quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Descender, Vol. 6: A Guerra das Máquinas (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

O fim está próximo. Máquinas e humanos estão finalmente frente a frente no que só pode ser uma batalha devastadora. Mas há um olhar a assistir a tudo, um olhar que significa destruição implacável. TIM-21 e os seus companheiros chegaram finalmente ao local onde poderão encontrar respostas, que só podem vir de um passado muito distante. Mas não bastam os avisos e os apelos quando a catástrofe é iminente. E o coração de uma máquina humana pode não bastar para conceder misericórdia a um mundo movido a destruição...

Último volume desta série, ainda que não da história deste mundo, a primeira coisa a sobressair deste A Guerra das Máquinas é a certeza do fim. E é pelo fim que começo, porque desde as primeiras páginas que tudo se encaminha para uma promessa de devastação, mas tudo converge para uma tão poderosa mistura de esperança e pressentimento que é impossível não sentir o impacto do final. As respostas do passado prometem a possibilidade de extermínio. A existência de TIM-21 promete uma possível redenção. E todo o caminho até ao final é um delicado equilíbrio entre o provável e o possível, e a ligeira esperança que permanece entre caos e traição... até ao fim.
Desde o início que a alma desta série, e a sua grande força emocional, tem estado no equilíbrio entre implacabilidade e ternura, encarnada na comovente melancolia de TIM-21. Esse sentimento intensifica-se de forma quase indescritível neste volume final, com a inocência deste tão singular protagonista a transformar-se em algo mais profundo face à iminência da catástrofe. É TIM-21, mais sozinho do que nunca, ainda que constantemente acompanhado, a imagem que fica na memória ao terminar este livro. Mais do que a possível morte do universo, a destruição da inocência. É... avassalador.
E há a arte, que, chegados a este ponto, já se tornou mais do que familiar, com as suas cores tão características e, sobretudo, a expressividade das personagens. Mas é também impressionante como, num cenário que se tornou já conhecido, continua a haver espaço para novas visões, quer nas imagens vindas do passado distante, quer na forma dada à transmissão das memórias de TIM-21. Também as imagens ficam na memória, pois também elas reflectem, com precisão implacável, o que assola este mundo e as suas personagens.
E assim termina este universo... ou esta parte dele. Com o estrondo de uma revelação incrível, mas sobretudo com a marca emotiva que fica ao deixar para trás estas personagens que se tornaram tão queridas. Belíssimo, empolgante e emocionalmente devastador, pode ser, a espaços, de partir o coração... Mas é também um final perfeito para esta longa e inesquecível jornada.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Linguagens Impossíveis (Timothy Hagelstein)

Para os sentimentos e visões que o mundo inspira, ou que dele transparecem, existem múltiplas linguagens. Palavra, gesto e visão podem abrir espaço a formas distintas de expressar uma emoção. E é um pouco de todas estas linguagens, transpostas para uma poesia simultaneamente intimista e quase visual, que dá forma a estas linguagens impossíveis. Linguagens de amor e de sombra, tão contemplativas quanto pessoais.
Provavelmente o aspecto mais marcante desta antologia está na forma como cada poema consegue ser, ao mesmo tempo, simples e profundo. Simples com os seus versos curtos, a estrutura relativamente fluida e um formular de palavras que flui com a naturalidade de um diálogo. Profundo nos pensamentos, na introspecção sobre as emoções e na forma como traça um retrato pessoal dos cenários - interiores e exteriores - que percorre.
Outro aspecto interessante é que, tratando-se de uma edição bilingue, é possível - a quem entender francês - assimilar os ritmos e as cadências em ambas as versões. Isto é particularmente cativante tendo em conta que é a cadência das palavras que confere aos poemas a sua fluidez. E, assim sendo, comparar original e tradução, mesmo quando os conhecimentos de francês são limitados como os meus, permite uma nova percepção do ritmo e do facto de que, mesmo quando as rimas são inevitavelmente alteradas, a naturalidade e envolvência mantêm-se.
E importa ainda mencionar a muito cativante sensação de proximidade que se vai gerando ao longo da leitura destes poemas, tanto nos mais voltados para o interior como nos mais descritivos e centrados em lugares visitados e experiências vividas. Haverá, naturalmente, alguns mais marcantes do que outros, mas todos parecem pertencer e é também isso que torna este volume tão interessante.
Podem ser Linguagens Impossíveis, mas facilmente se entendem e entranham. E, com o seu equilíbrio entre o simples e o profundo, entre mundos interiores e exteriores, deixa a sua marca quase sem se dar por isso, bem como a vontade de regressar - várias vezes - aos mais marcantes destes poemas. Um bom livro, em suma, fluido e envolvente. E muito belo, também.

domingo, 27 de setembro de 2020

How's the Pain? (Pascal Garnier)

