, principalmente, com muitas surpresas, reviravoltas, momentos de tensão e perigo e uma visão muito precisa da mente dos criminosos. Além disso, e também como habitual, nunca se trata de um caso fácil, não só em termos de apanhar os responsáveis, mas da própria entrada nos seus pensamentos. Ao entrar na mente de Daisy, Helen chega até a ver-se a si mesma. E é aqui, no ponto em que as duas facetas da história convergem, que nasce a verdadeira marca deste livro.
Helen pode não ser a mesma desde Holloway. Mas as sombras tornaram-na (ainda) melhor. E isso reflecte-se nesta história intensa, sombria e absolutamente viciante, em que a história pessoal da protagonista se alia a um caso complexo e surpreendente para dar forma a um livro genial. Recomendo, pois claro. Como sempre. E mal posso esperar para ver o que vem a seguir. 

Título: Mal Me Quer
Autor: M. J. Arlidge
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A Distância entre Mim e a Cerejeira (Paola Peretti)

Mafalda tem apenas nove anos, mas sabe já que tem um grande obstáculo pela frente. Sofre de uma doença rara que, dentro de poucos meses, a deixará completamente cega. E, enquanto os pais tentam encontrar a melhor forma de lidar com o que está para vir, Mafalda vai procurando, à sua maneira, uma solução impossível para a sua situação. Faz listas de tudo o que gosta, mas que deixará de poder fazer. Curiosamente, faz também um novo amigo. Mas, acima de tudo, planeia uma nova vida, na cerejeira da escola, tal como Cosimo, a sua personagem favorita de O Barão Trepador. Mafalda está a descobrir a vida da forma mais difícil - mas talvez, mesmo às escuras, seja possível encontrar o essencial.
Não é propriamente uma surpresa que o primeiro elemento a cativar - e o que mais força terá até ao fim - seja a inocência que transborda de toda a história. Contada pela voz de Mafalda, mostra o mundo pelos olhos de alguém que, mesmo com uma grande sombra a pairar-lhe sobre o futuro, vê a vida como repleta de possibilidades. E é desta inocência em contraste com a terrível escuridão que se aproxima que nascem os grandes momentos de emoção, pois é impossível não sentir com Mafalda quando os seus sonhos e esperanças se apagam. 
Há momentos de inevitável tristeza, mas não é, ainda assim, uma história triste. Não só porque o caminho de Mafalda é muito mais do que uma jornada rumo às trevas - é a descoberta da amizade, a do que existe para lá das limitações, a de que a vida continua mesmo depois da perda e a de que, embora a inocência se vá perdendo, há outras coisas boas para ocupar o seu lugar - mas, principalmente, porque há toda uma base de ternura e de afectos à sua volta. Nem sempre é fácil entender as escolhas das personagens, mas é natural que assim seja, pois são essencialmente pessoas imperfeitas a tentar lidar com as dificuldades da vida. Mas todos fazem o seu melhor e o essencial - essa tão esquiva e intensa criatura - nunca deixa de se manifestar.
Contar a história da perspectiva de Mafalda implica uma inevitável limitação: as histórias pessoais de algumas das outras personagens passam para segundo plano. Ainda assim, e embora fique aquela curiosidade em saber mais, por exemplo, sobre a vida de Estella, a verdade é que a alma essencial dessas personagens está presente: Estella é a estrela que guia Mafalda. E, tendo embora vida própria, é nesse aspecto que mais brilha.
A impressão que fica é, pois, a de uma história simples e inocente, mas, acima de tudo, muito enternecedora. Reflectindo na escrita a personalidade de Mafalda, a autora dá-lhe vida em todos os momentos - nos tristes, nos pensativos e também nos mais divertidos. E é isso que, no fim, fica na memória: Mafalda pode ter ficado às escuras, mas o seu coração continua cheio de luz. E capaz de nos comover a todos. 

Autora: Paola Peretti
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 23 de outubro de 2018

A Provadora (V. S. Alexander)

1943. Vivem-se tempos perigosos em Berlim, com a ameaça dos ataques aéreos a pairar sobre as cabeças de todos. É por isso que os pais de Magda Ritter decidem mandá-la embora, em busca de trabalho noutro local. Só que esse trabalho não é tão seguro quanto julgavam. Magda é recrutada para ser uma das provadoras de Hitler, o que significa um treino exaustivo, mas também um perigo constante. Principalmente porque, embora poucos no exterior o saibam, a solidez do regime começa a desmoronar. E embora o seu papel de provadora comece por ser apenas um trabalho, ainda que perigoso, à medida que começa a ver as duras verdades que nunca conheceu, Magda vê-se envolvida numa conspiração que, se bem-sucedida, poderá, talvez, salvar o pouco que resta.
Dividido entre a história pessoal de Magda (e, mais tarde, do seu interesse amoroso) e um cenário global em risco de colapso, este é um livro que começa por marcar mais pelo que mostra do mundo do que propriamente pelas suas personagens. E o que mostra parte precisamente de Magda e do mundo que a rodeia. Apesar da guerra, o mundo parece continuar a girar à volta do partido, ante a indiferença geral, e posta perante a necessidade de se filiar no partido para poder trabalhar, essa escolha surge como meramente pragmática. A primeira impressão é, pois, a de uma indiferença generalizada que, tendo em conta o contexto da época, não pode parecer outra coisa que não realista.
Não surpreende, por isso, que não haja propriamente uma empatia imediata, embora seja naturalmente compreensível a cedência inicial de Magda ante a necessidade de ganhar a vida. Mas esta é uma história sem heróis absolutos. Magda e o seu apaixonado das SS nunca poderão ser figuras perfeitas tendo em conta a profissão que exercem. Mas, à medida que a história evolui, as conspirações ganham forma e as escolhas se tornam realmente difíceis, começam a vir à tona os verdadeiros valores. É nesse momento que as personagens deixam a sua marca e o impacto da história se intensifica.
E, claro, tudo converge para um final sobejamente conhecido - embora com uma reviravolta inesperada. Mas o mais notável neste livro é a forma como o autor parece conduzir os acontecimentos num crescendo de intensidade, acrescentando picos de emoção a uma situação só de si tensa e abrindo inclusive perspectivas diferentes para figuras cuja natureza e temperamento não são propriamente novidade. 
Não, não é uma história de personagens admiráveis. Mas, às vezes, são os gestos que justificam essa admiração. E, nesta história de personagens falíveis em circunstâncias inimagináveis, é isso o que realmente fica na memória: as personagens que tentam fazer o que está certo mesmo quando todas as escolhas parecem erradas. Cativante, surpreendente e com alguns momentos realmente notáveis, uma boa leitura.

Título: A Provadora
Autor: V. S. Alexander
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Presença

Ascensão e Queda dos Cavaleiros de Cristo
Dan Jones
Coleção: Não Ficção nº 4
Tema: História
Título Original: The Templars
Tradução: Adriana Maia Dias
ISBN: 978-972-23-6288-7 
Páginas: 488

PEREGRINOS . GUERREIROS . BANQUEIROS . HERÉTICOS
Os Templários foram a mais rica e poderosa e a mais secreta das ordens militares que floresceram na era das cruzadas. A sua história - que passa pelo maior conflito internacional da Idade Média, por uma rede financeira global, e pela ascensão veloz seguida de uma queda sangrenta e humilhante - deixou um rasto de mistério que continua a fascinar e a inspirar historiadores e romancistas e a alimentar teorias da conspiração.
Dan Jones documenta cada fase da história de duzentos anos dos Templários, desde a sua fundação no começo do século XII como ordem de caridade para prestar apoio aos peregrinos que visitavam a Terra Santa; o seu crescimento como uma elite guerreira; a sua evolução para uma sofisticada entidade financeira isenta de regulação fiscal e com acesso privilegiado a papas, imperadores e reis; até à sua extinção em 1312. A partir de então, a sua lenda gerou enorme especulação. Quem eram na realidade os Templários? E o que lhes terá, de facto, acontecido?
Um livro imperdível, escrito com grande rigor sobre uma das épocas mais fascinantes e ao mesmo tempo mais dramáticas da história da Humanidade.

Dan Jones, para além de historiador, é um jornalista premiado e profissional de audiovisuais. É autor de vários bestsellers tais como The Plantagenets e Magna Carta, e criador e apresentador de dezenas de programas de televisão, incluindo a aclamada série Secrets of Great British Castles da Netflix / Channel 5. Escreve uma coluna semanal para o London Evening Standard, e os seus artigos têm sido publicados em jornais e revistas como The Sunday Times, The Daily Telegraph, The Wall Street Journal, Smithsonian, GQ e The Spectator.
Os direitos de publicação de Os Templários foram adquiridos por editoras de 12 países.
Dan Jones vive em Surrey, no Reino Unido.

Para mais informações consulte o site da Editorial Presença aqui.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

O Pecado da Gueixa (Susan Spann)

Japão, século XVI. O padre Mateus leva uma vida tão tranquila quanto possível no seu trabalho de missionário cristão em tempo de múltiplas crenças. Mas essa calma está prestes a desabar. Tudo começa quando Sayuri, uma das suas convertidas, é acusada de assassinar um samurai numa casa da chá. E, quando o padre Mateus tenta defendê-lo, vê-se arrastado para o julgamento. Se, no espaço de dois dias, não conseguir provar a inocência de Sayuri, também o jesuíta morrerá. Felizmente, conta com o auxílio precioso do seu tradutor - e protector - Hiro. Passando por um samurai sem senhor, Hiro é, na verdade, muito mais do que isso. E, aos seus talentos ocultos, junta-se uma mente arguta, capaz de desvendar qualquer mistério.
É como uma viagem a um mundo completamente diferente, este livro. O tempo, o cenário, a cultura, os comportamentos - praticamente tudo é diferente da nossa realidade. E, contudo, é absurdamente fácil entrar na história. É esta a primeira de muitas qualidades a destacar-se neste livro: bastam algumas páginas para saltar para o interior da história e sentir que se caminha - e sente - com as personagens. A empatia de Mateus, a mistura de frustração e devoção de Hiro, a fragilidade de Sayuri no seio de uma intriga aparentemente demasiado complexa para desvendar a tempo - tudo isto dá forma a uma história que, além de cativar pelo seu contexto único, rapidamente se torna impossível de largar.
Tendo isto presente, claro que outra das qualidades terá de vir da caracterização das personagens. O curioso é que isto não se aplica apenas às personalidades específicas de cada um - e são deliciosas - mas também, e principalmente, à forma como se relacionam uns com os outros e com o ambiente em que se movem. O código de conduta dos samurais faz com que certas perguntas se tornem mais difíceis de colocar - e eis que entra em cena o alegado desconhecimento do jesuíta para resolver esse problema. O direito à vingança parece ser a verdade mais elementar deste mundo - mas bastam alguns passos para entender que nada é, afinal, assim tão simples. E, no meio de tudo isto, há um núcleo sólido por entre a mudança: Mateus e Hiro formam uma dupla perfeita, na investigação do mistério, mas também na vida quotidiana.
E, claro, não se pense que este extenso contexto - de cenários, de regras, de intrigas - prejudica a intensidade da história. De modo algum. O que começa como um mergulho dramático mantém a intensidade até ao fim. Em parte, claro, devido à própria escrita, que se concentra em mostrar os acontecimentos, acrescentando o contexto e as informações suplementares à medida que vão sendo necessários. Mas principalmente devido à história em si, cheia de enigmas e de pistas a seguir, mas também de surpresas, de (deliciosos) momentos de humor e de ocasionais momentos de emoção e de nobreza que conferem a tudo uma outra perspectiva.
O resultado é uma leitura viciante, que, com as suas personagens notáveis, o seu cenário invulgar e o seu enredo de enigmas e revelações, prende desde as primeiras páginas e nunca deixa de surpreender. Intenso, cativante e cheio de surpresas, um livro que não posso deixar de recomendar. 