Simon Marechall conhece a morte. Após muitos anos a trabalhar como exterminador de pragas, prepara-se agora para o seu derradeiro trabalho antes do fim; pois sabe que não durará muito tempo. Mas o seu ramo não envolve apenas roedores e insetos. Tem outra actividade. E, ainda que algo tenha aparentemente mudado, com a aceitação do seu novo e inocente motorista, Simon continua a ter um trabalho para terminar. E as suas últimas vítimas são do tipo humano.
Um dos aspectos mais impressionantes das obras deste autor é que as suas histórias podem ser relativamente breves, mas não lhes falta nada. Do elemento de intriga associado às extravagantes atividades de Simon ao seu caminho em direção à morte, sem esquecer, claro, a inconcebível inocência de Bernard e a ambiguidade de Fiona, tudo parece pertencer. E, em menos de duzentas páginas, o autor leva-nos numa viagem: de vida e morte, de descoberta e resignação, de inocência e de implacabilidade.
Dado o tema sombrio, é surpreendente a leveza que este livro é capaz de assumir. Talvez seja da escrita, com o seu fascinante contraste entre a clareza dos diálogos e a inesperada, ainda que breve, introspecção das descrições. E há também algo de estranhamente intrigante na forma como um protagonista como Simon, que dificilmente poderia estar mais longe do que consideramos uma boa pessoa, consegue gerar uma tão interessante proximidade. Talvez seja devido a Bernard... ou à morte.
Um último aspecto que vale a pena mencionar é como tudo parece convergir para um final já conhecido. Desde o início que sabemos como terminará a histórai de Simon. Mas o caminho até lá... bem, eis a questão. A mesma que torna tão cativante e, apesar de sabermos qual será o fim de Simon, tão surpreendente a leitura deste pequeno livro.
Feito de diferentes tipos de fins e de um fascinante equilíbrio entre mistério, inocência e dor, eis o tipo de livro que se lê de uma assentada. E a que depois regressamos para recordar as melhores passadas e a estranha viagem em que Simon - e Bernard - nos levaram. Bastante impressionante, em suma.

Autor: Pascal Garnier
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Silêncio (The Lisbon Studio)

Há quem diga que o silêncio é de ouro, mas pode ser muitas outras coisas. Pode ser vazio ou descoberta, morte ou renascimento, introspecção ou simples apatia. E há um pouco de todos estes silêncios neste conjunto de histórias, do silêncio de quem não sabe o que dizer ao silêncio de quem morre, passando ainda ao silêncio de uma voz que se faz ouvir sem palavras. Cada história tem as suas próprias singularidades - e é essa a maior qualidade deste livro.
Antologia de diferentes histórias e estilos convergentes em torno de um tema comum, é na diversidade que este livro tem a sua maior força. As histórias abrangem todo o tipo de cenários, do mais estranho dos rituais a um lugar de regras próprias, passando pelo simples reatar e quebra de uma relação. Abrangem também todo o tipo de estruturas. Há as que não têm qualquer diálogo e em que os acontecimentos se expressam exclusivamente através da arte, outras em que o texto introspectivo complementa os cenários e outras ainda em que texto e arte assumem a mesma extravagância para dar forma a uma história leve e divertida. E há ainda a diversidade na arte, pois cada autor tem o seu estilo e as suas particularidades, sendo que alguns se destacam pela simplicidade, outros pela vastidão de detalhes e outros ainda pelos jogos de sombra e luz.
No centro de todas estas histórias, está uma vastidão de silêncios. Se há, como é natural, histórias que deixam uma marca mais intensa do que outras, também é verdade que o tema comum reforça a coesão. Cada história é um todo, mais ou menos marcante, mas todas parecem pertencer. E assim o que acontece é que até as histórias que têm menos impacto (sendo certo que o impacto varia consoante as impressões e preferências de quem as lê) acabam por ocupar um lugarzinho na memória.
Um último ponto que importa destacar, apesar de discreto, são os textos introdutórios. O primeiro debruça-se sobre o tema, preparando o ambiente para as histórias que se seguirão. O segundo realça o conceito subjacente a estas antologias e a experiência de trabalhar num estúdio, o que acaba por despertar também como que uma nostalgia em segunda mão. Ambos contribuem para despertar curiosidade e também para realçar a já referida sensação de coesão que une todas as histórias. Além, claro, de desvendarem um bocadinho das mentes por trás das histórias.
O que fica ao terminar esta leitura é, pois, a impressão de um conjunto de particularidades, em que cada história é um todo completo que, unido aos outros, forma algo maior. Feito de histórias relativamente breves, mas todas com o seu quê de fascinante, proporciona bons momentos de leitura, despertando, ao mesmo tempo, a vontade de conhecer mais do trabalho destes autores. E cativa do início ao fim, claro. Que é o que se pede a um bom livro, certo?