Autora: Susan Spann
Origem: Recebido para crítica

domingo, 21 de outubro de 2018

A Fórmula do Peregrino (Tiago Moita)

Um acidente de automóvel e um resgate oportuno levam a jornalista Catherine Delgado a cruzar-se com o enigmático Gabriel Search. Professor de física quântica, tem uma visão do mundo bastante mais espiritual do que as duas posições extremadas que parecem ter tomado conta da opinião pública. E a sua viagem, para a qual Catherine acaba por ser também puxada, poderá ser o início da mudança de que o mundo precisa. O objectivo é seguir as misteriosas pistas deixadas por um peregrino e chegar ao esconderijo da fórmula de Deus. Mas, mais que a busca de uma fórmula milagrosa, a viagem promete ser de descoberta - embora haja forças poderosas dispostas a tudo para os impedir de chegar ao destino.
Um pouco à semelhança de O Evangelho do Alquimista, também este parece ser um livro que dá mais importância e destaque à mensagem das personagens do que ao enredo em si. Não que faltem mistérios, descobertas e reviravoltas, mas o domínio parece pertencer às explicações de diferentes elementos e perspectivas. Ora, isto tem dois efeitos. O primeiro, e mais evidente, é o de tornar o ritmo da narrativa bastante mais pausado, ainda que a vastidão de conhecimentos e teorias compense em parte este passo mais lento. O outro é o inevitável conflito de pontos de vista. Ao longo da história parecem haver duas facções extremas e uma intermédia: ciência, religião e espiritualidade. Mas, sendo certo que o percurso do peregrino parece representar o lado certo, a verdade é que as barreiras nunca são assim tão claras. Há valores do lado da fé, do lado da ciência e do lado da espiritualidade, estando o problema principalmente nos fanatismos. Mas, por vezes, há qualidades descritas de forma demasiado crítica e, por outro lado, aspectos pouco questionados. O resultado serão sentimentos ambíguos, possivelmente variando consoante a posição do próprio leitor relativamente a estes temas.
Mas, passando ao enredo e às personagens. Pode parecer, de início, que tudo começa de forma demasiado simples: Catherine cruza-se por acaso com a pessoa que lhe alterará o destino. Ainda assim, e à medida que a história evolui, começam a surgir segredos e possibilidades e a teia de intrigas e planos torna-se bastante mais intrigante. Além disso, as ligações secretas entre as diferentes personagens - e a forma como algumas delas são reveladas - geram alguns picos de emoção que conferem à história uma maior intensidade.
É curioso, num livro que se alonga bastante em explicações, mas ficam algumas questões em aberto. Talvez por a história se centrar mais no percurso de Gabriel e Catherine, os passos dos adeptos de Seal e Lawkins acabam por ser explorados de forma bastante mais sucinta, o que deixa uma certa curiosidade insatisfeita acerca de como ganhou forma o grande projecto de ambos. Não são elementos essenciais, é verdade, pois a base do que os move é explicada ao pormenor, e o final não ganharia mais força com uma caracterização mais profunda. Ainda assim, fica a tal vontade de saber mais sobre a construção - e povoação - desse misterioso empreendimento.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura pausada, mas intrigante e com um desenvolvimento bastante detalhado das temáticas da fé, da ciência e da espiritualidade. Interessante e envolvente, uma boa história.

Autor: Tiago Moita
Origem: Recebido para crítica

sábado, 20 de outubro de 2018

Descender, Vol. 2: Lua Máquina (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

TIM-21 contém dentro de si a resposta para o mistério dos Colectores e isso faz com que muitos procurem deitar-lhe a mão. Mas a situação desesperada em que o pequeno robô e os seus aliados se encontravam sofreu uma grande reviravolta com a entrada em cena da resistência dos robôs. Agora, TIM-21 parece estar junto dos seus - embora também estes tenham interesses ocultos. E, entretanto, aquele que tanto procura, Andy, o seu irmão, anda também à procura dele. E, embora o universo seja grande, não desistirá enquanto não o encontrar. 
Dando continuidade directa aos acontecimentos do primeiro volume e expandindo a história para um novo e mais complexo contexto, este livro eleva a história de TIM a novas alturas, ao mesmo tempo que, apresentando novas personagens e novos grupos, desenvolve também a complexidade do universo em que se movem. A história está agora mais dividida - entre TIM e Andy - e ambas as partes têm a mesma cativante mistura de mistério, acção e emoção. E aqui está o cerne do que torna esta história tão marcante: é que ambos, ainda que de maneiras diferentes, parecem conhecer o caminho mais rápido para o coração dos leitores.
Se basta a história em si para gerar emoções fortes (e, com personagens como estas, é mais do que suficiente), a forma como os autores lhe dão vida reforça imensamente o seu impacto. Da arte, destacam-se os tons, as cores contrastantes e, acima de tudo, a expressividade das personagens. Dos diálogos, a mistura de intriga e de inocência que faz com que TIM seja, ainda e sempre, o centro de algo muito maior do que ele. As vulnerabilidades das personagens - expressas tanto em texto como em imagem - tornam-se assim nas grandes forças de uma história cheia de acção e de potencial.
Sendo o segundo volume de uma história mais vasta, não é de esperar que sejam já dadas todas as respostas. E não são mesmo. Todo o final é, aliás, uma grande pergunta - uma pergunta tão grande que deixa uma vontade praticamente irresistível de saber o que acontece a seguir. Final mais aberto seria difícil, mas é também um final adequado, pois replica - e intensifica - a estrutura do volume anterior. TIM parte de uma mudança, percorre um caminho difícil e completa uma fase do seu percurso - a que se seguirá certamente algo de diferente. As respostas em falta são também possibilidades - e o que se segue só pode ser bom. 
A mesma emoção, o mesmo fascínio e o mesmo equilíbrio entre acção e emoção - mas com o dobro da intensidade. Assim é este segundo volume: uma leitura viciante, intrigante, muito comovente e que promete ainda novas e melhores surpresas para o que resta descobrir da história. Belíssimo - e muito bom.

Autores: Jeff Lemire e Dustin Nguyen
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A Cor Verde (Jaime Soares)

Verde. Cor de esperança, mas de muito mais do que isso. De amor e tentação, de perda, de desilusão, de maldições que se prolongam e que, sem ganhar forma, assombram. Verde - o discreto fio condutor que une estes dois contos, tão diversos na linha essencial do enredo, mas com tanto, afinal, em comum.
Dos dois contos que compõem este pequeno livro, o primeiro e mais extenso é Vedação. Fala de um fotógrafo e de um trabalho invulgar, em que as teias insinuantes do erotismo se conjugam com a mágoa de um amor que fugiu. Longo e bastante descritivo, tanto nos cenários como no comportamento das personagens, é um conto de ritmo bastante pausado e, envolto em enigmas do início, deixa umas quantas possibilidades sem resposta. Ainda assim, faz todo o sentido que assim seja e é difícil não se entrar no fascínio da qualidade quase onírica que parece envolver todo o cenário.
No segundo conto, Casebre, história de uma ambígua maldição familiar, muda o enredo e o ritmo acelera um pouco, mas mantém-se o mesmo equilíbrio entre um cenário quase que sonhado e uma deambulação onde pensamentos e imagens quase se misturam. As personagens, complexas como parecem ser, não são ainda assim o cerne da história. É-o o mistério, que parece ganhar vida em cada momento peculiar, em cada acaso e coincidência  e no que também aqui é deixado para esclarecer.
A unir as duas histórias está o verde: discreto, manifestando-se apenas em pequenas coisas, mas com uma influência como que de assombração. E é deste pequeno verde que emergem as outras qualidades comuns: o tom ambíguo (e, por isso, intrigante), o cenário que parece estar ao mesmo tempo ali tão perto e num passado muito longínquo e uma escrita que, parecendo deambular ao ritmo dos pensamentos das personagens, sabe, ainda assim, onde pretende chegar. Ficam perguntas sem resposta? Sim. Mas é dessa natureza a vida das personagens: uma vida que é quase inevitável que se tente imaginar depois do fim.
Breve, mas surpreendentemente complexo e com um ambiente feito de sonhos que se entrelaçam com a realidade, trata-se, pois, de uma leitura cativante, feita de personagens imperfeitas na dança (também) imperfeita da vida. Gostei.

Título: A Cor Verde
Autor: Jaime Soares
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Bertrand

Como foi possível alguns dos maiores criminosos nazis terem conseguido escapar da Europa e evitar o julgamento em Nuremberga? Este livro analisa as circunstâncias dessas fugas, debruçando-se especialmente sobre a chamada Rota das Ratazanas (ou Ratlines), nome dado ao esquema internacional que possibilitou a milhares de nazis, acusados de genocídio e de crimes contra a Humanidade, fugirem da Europa — colaboração que ainda hoje envergonha muitas pessoas e instituições, em especial o Vaticano. Entre as ratazanas cuja evasão se estuda contam-se Adolf Eichmann, o arquitecto do Holocausto, Josef Mengele, o Anjo da Morte de Auschwitz, Franz Stangl, a Morte Branca, Erich Priebke, o Carrasco de Roma, Klaus Barbie, o Carniceiro de Lyon, John Ivan Demjanjuk, ou Ivan, o Terrível, Gustav Wagner, o Monstro de Sobibor, Otto Wächter, o Carrasco de Cracóvia, Walter Rauff, o Assassino do Gás, Herberts Cukurs, o Carrasco de Riga, Hermine Braunsteiner, a Égua de Madjdanek, e Erich Rajakowitsch, o Carrasco da Holanda — alguns dos maiores criminosos morais e de guerra do século XX, que deixaram para trás um rasto de sangue e terror.

Eric Frattini foi correspondente no Médio Oriente e residiu em Beirute e Jerusalém. É autor de mais de uma vintena de livros e ensaios, entre os quais se contam Mossad: Os Carrascos do Kidon e Hitler Morreu no Bunker?. A sua obra está traduzida para várias línguas e editada em 47 países. Em 2013, recebeu o II Prémio Nacional de Investigação Jornalística (Itália) pela sua investigação do caso Vatileaks — trabalho que deu origem ao livro, já publicado em Portugal, Os Abutres do Vaticano — e o Prémio Anual Strillaerischia (Itália) pelo seu trabalho como correspondente no Afeganistão. Realizador e guionista de dezenas de documentários de investigação para as principais cadeias espanholas de televisão, colabora assiduamente em diferentes programas de rádio e TV.
Ministra frequentemente cursos e conferências sobre segurança e terrorismo islâmico a várias forças policiais e de segurança em Espanha, na Grã-Bretanha, Portugal, Roménia e Estados Unidos.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Night Driver (Marcelle Perks)

Frannie deixou a sua vida e o seu país para viver com o marido na Alemanha, mas agora, no fim da gravidez, começa a ver que Kurt não é quem ela pensou que era e que a sua relação está a desmoronar. Entretanto, Frannie sabe que tem de aprender a conduzir para poder tomar conta do seu bebé, mas as aulas estão a dar-lhe cabo dos nervos e tudo piora quando um péssimo condutor se cruza no seu caminho. Mas ainda pior é que Lars não é apenas um condutor maluco. Tem uma compulsão que o leva a matar. E quando Frannie tenta ajudar um novo amigo a encontrar a irmã desaparecida, o seu caminho cruza-se com o de Lars numa vida muito mais perigosa.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que está cheio de surpresas. No princípio, leva-nos a acreditar que a situação no trânsito será o desencadeador de um conflito muito mais negro. Mas depois tudo se expande. Lars não é apenas um assassino em série, mas também um homem influente no mundo das drogas e da prostituição. E o seu sócio, Hans, é ainda pior. É a relação entre ambos, todavia, que dá origem às maiores surpresas da história. Pois Hans tem a sua própria perversidade e, quando as coisas começam a complicar-se, começam também a ficar mais negras.
Também bastante impressionante é o facto de a história arrancar a um ritmo relativamente pausado, embora intrigante, crescendo depois exponencialmente a nível de intensidade. Começa de forma relativamente calma, apesar dos momentos de tensão, e depois as coisas parecem descontrolar-se para todas as personagens centrais. Define-se uma rota, fazem-se planos... e a busca de respostas representa um perigo para todos. Frannie e Dorcas tentam descobrir o que aconteceu a Tomek. Lars... bem, tenta recuperar o controlo da sua vida retorcida. E, à medida que estes dois caminhos convergem, a história torna-se viciante. E no fim tudo é inesperado.
O que me leva a um outro aspecto inesperado: Lars. É um assassino em série e há muito tempo que tem vindo a matar. Mas não é necessariamente o mal maior nesta história, o que é em si também uma surpresa. Além disso, há uma complexidade subjacente ao que o move e isso coloca-o num caminho com apenas duas possibilidades futuras: total condenação ou a redenção possível. Também isto faz parte do que torna o final tão forte. Ninguém era exatamente o que parecia. Mas Lars? Era isso, mas também mais.
Com um cenário tão negro e intrigante como a mente de algumas das personagens, no fim, tudo neste livro se resume a isto: uma história intensa e intrigante, com relações intrincadas e um conjunto de personagens bastante complexo e impressionante. Um muito bom livro, em suma.