Título: Silêncio
Autores: The Lisbon Studio
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O Heterónimo de Pedra (Henrique Castanheira)

Vidas que se prolongam em diferentes formas. Viagens por espaços de múltiplos países, tão reais como as histórias que aa imaginação lhes traça. Elementos de lenda, de mito, de superstição e de realidade. E algo de comum a todos, mas que os separa também: a persistência da morte por entre os meandros da vida. São estas as linhas essenciais deste pequeno livro de também pequenos contos. Contos que, nas suas estranhas deambulações, têm tanto de intrigante como de impossível de descrever.
Provavelmente o aspecto que mais se destaca neste livro é o contraste entre a brevidade, tanto do todo como de cada um dos contos, e a complexidade que os parece impregnar. Podem partir de um início simples, mas rapidamente se tornam labirínticos, seja com a entrada em cena de uma figura inesperada, com os meandros dos cenários visitados ou até com os laivos de lenda ou fantasia que discretamente vão surgindo. O resultado é uma leitura que, apesar de breve, exige tempo e atenção, pois são muitos os pormenores a assimilar.
Outro efeito deste contraste é uma relativa ambiguidade, que faz com que nunca seja absolutamente claro se o que é descrito é narrado é real ou fruto da imaginação das personagens, se é que as próprias personagens são elas mesmas reais. E, se é certo que isto pode, por vezes, parecer algo confuso, contribuindo também para tornar mais pausada a cadência das palavras, também o é que esta peculiaridade acrescenta como que uma surpresa constante, pois nada é certo nestes contos, excepto que tudo será inesperado.
São contos essencialmente independentes, ainda que todos pareçam seguir a mesma linha do improvável. São também relativamente independentes das ilustrações que os acompanham. Ainda assim, é interessante notar que o conjunto parece fazer sentido. As palavras mantêm essencialmente a mesma voz peculiar e o estilo também singular das ilustrações confere coesão ao todo. Assim, cada conto pode ser lido de forma isolado, mas o conjunto passa a impressão de um todo maior.
Difícil de descrever, mas fascinante na sua estranheza, trata-se, em suma, de um conjunto peculiar, onde realidade e imaginação se confundem e onde as impressões que ficam podem ser relativamente fragmentárias... não deixando, ainda assim, de exercer um estranho fascínio.

Autor: Henrique Castanheira
Origem: Recebido para crítica 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

A Pantera das Neves (Sylvain Tesson)

Convidado pelo fotógrafo Vincent Munier a visitar o Tibete, no rasto da misteriosa e cada vez mais rara pantera-das-neves, Sylvain Tesson aceita partir em viagem, longe, talvez, de imaginar o impacto da visão dessa esquiva criatura. Pois, mais que um percurso de viagem, a busca da pantera-das-neves acaba por se tornar um percurso de descoberta. De descoberta interior, sobretudo, tal como este livro bem evidencia.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que é bastante diferente do que à partida se espera de um livro de viagens. Os locais não são, muitas vezes, descritos pelo nome, e há uma razão válida para que assim seja, o que torna o percurso mais ambíguo, deixando mais espaço à imaginação. Além disso, o próprio relato que o autor vai traçando tem tanto de visão exterior como de contemplação exterior. E assim, as descrições exteriores - com excepção, naturalmente, dos animais - acabam por ser mais breves do que a ampla poesia e introspecção.
Não se fica propriamente com a sensação de ter viajado ao Tibete, o que, curiosamente, acaba por ser, a espaços, uma qualidade. É que estas descrições relativamente ambíguas, associadas à contemplação quase extática do "absoluto e das coisas", conferem ao percurso uma aura quase lendária, como que de um outro mundo que se insinua por entre a realidade. O que falta em detalhes específicos é amplamente compensado pela introspecção ora poética, ora filosófica, mas sempre muito certeira que marca o verdadeiro ritmo deste livro. E não faltam frases memoráveis para o salientar.
É um livro relativamente breve, o que contribui também para que a viagem não seja descrita de forma muito pormenorizada. Mas não deixa de ser também marcante a forma como a escrita reflecte a aura de fascínio que parece apossar-se do autor durante a experiência. Junte-se a isto a reflexão que emerge sobre o papel do homem no mundo e a sua relação com o ambiente e os animais e o resultado é um equilíbrio eficaz entre viagem interior e exterior, entre visão e reflexão.
Relato de uma viagem onde os locais são o que menos importa, trata-se, pois, de um livro que, ambíguo quanto baste nas descrições, consegue, ainda assim, traçar uma visão precisa da descoberta interior e exterior. Da pantera... e sobretudo daqueles que a contemplam.