Título: Night Driver
Autora: Marcelle Perks
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O Pequeno Livro dos Grandes Insultos (Manuel S. Fonseca)

Chama-se O Pequeno Livro dos Grandes Insultos - e é um livro que se sintetiza perfeitamente a si mesmo no título. Pequeno, porque é um livro relativamente pequeno. E quanto a Grandes Insultos? Bem, é exactamente isso. Por isso, não se esperem grandes eufemismos e muito menos insultos menores. Este é um livro como poucos no que toca à abundância de palavrões por metro quadrado. E, por isso, nesta sua estranha declaração de amor ao palavrão, é também um livro especialmente rico nesta tão específica área do vocabulário.
Um dos primeiros aspectos que importa referir acerca deste livro - e talvez algo surpreendente tendo em conta o conteúdo - é o talvez inesperado facto de se tratar de um livro... bonito. Bonito, sim, com os seus tons de vermelho na capa e no interior e os elementos visuais bombásticos (talvez não no primeiro sentido que vem ao pensamento) presentes ao longo do livro. E isto tem um efeito curioso: é que, além de despertar a curiosidade para a leitura, quase que desmistifica o factor choque nesta abordagem bastante complexa à arte do palavrão. Afinal, também faz parte da vida, não é? E os tabus... bem, alguns existem para ser quebrados.
Mas passemos ao conteúdo e importa, claro, começar por dizer que talvez não seja um livro recomendado às almas mais sensíveis. É que, se pensarem no palavrão mais forte que conseguirem imaginar e depois o forem procurar nas páginas deste livro, é bem provável que o encontrem. Até porque alguns deles são do tipo que se ouve a toda a hora. Mas há, mais do que os insultos em si - e não é impressionante a criatividade de alguns dos insultos que vêm à cabeça das pessoas? - destacam-se dois aspectos: primeiro, a organização do livro, que lhe confere quase que um estatuto de tratado sobre o vernáculo; e segundo, a boa disposição que faz com que até as mais rebuscadas blasfémias despertem facilmente uma gargalhada. Ou não fosse o inesperado um dos factores que aumentam o impacto de um palavrão bem proferido.
Há algumas repetições ao longo do livro, principalmente de expressões que surgem em múltiplos contextos. Mas, embora isto desperte a sensação de já ter visto aquele insulto antes, faz todo o sentido que esta repetição aconteça: afinal, o contexto também faz parte do impacto e o palavrão é um departamento da linguagem que inclui muitas possibilidades.
Fica, então, esta curiosa impressão: a de um pequeno, mas completo, tratado sobre a surpreendentemente vasta arte de insultar. E, claro, um livro divertido e surpreendente - nos mais inesperados aspectos.

Autor: Manuel S. Fonseca
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Nuvem de Tinta

O que têm em comum a padeira Brites de Almeida, a sufragista Beatriz Ângelo, a actriz Beatriz Costa e a pintora Paula Rego? Além de serem todas mulheres, lutadoras, corajosas, independentes e livres… são Portuguesas com M Grande! 
Todos temos o sonho de mudar o mundo e mudar com ele, de criar futuros e esperança, de ser livres para escolher, transformar, crescer e aprender, de errar e construir um caminho, de viver uma vida em pleno. E hoje todos podemos fazê-lo. Mas para aqui chegar foi necessária a coragem de mulheres sem medo para ir mais longe, como as Portuguesas com M Grande!
Um livro para nunca esquecermos como aqui chegámos e nos lembrarmos de que poderemos ir ainda mais longe.

Lúcia Vicente nasceu em Outubro de 1979, à beira da Ria Formosa, em Faro, numa família cheia de mulheres. Foi a primeira desse núcleo a concluir uma licenciatura. Cedo se questionou sobre o papel da mulher na sociedade e por que razão os livros de História nunca mencionavam mulheres. Em 1995, criou, juntamente com um grupo de amigas e amigos, o colectivo feminista MUPI (Mulheres Unidas Pela Igualdade).

Cátia Vidinhas nasceu em 1989, num lugar onde as montanhas são tão altas que facilmente se consegue chegar ao céu. Enquanto ilustradora, colaborou com autores como Valter Hugo Mãe, Álvaro Magalhães, José Jorge Letria e Adélia Carvalho. É autora das ilustrações de oito livros infantis, entre os quais Figura de Urso (2015), Palavras Bonitas Sobre Contas (2017) ou Infâncias (2017). Os seus livros estão publicados em diversos países, como Espanha, Brasil ou Colômbia. Em 2015, viu o seu trabalho destacado pelo Prémio Nacional de Ilustração com o livro WonderPorto.

Divulgação: Novidade Companhia das Letras

Chegados a Lisboa em junta médica, Cartola e Aquiles descobrem-se pai e filho na desventura, sobrevivendo ao ritmo da doença, do acumular de dívidas e das cartas e telefonemas trocados com a família deixada em Luanda. Até que num vale emoldurado por um pinhal, nas margens da cidade mil vezes sonhada pelo velho Cartola, encontram abrigo e fazem um amigo. Será esta amizade capaz de os salvar? «Se o entendimento entre duas almas não muda o mundo, nenhuma ínfima parte do mundo é exactamente a mesma depois de duas almas se entenderem.» Luanda, Lisboa, Paraíso, o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida, é o balanço tocante de três vidas simples, em que esperança e pessimismo, desperdício e redenção, surgem lado a lado numa sequência de tableaux sombrios, doces e trágicos.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse cabelo (Teorema, 2015) e Ajudar a cair (FFMS, 2017). Publicou em Granta, Revista Serrote, Common Knowledge, Quatro cinco um, Words Without Borders, Revista Zum, entre outras. Nascida em Angola, vive nos subúrbios de Lisboa e escreve no Blog da Companhia das Letras.

domingo, 14 de outubro de 2018

Outcast, Vol. 1: As Trevas que o Rodeiam (Robert Kirkman e Paul Azaceta)

A vida de Kyle Barnes sempre esteve rodeada de acontecimentos estranhos, que o levaram a perder todas as pessoas que amava e a fechar-se sobre si mesmo, isolado. Mas um súbito encontro - e um auxílio quase que involuntário - levam-no a suspeitar de que esses estranhos acontecimentos são mais do que uma sombra que o persegue. Há demónios à solta e, embora não saiba porquê, Kyle parece ter uma defesa que mais ninguém. Começa, por isso, a procurar respostas. Mas, quando as encontrar, o seu mundo deixará de ser o mesmo...
Abundante em elementos sobrenaturais e com um conjunto de forças que parecem começar apenas a ganhar forma neste primeiro volume, basta uma palavra para descrever este livro: viciante. Primeiro, cativa a situação algo desolada de Kyle. Depois, a misteriosa presença de forças demoníacas e o tipo de comportamento que parecem exibir. E subitamente tudo se expande. Não é simplesmente a história de um demónio que insiste em perseguir o protagonista: é uma guerra cujos contornos começam apenas a desenhar-se. E, a partir do momento em que isto se torna claro, é impossível não querer saber o que vem a seguir.
É uma história sombria, não só pelos elementos demoníacos, mas principalmente pelo peso da desolação que assenta sobre os ombros de Kyle. E importa por isso realçar a forma como tudo converge para potenciar esta imagem de desolação: desde os tons sombrios que pautam todo o livro, rasgados por traços de cor que surgem precisamente nos momentos certos, às expressões das várias personagens, que contêm toda uma história em si mesmas. O sobrenatural é causa e motivação de tudo - mas são os demónios interiores das consequências que despertam as verdadeiras emoções. E, no fim... No fim, é impossível não sentir um pouco por Kyle, pelo que passou - e pelo longo e árduo caminho que tem nitidamente pela frente.
Quanto a respostas... Bem, estamos no primeiro volume, por isso não é propriamente uma surpresa que fiquem mais perguntas do que respostas. Ainda assim, o final parece especialmente adequado, não só por deixar a história num ponto em que é quase irresistível a vontade de começar imediatamente a ler o próximo volume, mas pela intrigante sensação de que aquele final é também um início: o início da verdadeira guerra.
Não se pode, pois, pedir muito mais a este volume de abertura. Intenso, sombrio, enigmático, abre as portas para um mundo de sombras e de demónios onde o potencial parece ser tão ilimitado quanto o peso da vida do protagonista. E, a cada novo momento, a cada pequena revelação, acende um bocadinho mais a chama da curiosidade para o que se poderá seguir. Curiosidade que cedo se torna irresistível - como este livro, aliás. 

Autores: Robert Kirkman e Paul Azaceta
Origem: Recebido para crítica

sábado, 13 de outubro de 2018

Uma Coisa Absolutamente Incrível (Hank Green)

April May está a caminho de casa depois de um longo dia de trabalho quando eis que, do nada, se depara com uma enorme escultura na rua. De início, April pensa que deve ser uma espécie de obra de arte, uma instalação elaborada, mas, ainda que a sua primeira reacção seja seguir em frente, decide chamar o seu melhor amigo. Juntos fazem um vídeo sobre a estátua a que April deu o nome de Carl. Mas o que devia ser um vídeo interessante ganha uma nova dimensão quando se descobre que o Carl é apenas um de sessenta e quatro espalhados por todo o mundo. E mais: que tem características impossíveis a qualquer material terrestre. April vê-se assim no papel de primeira a estabelecer contacto com uma possível espécie alienígena. E, de repente, ascende à fama mundial... algo que talvez lhe agrade mais do que devia.
Uma das primeiras coisas a chamar a atenção nesta história - além, claro, da ideia de estátuas gigantes a aparecer de repente em todo o lado - é a forma como, embora contando a história pela voz da sua protagonista, o autor nunca cai na tentação de a aperfeiçoar demasiado (nem mesmo aos seus próprios olhos). Desde cedo se torna evidente que, no momento em que conta a história, April May está bem consciente das suas fragilidades e defeitos e isso torna tudo muito mais interessante, não só porque permite emoções mais intensas (seja de empatia ou de irritação), mas principalmente porque se ajusta na perfeição ao papel de April de "representante" da humanidade.
Importa também destacar que esta está muito longe de ser apenas uma história de alienígenas - apesar de ter como ponto fulcral uma manifestação de... bem, alienígenas. É uma história sobre a fama e o seu lado mais sombrio, sobre as discussões e ódios no tempo das redes sociais, sobre o crescimento das personagens num mundo em constante mudança e, sim, também sobre a forma como a humanidade poderia lidar com uma manifestação extraterrestre. Tudo isto mais em actos do que em palavras, e por isso muito mais visível - embora April tenha também um ou outro discurso bastante notável.
Voltemos aos extraterrestres - e ao desenvolvimento das personagens - para realçar outro aspecto. A história dos Carls começa como um enigma e termina como tal. Aliás, tudo no final aponta para a possibilidade de uma sequela. Mas há todo um mundo de desenvolvimento ao longo do caminho: as estátuas, o Sonho, as mensagens em código - tudo aponta para algo muito complexo que apenas começou a manifestar-se. E, do outro lado, do lado da humanidade, há uma outra base de complexidades: os ódios, os medos, as intrigas - e a capacidade de trabalhar em conjunto para resolver um mistério. Tudo num cenário que é, ao mesmo tempo, global (fruto da capacidade mobilizadora de April) e pessoal (influindo nas suas relações familiares, amizades e romances). 
E depois há a conclusão, que é a convergência de todas estas facetas num final explosivo. Ficam perguntas em aberto, claro, e a muito clara sensação de que a história continuará. Mas fica também a ideia de que uma fase se concluiu - para o mundo, para April e para os Carls. O que vier a seguir será diferente. Mas, a julgar pelo impacto deste final, será certamente muito bom.
Com uma voz única, um enredo surpreendente e um belíssimo equilíbrio entre humor e emoção, trata-se, pois, de uma história de fama e de extraterrestres, mas em que nenhum deles é apenas um elemento estático. A história de April, em suma, e da sua notoriedade - num mundo capaz do melhor e do pior.