Autor: Sylvain Tesson
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A Conspiração do Graal (Lynn Sholes e Joe Moore)

Cotten Stone partiu para o Iraque para encontrar a história da sua carreira e também para fugir a um caso amoroso. Mas a história com que se depara é muito maior do que alguma vez imaginou - e mais perigosa. Em busca de uma boleia para poder sair do país, acaba por se deparar com uma expedição arqueológica e com a maior descoberta religiosa da humanidade. Acaba por ser Cotten a entregar ao Vaticano a mais desejada de todas as relíquias: o Santo Graal. Mas o que poderia ser o fim é apenas o princípio. A descoberta do Graal é apenas o início de um grande e perigoso plano. E Cotten não está segura, pois ela mesma faz parte do plano que começa a ganhar forma - o de uma Segunda Vinda profetizada, mas ensombrada por abominações.
O aspecto mais cativante deste livro está, sem dúvida, na forma como entrelaça os elementos comuns a muitos thrillers históricos - relíquias perdidas, sociedades secretas, possíveis interpretações alternativas da narrativa bíblica - com um elemento realmente sobrenatural. O que começa por ser uma luta entre ambição e simbolismo progride depois para um plano mais mitológico, que assume ainda novos contornos face a elementos misteriosos como a infância de Cotten e o enigmático velho que, escondido nas sombras, parece comandar as operações. E assim, entre os muitos momentos de acção e de perigo, surge também uma grande medida de simbolismo, que torna tudo mais complexo e empolgante.
Também bastante marcante é o desenvolvimento das personagens e, sobretudo, das relações entre elas. Ainda que certos desenvolvimentos possam parecer um pouco apressados, resultado da rapidez com que uma descoberta relativamente inofensiva se torna numa corrida contra o tempo, existe uma certa força na forma como as várias personagens se relacionam. Das paixões impossíveis aos laços familiares e amizades profundas, sem esquecer, naturalmente, a forte relação que vai crescendo entre Cotten e John Tyler, há laços a nascer - e a morrer - ao longo de todo o percurso. Junte-se a isto a personalidade forte de Cotten e o resultado é uma sucessão de momentos intensos, sejam de amor, humor... ou até mesmo de medo.
Importa ainda mencionar que se trata do primeiro volume de uma série, o que significa que é apenas natural que fiquem umas quantas questões em aberto. Mas, quanto à linha central do enredo deste volume, fica devidamente resolvida, o que significa que, mais do que curiosidade insatisfeita, o que fica ao terminar a leitura é uma grande vontade de reencontrar Cotten Stone.
Intenso e intrigante, trata-se, pois, de um livro que conjuga as medidas certas de história e de mito, de quotidiano e de sobrenatural, num enredo cheio de reviravoltas e de mistérios, que cativa da primeira à última página. Vale bem a pena conhecer Cotten Stone e John Tyler. E é grande a vontade de saber o que se seguirá.

Autores: Lynn Sholes e Joe Moore
Origem: Recebido para crítica 

sábado, 19 de setembro de 2020

Monstress, volume 4: Os Escolhidos (Marjorie Liu e Sana Takeda)

O mundo parece estar cada vez mais próximo do caos. Alianças perigosas e movimentações secretas parecem tornar cada vez mais inevitável a certeza da guerra iminente, e há forças poderosas que só agora começam a manifestar-se. É no meio desta teia de intrigas que Maika continua à procura de respostas. As que a esperam não são, contudo, as que deseja. O ressurgir de uma figura do seu passado insinua laços fortes, mas acaba por abrir portas apenas a mais caos e mais dúvida. E Maika já nem em si mesma está certa de poder confiar. A sua natureza esconde segredos terríveis. E os poucos laços de confiança que acalenta podem também estar muito perto de quebrar...
À semelhança do que já acontecera com os volumes anteriores, também neste quarto livro é a arte deslumbrante o primeiro aspecto a arrebatar. E deslumbrante é mesmo a palavra certa, já que a vastidão de pormenores, das roupas aos objectos, passando pelos cenários incríveis, associada a um contraste poderoso entre sombras profundas e um brilho que quase parece saltar da página, além, claro, da expressividade das personagens, fazem com que baste olhar para a primeira página para nos sentirmos novamente transportados para este mundo. E é algo de impressionante a forma como este contraste de luz e de sombra reflecte na perfeição não só os rumos da história, mas o que vai no coração da própria protagonista.
Parte do que torna Maika tão impressionante é precisamente a sua complexidade, não só em termos de origens e de poderes, mas sobretudo a nível emocional. É alguém que passou por grandes perdas, por tribulações indescritíveis e que está agora perante revelações arrebatadoras sobre a sua própria natureza. É alguém destinado à destruição. E, ainda assim, é sempre manifesta uma vaga nobreza, uma percepção do que está certo, o que, dado o mundo e a teia de intrigas que a envolvem, é algo de verdadeiramente notável. Além disso, entre a ambiguidade de Maika, as movimentações duvidosas de personagens como Ren e Corvin e a ambição que move a grande maioria das forças em conflito, há também espaço para pura inocência. Kippa é a ternura que transborda de um mundo cheio de sombras e a sua inocência é a luz que contrasta com as trevas de tudo o resto.
Mais uma vez, fica tudo em aberto, até porque a história não acaba aqui. Mas fica também novamente a impressão de que grandes passos foram dados rumo à derradeira conclusão. Maika sabe mais do que sabia no início deste livro. Quanto às forças em conflito, foram dados passos de que não há volta atrás. E assim, tudo termina com novas possibilidades e uma grande expectativa, mas também com a sensação de que esta fase terminou e de que o que se segue terá de ser diferente.
Tudo neste livro é arrebatador, desde a arte deslumbrante às movimentações intrincadas de uma guerra iminente e inevitável, passando pelo contraste de sombras e luz nos cenários e no coração das personagens. Tudo é belo. Tudo é fascinante. E tudo isto faz deste quarto volume mais um pequeno prodígio numa série a não perder. Maravilhoso.