Autor: Hank Green
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

O Amor que Sinto Agora (Leila Ferreira)

O passado disfuncional da mãe fez com que Ana sempre sentisse sobre os ombros o peso da obrigação de a fazer feliz - mesmo que isso significasse manter-se num casamento tranquilo, mas sem amor. Agora, porém, a mãe partiu e a vida que Ana vinha a suportar com esforço desmoronou. Resta-lhe, por isso, pôr em cartas o que sempre disse à mãe, recordar - e fazer as pazes - com o passado e partir depois para um futuro diferente. Nas cartas, contará toda a sua história - abrindo, talvez, assim caminho a uma nova esperança.
Parte do que torna esta leitura tão cativante é a forma como conjuga uma escrita harmoniosa e natural, nas cartas e nas recordações, com um cenário tão cheio de possibilidades como de momentos disfuncionais. A história de Ana e das suas antepassadas está cheia de dor, de mágoa e de crueldade. E, todavia, mais que o choque dessas revelações (que chocam, de facto), marca uma melancolia persistente que parece construir uma ponte entre o peso do passado e uma libertação futura. Assim, sente-se desespero e esperança - os mesmos que movem as personagens e são a alma deste romance.
Também notável é o facto de nenhuma personagem ser perfeita - mas também nenhuma ser irremediavelmente maligna. Até mesmo os tais homens do passado que tanta destruição espalharam parecem ter alguma qualidade redentora. Insuficiente, claro, mas mais do que capaz de justificar indecisões, demoras, escolhas erradas. De dar forma à verdadeira complexidade da situação das personagens. Além disso, a própria Ana está longe de ser uma figura perfeita e as suas decisões são igualmente ambíguas e contraditórias, mesmo quando movidas pelos melhores dos sentimentos. São humanas, em suma. E, por natureza, imperfeitas.
Quanto à história em si, é uma passagem: de um passado de sombra e desolação para a promessa de um futuro melhor. O elemento central é a esperança e, assim sendo, faz sentido que tudo termine assim: num ponto de viragem decisivo, feito de promessas futuras, mas deixando em aberto todas as possibilidades. Fica, é claro, a tal curiosidade insatisfeita - principalmente no que diz respeito a Ana e ao português - mas é apenas natural que assim seja. Porque, afinal, é a própria protagonista que não acredita em "juntos para sempre". Se a vida a persuadiu ou não do contrário... fica à imaginação do leitor. 
No fim, fica a soma de três grandes qualidades: uma escrita belíssima, personagens complexas e uma história feita de emoções intensas. Mais do que o suficiente para moldar um bom romance - e é precisamente isso que este livro é.

Autora: Leila Ferreira
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A Solidão de Sermos Dois (Maria João Carrilho)

Na vida de Liza há um grande mistério, o de não saber quem é o pai. E parece que esse mistério é também comum à sua mãe, que também não conheceu o seu em criança. Mas a família, essa, parece mais vasta - principalmente, porque cada elemento parece ter múltiplas e contraditórias facetas. Enquanto Liza procura respostas na mãe e na avó, os segredos de Laura e Filomena vêm também à superfície. E há amores ceifados cedo demais, relações proibidas - e uma figura que parecia ser um amigo, mas que era afinal tudo menos isso...
Relativamente breve, e abrangendo contudo vidas inteiras, este é um livro que vive tanto daquilo que conta como do que é apenas insinuado. Talvez por isto seja esta a faceta que mais acaba por ficar retida na memória: a de uma história onde muitas perguntas ficam sem resposta, e em que muitas das respostas parecem ser algo vagas, mas que atinge, ainda assim, um cativante equilíbrio entre o que de facto é revelado e o que se julga ficar a saber. 
É também um livro de sentimentos contraditórios, até porque os saltos temporais nos permitem ver as personagens em diferentes fases da sua vida - com novos conhecimentos a determinar novas posições. Se, a espaços, uma personagem parece cativar pelo seu estranho carisma, logo uma faceta mais sombria vem à tona. E quanto à relação entre as mulheres desta história... bem, é complexa. É algo disfuncional, também. Mas, com todas as suas teias e meandros, contém também bastante do possível e isso torna fácil imaginar qualquer destas personagens como uma pessoa real.
Mas é na escrita que está o encanto. Numa história em que as figuras centrais tanto despertam amor como aversão e em que os mistérios e experiências alcançam tudo menos uma resolução absoluta, é a escrita que sustenta o equilíbrio global. Pois as palavras fluem com naturalidade, dão vida às emoções e transbordam da estranha melancolia que parece preencher toda a narrativa. O resto da vida pode ficar sem resposta - mas a alma essencial das personagens está lá. Nas palavras.
Ficam, pois, os tais sentimentos contraditórios. Mas principalmente a sensação de ter entrado numa história capaz de conter, em poucas dezenas de páginas, as complexidades de uma vida inteira. O que fica por dizer torna-se secundário... porque o essencial da vida - e das palavras - está lá, nesta pequena, mas cativante leitura.

Autora: Maria João Carrilho
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 9 de outubro de 2018

The Wicked + The Divine: Fandemónio (Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles)

Desde o desaparecimento de Lúcifer que Laura alimenta a pequena esperança de pertencer também ao panteão - o grupo de deuses que reencarna a cada noventa anos para inspirar amores e ódios e, passados dois anos, morrer. Mas o seu sonho é tudo menos cor-de-rosa. O que aconteceu realmente a Lúcifer continua a ser um mistério e os outros deuses... bem, digamos que não são propriamente divinamente bons. Laura quer respostas e isso implica manter a proximidade. Só que há um desígnio insondável em acção e nem todos os deuses parecem ter os mesmos planos para o seu limitado futuro.
Se bastava o primeiro volume para reconhecer o vastíssimo potencial da premissa desta série - deuses enquanto estrelas e tão efémeros como a fama - esse potencial é aqui imensamente expandido. Para lá da fama, do brilho e dos estranhos poderes, surgem as outras facetas de se ser divino: as invejas, a soberba, a irresistível aspiração a mais. E é assim que começam a formar-se os contornos de um plano sombrio, em que cada deus parece ter um papel diferente - e mais ou menos voluntário - a desempenhar.
Um dos aspectos mais poderosos deste livro é que, embora desenvolvendo as relações de adoração entre homens e deuses (ainda que numa faceta... pouco convencional), se há coisa que não existe é uma barreira clara entre o bem e o mal. Cada deus tem as suas características e, principalmente, a sua personalidade própria. E nenhum deles é simplesmente bom ou mau. No seu caminho, deixam fãs extasiados, ressentimentos profundos e atritos mais longos e complexos - principalmente uns com os outros. E as motivações para cada comportamento nunca são fáceis e muito menos claras. Não fica, aliás, muito em aberto para o volume seguinte: fica tudo em aberto. E é isso principalmente (além, é claro, das muitas qualidades do livro) que deixa uma vontade irresistível de ler o próximo volume o mais rapidamente possível.
Mas voltando às qualidades. Falei já da ambiguidade das personagens - que as torna mais complexas e fascinantes. Falta-me falar, naturalmente, da arte, tão cheia de cor e de expressão que é impossível não se ficar com vontade de entrar naquele estranho mundo. E que impressiona principalmente por se ajustar tão perfeitamente ao mundo que este livro apresenta: um mundo de celebridades, logo, de brilho, festas e excessos, mas também um mundo de deuses, e portanto de sacrifício e adoração - com um inevitável lado sombrio.
Corresponde às expectativas? Oh, sim, e supera-as plenamente. Pois, com a sua expansão em termos de diversidade e complexidade, acrescenta novas camadas de emoção e dramatismo, sem perder nenhuma da intensidade e do fascínio do volume anterior. Intenso, belíssimo, cheio de surpresas... mal posso esperar para ver o que vem a seguir. Maravilhoso.