Autoras: Marjorie Liu e Sana Takeda
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Chá das Cinco

Simone está a começar do zero numa nova escola e desta vez as coisas serão diferentes. Está a fazer bons amigos e a escrever uma peça para Miles, o rapaz que a faz derreter sempre que o vê. A coisa que menos deseja é que se saiba que ela é seropositiva, porque da última vez... Bem, da última vez as coisas ficaram feias.
Manter a sua carga viral sob controlo é fácil, mas preservar o segredo do seu diagnóstico não é tão simples. À medida que Simone e Miles começam a avançar na sua relação – com beijos tímidos a evoluir para algo mais –, ela sente uma inquietação que é mais do que borboletas na barriga. Ela sabe que tem de lhe contar que é seropositiva, mas está apavorada com a forma como ele poderá reagir. Até que encontra um bilhete anónimo no seu cacifo: Sei que tens VIH. Tens até ao Dia de Ação de Graças para deixar o Miles. Ou toda a gente vai ficar a saber.
O primeiro instinto de Simone é proteger o seu segredo a todo o custo, mas quando vai descobrindo os medos e preconceitos na sua comunidade, começa a perguntar-se se a única forma de os superar não será enfrentando os inimigos de cabeça erguida...

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Andrómeda ou O Longo Caminho para Casa (Zé Burnay)

O mundo é um deserto, povoado por criaturas tão letais como arrepiantes e onde os poucos refúgios não são tão seguros como parecem ser. É através deste mundo - devastado e reduzido a ruínas - que um homem caminha sem outro rumo definido que não o do caminho para casa. Mas casa é onde quando tudo é vazio e só horrores se escondem ao virar de cada esquina? Quem é o homem que caminha? Que poderes se lhe manifestam? E quanto do que vê é toca é real num mundo onde tudo parece ser uma visão?
Uma boa palavra para descrever este livro seria provavelmente... indescritível. E entenda-se isto como uma qualidade. É que tudo neste livro é tão novo, tão singular, tão único na sua visão meio onírica, meio apocalíptica, que não há muito que se possa dizer sobre o enredo - se tal lhe podemos chamar - sem dizer demasiado ou gerar confusão. A base está no título. É um longo caminho para casa. O que surge ao longo deste caminho... é estranho. E fascinante.
Todo o percurso parece assumir uma aura de visão ou de pesadelo, sendo, por isso, obviamente a arte que se destaca. E também aqui há singularidades. Em primeiro lugar, o detalhe impressionante dos grandes cenários, que tornam quase tangível a potência mística destes sonhos ou visões. Em segundo, o facto de grande parte dos acontecimentos ocorrerem sem diálogo, o que significa que grande parte da história (mais uma vez, se assim se lhe pode chamar) vive de movimentos, acções e expressões. E, em terceiro lugar, o poderoso silêncio, quase palpável, que quase parece transbordar das páginas. É por um mundo quase deserto que o errante protagonista deste livro deambula. E, assim sendo, os diálogos são pontuais, ainda que também fascinantes na sua singularidade. Mas é no silêncio que estão os momentos mais notáveis e as visões mais poderosas.
E quanto ao caminho para casa... como dizer? Num livro onde tudo é tão intrincado e estranho, não são propriamente de esperar conclusões limpas e perfeitas. Importa, pois, dizer só que, com toda a ambiguidade que fica das respostas possíveis, a forma como tudo termina enquadra-se perfeitamente na imensidão desértica e de pesadelo que marca os passos do protagonista.
Visualmente poderosíssimo, fascinante no cenário singular que traça para as deambulações da sua figura central e arrepiante na forma como entrelaça silêncio e palavras, eis, pois, um livro memorável em todas as suas facetas. E indescritível, como disse, mas também por isso impressionante.

Autor: Zé Burnay
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Sombra de um Peregrino (Rafael Loureiro)

Achava que tinha uma vida plena... mas bastou uma noite e tudo desabou. Agora, passado quase um ano desde a noite em que uma entidade indefinida lhe roubou a mulher, a vida que conhecia e a sua paz interior, Adriel não pode dormir, pois adormecer significa reviver constantemente esse mesmo instante de pesadelo. Mas, ainda que a sua cruz seja sua para carregar, Adriel não está sozinho. Conta com o auxílio e o conforto de Abílio, um frade mercedário que, tendo-o conhecido no pior dos seus momentos, se associou a demanda de Adriel. E esta demanda que, através de múltiplas pistas e de alguns contactos úteis, os conduzirá à descoberta da verdade. Mas entorpecido pela privação de sono, atormentado pelo colapsar da fé e dividido entre novos sentimentos e a sombra profunda que o envolve por completo, Adriel tem ainda um longo caminho a percorrer - e uma sombra ainda mais negra à sua espera.
Independentemente das muitas e fascinantes peculiaridades do mundo (ou submundo) em que estas personagens se movem, da intrincada teia de mistério e de misticismo que parece envolver cada revelação e do crescendo de tensão e de perigo que marca o ritmo de todo o enredo... Independentemente de todas estas qualidades, que estão efectivamente bem presentes, é impressionante a forma como é o impacto emocional de todo o percurso o que mais profundamente se entranha na memória. É fácil sentir empatia por quem perdeu tudo e a situação de Adriel facilmente desperta solidariedade. Mas é particularmente fascinante a forma como esta proximidade imediata se vai aprofundando e transformando em algo mais forte ao ritmo da progressão dos acontecimentos. É fácil sentir a impotência do homem que perdeu tudo e ainda se viu acusado pela sua perda. Mas é fácil sentir também o seu desejo de vingança, as suas dúvidas, a sombra negra que constantemente o envolve, em profundo contraste com a luz discreta (mas oh, tão poderosa...) do seu companheiro mais próximo. Junte-se a isto outro curioso contraste - o dos laivos de ternura e até de leveza que rasgam a sombra densa da vida do protagonista - e o resultado é uma intensa viagem emocional.
Mas nem só de emoções vive este livro. Vive também das personagens, do mundo e da história. O mundo é o nosso mundo real, mas meticulosamente entrelaçado nos mitos intemporais de anjos e demónios, de tentação, possessão e exorcismo. A história... bem, a história é cheia de surpresas, não só na linha central de procura e combate à estranha entidade, mas também no que diz respeito à jornada de Adriel na sua negação ou descoberta da fé. E as personagens são fascinantes, cada uma à sua maneira, todas com as suas peculiaridades, mas todas (ou quase todas, por razões que se tornarão óbvias...) com a sua medida de humanidade e de vulnerabilidade.
E importa referir um último ponto, principalmente para quem já leu os outros livros do autor. Lembram-se de Nocturnus? Bem... Aparentemente, a história deles nunca acaba. E, ainda que a sua presença neste livro seja relativamente discreta, é sempre um prazer reencontrá-los, principalmente quando protagonizam momentos tão poderosos.
História de anjos e demónios, de fé e de desolação, de perda, de descoberta e de uma vida, talvez, para além do abismo. Tudo isto, define, de certa forma este caminho: um caminho repleto de surpresas, povoado por gente notável e de uma emotividade tão profunda que, mais do que na memória, há coisas que nos ficam gravadas no coração. Se recomendo? Naturalmente. É uma história belíssima.

Autor: Rafael Loureiro
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Lockdown - Inimigo Invisível (Peter May)

O impensável aconteceu. A cidade de Londres encontra-se em quarentena, na sequência da pandemia de gripe das aves que, subitamente, começou a matar grande parte da população. Mas o isolamento não trouxe consigo o fim dos mistérios - muito pelo contrário. E, quando os ossos de uma criança são encontrados no local onde, dentro de poucas horas, será construído um hospital, cedo se torna evidente que há quem, na cidade, tenha muito a esconder. Cabe agora ao inspector Jack MacNeil, no seu último dia de trabalho, encontrar respostas e dar à menina morta a justiça possível. Ainda que isso implique deixar para segundo plano as suas próprias perdas.
Tendo em conta os dias que vivemos actualmente, não é propriamente uma surpresa que o que mais cativa neste livro seja a sua premissa. Vivemos recentemente o isolamento em resultado de uma pandemia e uma das coisas que este livro nos consegue lembrar é quão facilmente as coisas poderiam ser ainda muito piores. Assim, mais do que o mistério em si, com todo o perigo e acção associados, é este lado emocional que fica na memória: a opressão do isolamento, o sofrimento indescritível da perda, a resignação à omnipresença da morte. Mais do que tudo o resto, é isso que fica na memória.
Mas houve um crime e há um mistério, e também neste aspecto há muito para desvendar. Se o início desperta uma grande empatia pela menina morta, a sucessão de revelações traz à tona outro tipo de sentimentos, além de uma grande e - tendo em conta o contexto - revoltante intriga. Cada nova descoberta vai acrescentando novas peças ao puzzle, num crescendo de intensidade feito tanto da descoberta da verdade como de uma sucessão de conflitos pessoas que tornam tudo mais intenso.
E é por as derradeiras respostas serem tão revoltantes que fica uma ligeira curiosidade insatisfeita relativamente às consequências mais globais, ainda que figura central encontre um destino mais que adequado. Seria, talvez, interessante conhecer mais a fundo as repercussões globais da grande revelação no cerne deste livro. Faz, ainda assim, um certo sentido que a história termine da forma como o faz: afinal, grande parte do percurso foi movido por objectivos pessoais e, tendo isto em conta, também a conclusão parece adequada.
Somadas as partes, o que fica deste livro é, pois, uma impressão bastante notável, com o seu enredo construído há quinze anos, mas mais actual do que nunca, e com as muitas questões pertinentes que, gradualmente, emergem do seio do mistério. E é isso que o torna memorável: a capacidade de trazer verdade a partir do caos... ainda que não uma justiça absoluta.