Autores: Kieron Gillen, Jamie McKelvie, Matt Wilson e Clayton Cowles
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Três Coroas Negras (Kendare Blake)

Nasceram rainhas, mas só uma delas será coroada. Cada uma tem um dom muito diferente, como compete às rainhas de Fennbirn. Mas Katharine, Arsinoe e Mirabella são diferentes em muitos outros aspectos e, em comum, têm apenas isto: estão destinadas a matar as irmãs ou a ser mortas por uma delas. E, embora apenas Mirabella pareça ser forte no seu dom, todas têm uma sólida rede de aliados e apoiantes, dedicados apenas à sua causa. A batalha pela coroa está prestes a começar - e, entre aliados, amigos, amores e inimigos, existe apenas uma certeza: nada ficará igual quando tudo tiver terminado.
Dividido entre o percurso das três rainhas, e abrangendo uma intriga inesperadamente complexa, este é um livro que intriga desde as primeiras páginas. Bastam, aliás, os dons das três rainhas e o facto de uma delas ser uma envenenadora para gerar a impressão de que esta não vai ser uma contenda vulgar. E, à medida que a história avança, esta impressão vai sendo cada vez mais reforçada - até ao final tão intenso como inesperado, e que deixa uma imensa vontade de ler o volume seguinte o mais cedo possível.
No cerne, está a intriga, é certo, e as movimentações das diferentes facções. Mas o mais impressionante é que há muito mais nesta história além disso. Desde as intrincadas regras da ilha às sedes e mecanismos dos diferentes dons, passando, é claro, pelas transgressões e inevitáveis consequências, há todo um mundo de coisas a acontecer nesta história. Desde os momentos divertidos aos de profunda tensão, passando, é claro, pelos rasgos de afecto, pelas explosões e emotividade e pelo entretecer de manobras de bastidores, há sempre algo de novo para desvendar. E assim se tece um enredo de surpresas, mas, acima de tudo, de momentos muito marcantes.
E. claro, tudo se torna mais intenso quando as personagens são também elas notáveis. Diferentes em tudo, Katharine, Arsinoe e Mirabella conseguem, ainda assim, gerar a mesma forte empatia, não só devido à delicadeza das suas circunstâncias, mas principalmente pela teia de planos e expectativas que vai sendo moldada à sua volta. Além disso, as personagens que lhes são mais próximas, e os laços que as unem, constroem também uma teia emocional, cheia de momentos marcantes e de revelações poderosas. Revelações essas que, nalguns casos, apenas começaram a surgir - prometendo muito de bom para o que se seguirá.
O resultado é, claro, o melhor dos inícios: um início já cheio de acção, de intriga e de surpresas, com personagens tão complexas e marcantes como o enredo e um cenário cheio de intrigas e de enigmas que promete surpreender ainda mais nos volumes seguintes. A melhor das aberturas, portanto, e um livro que não posso deixar de recomendar.

Autora: Kendare Blake
Origem: Recebido para crítica

domingo, 7 de outubro de 2018

Preacher - A Caminho do Texas (Garth Ennis e Steve Dillon)

Há cinco anos, Jesse Custer voltou-se subitamente para a Igreja. Agora, em plena crise de fé, está prestes a descobrir todo um novo significado para a religião. Possuído por uma poderosa criatura, alegadamente fruto da relação entre um anjo e o demónio, Jesse dá por si com o poder da palavra de Deus - quando ordena, todos têm de lhe obedecer. Já Deus, esse... bem, deixou tudo para trás e desistiu. Ora, Jesse não está disposto a aceitar isso e não descansará enquanto não o encontrar e lhe disser umas quantas verdades na cara...
Não é propriamente fácil descrever este livro sem contar demasiado, já que as várias surpresas ao longo do percurso são parte do que torna tudo tão intenso. Mas uma boa palavra para começar seria fascinante. E em múltiplos aspectos, que vão desde a expressividade e a aura de mistério que envolve o desenho, particularmente no que toca às expressões de algumas personagens, à sequência de revelações inesperadas ao longo do enredo, sem esquecer, claro, todo o contexto em torno de fé e religião, céu e inferno, santos... e pecadores.
É daqui, aliás, que nasce o elemento de choque: é que este não é um livro recomendado a almas religiosamente sensíveis. O Deus de Jesse pode ter deixado o mundo por sua conta, mas continua a haver toda uma abundância de anjos e santos... pouco convencionais. Além disso, não importa que Jesse seja um pregador e o Santo dos Assassinos... bem, um santo. Se há coisa que não há neste livro é paz e inocência. E mais: de toda a violência e morte que, ao longo do caminho, se manifesta, surge ainda a sensação de que tudo isto é apenas o início. E que muito mais virá certamente.
Ora, tendo tudo isto em vista, escusado será dizer que a moralidade das personagens é, na melhor das hipóteses, ambígua. Mas é também daqui que acaba por surgir um dos grandes pontos fortes da história: é que, sendo certo que ninguém é santo neste livro, também o é que há momentos - e dos bons - em que a melhor faceta das personagens vem à tona. Jesse, em particular, é a imagem perfeita de uma personagem completa, capaz de fazer o que tem de ser feito, mas com poderosos laivos de consciência e responsabilidade.
Intenso, viciante e inesperadamente complexo, trata-se, pois, do mais promissor dos inícios. Com as suas personagens fascinantes e a sua fusão de blasfémia e religião, prende desde o primeiro contacto e é impossível largá-lo antes do fim. Que mais se pode pedir, então? Só mesmo o próximo volume - o mais rapidamente possível. 

Título: Preacher - A Caminho do Texas
Autores: Garth Ennis e Steve Dillon
Origem: Recebido para crítica