Autor: Peter May
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Asa

Durante uma missão de rotina num planeta não colonizado, a xenobióloga Kira Navárez descobre uma relíquia alienígena. O seu entusiasmo inicial transforma-se em terror quando o pó que agora cobre todas as superfícies começa a mexer-se. Já na nave, descobre que algo vive dentro dela, algo capaz de extrema violência. À medida que a guerra estala entre as estrelas, Kira é enviada numa odisseia de alcance extra galáctico, uma viagem de descoberta e transformação que a levará a questionar o próprio significado da condição humana. Enquanto Kira enfrenta os seus próprios horrores, a Terra e as suas colónias encontram-se à beira da aniquilação. Agora, Kira pode ser a maior e última esperança da humanidade.

Christopher Paolini nasceu no Sul da Califórnia e viveu a maior parte da sua vida em Paradise Valley, no Montana, com os pais e a irmã mais nova, Angela. Foi a sua paixão pela fantasia e a beleza natural do Montana que inspiraram o fantástico cenário de Eragon, o primeiro livro do Ciclo da Herança. Tinha quinze anos quando escreveu a primeira versão de Eragon, que acabou por ser publicado em 2003, transformando-se de imediato num sucesso mundial. Seguiu-se Eldest, o segundo capítulo do Ciclo que acompanha Eragon e o dragão Saphira, e depois Brisingr e Herança. Artista talentoso, Christopher desenhou também as ilustrações dos livros. Nos seus tempos livres gosta de afiar facas, entreter-se com videojogos, levantar coisas pesadas, e procurar exemplares perfeitos de cadernos com capa em pele 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Os Vivos e os Outros (José Eduardo Agualusa)

Escolhida pela sua beleza para a realização de um novo festival literário, a ilha de Moçambique acaba por se revelar princípio e fim de coisas muito diferentes. E tudo começa sem ninguém dar conta, com uma tempestade que parece não os ir alcançar, mas que os deixa isolados do mundo durante vários dias. É neste contexto que os vários escritores envolvidos, entre os quais o já conhecido Daniel Benchimol, começam também a viver e a reviver coisas estranhas. As suas personagens parecem ter fugido das páginas dos livros, deambulando pela ilha isolada e despertando emoções fortes. Mas quanto do que este grupo de escritores está a viver é real e quanto é fruto da sua imaginação? E haverá realmente alguma diferença?
Não é fácil começar a referir pontos fortes num livro como este, em que todos os elementos se conjugam num todo tão equilibrado que é difícil puxar um fio individual sem desfazer a soma das partes. Mas poder-se-á, talvez, começar por aí, por este equilíbrio perfeito que torna a leitura tão fascinante na sua mistura de enigmas e de inexplicáveis que parecem, ainda assim, tão naturais. Há muito nesta história que é improvável, a começar, desde logo, pela presença de personagens literárias no mundo "real", mas tudo acontece de forma tão natural que o improvável torna-se credível e as estranhezas desta ilha - e destes escritores - tornam-se perfeitamente reais.
É uma naturalidade singular, que transborda não só dos acontecimentos, mas da cadência das próprias palavras. Resumidamente, a escrita é belíssima, repleta de frases memoráveis, mas também moldada num todo em que tudo tem precisamente o tom, o registo, até a melodia certa para a situação a que se refere. Assim, há memórias que ressurgem, com a necessária nostalgia, diálogos directos, quase que em tom de conflito, imagens que, descritas com a maior da simplicidade, traçam um quadro verdadeiramente impressionante. E tudo encaixa. Tudo faz sentido, mesmo o que no mundo real não deveria fazer.
Claro que, feita de mistérios e de improváveis, esta não poderá nunca ser uma história de respostas totais e finais perfeitos. Não é. Mas também isso contribui para a sua magia, pois realidade e imaginação passaram todo o percurso intimamente entrelaçadas. E, assim sendo, é apenas natural que a linha que separa estas duas facetas - real e imaginário, possível e aparentemente impossível - seja também ligeiramente esbatida.
"A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela!" - diz uma das personagens deste livro. E é também uma boa forma de descrever este Os Vivos e os Outros: um livro em que a ficção se torna credível e, assim, se torna também um pouco real. Fascinante na naturalidade da magia, belíssimo na cadência das palavras e surpreendentemente envolvente na alma que constrói para as suas personagens, um livro memorável em todos os aspectos. E a não perder.

Autor: José Eduardo Agualusa
Origem: Recebido para crítica

domingo, 13 de setembro de 2020

Estou Com Ciúmes (Aurélie Chien Chow Chine)

A prima do Gastão veio de visita, o que inicialmente o deixou muito feliz. Mas todas as atenções parecem ter-se voltado para ela, o que deixou o Gastão a sentir-se um pouco sozinho... e bastante enciumado. Ora, o Gastão tem uma crina mágica que mostra as suas emoções. E, melhor ainda, tem uma forma de lidar com elas para voltar a sentir-se bem.
O aspecto mais cativante deste conjunto de pequenos livros é, sem dúvida, a forma como normaliza as emoções. Se até os adultos se vêem, por vezes, em dificuldades para lidar com aquilo que estão a sentir, muito mais difícil será para os mais pequenos. Ora, as histórias do Gastão mostram-nos que sentir é normal e ensinam-nos formas de lidar com estes sentimentos. Neste caso, é o ciúme o protagonista e, embora de forma muito breve, este pequeno livrinho mostra bem em que consiste e de que formas se manifesta.
É também um livro fofo, com as suas ilustrações simples, mas cheias de ternura. Os pormenores das crinas dos unicórnios, além, claro, das mudanças na crina do próprio Gastão, trazem cor e magia a um núcleo de personagens já cheio de vida. Além disso, as ilustrações são o complemento perfeito para um texto que é muito simples, ainda que também muito certeiro.
E, claro, sendo como é um livro infantil, há ainda outros dois pontos que ficam no pensamento: a interactividade, através da proposta do exercício de respiração; e a cadência de um texto simples, que facilmente pode ser lido em voz alta. Além, claro, de que esta leitura aos mais pequenos (ou com eles) lembra também aos mais velhos a sempre pertinente mensagem de que é normal sentir.
Simples, ternurento e educativo: assim é mais esta história do Gastão. Uma forma de compreender os ciúmes, de lidar com eles e de recuperar o sorriso. Afinal, já todos sentimos ciúmes. São naturais, não é verdade?

Autora: Aurélie Chien Chow Chine
Origem: Recebido para crítica 

sábado, 12 de setembro de 2020

Torpor (Luís Adriano Carlos)

Cadências alucinadas difíceis de descrever, onde se entrelaçam rimas no interior dos versos e paisagens que ora são cenários exteriores, ora são gestos ritualizados, ora ainda são traçados de um interior melancólico. Versos longos, ao ritmo da torrente dos pensamentos, traçando imagens intensas, ainda que nem sempre evoquem correspondentes visuais. Assim são os poemas deste pequeno livro: estranhos, difíceis de descrever, mas estranhamente cativantes.
É o ritmo o primeiro aspecto a chamar a atenção nesta leitura e é também o ritmo que mais fica na memória. Composto essencialmente por poemas longos, constituídos por sua vez por versos também longos, é um livro em que a cadência assume o papel de destaque, ao ponto de cedo se tornar evidente que cada um destes poemas tem outro impacto se for lido em voz alta. Juntemos a isto um uso muito peculiar - e muito intrigante - da rima e o resultado é um ritmo próprio, singular, que facilmente fica na memória.
Vêm depois as imagens e uma outra forma de singularidade. São poemas relativamente complexos, que muitas vezes evocam cenários surreais e até mesmo uma forma de ritualização que é particularmente fascinante. (São, aliás, estes últimos os poemas que mais se demoram no pensamento.) Em tudo há uma certa estranheza, com tanto de surreal como de fascinante. E, assim sendo, é, mais uma vez, difícil descrever as impressões que esta leitura vai deixando na memória. Mas são notáveis, isso é certo.
Importa ainda realçar dois últimos aspectos. Primeiro, o facto de toda esta estranheza e complexidade não implicar necessariamente distância: não faltam os versos memoráveis, capazes de evocar uma estranha proximidade, como se também nós deambulássemos por este mundo estranho. E segundo, o facto de, apesar de cada poema ser um todo completo, haver elos de ligação entre textos que conferem ao livro como um todo uma maior coesão.
Singularmente surreal, mas absurdamente cativante, trata-se, pois, de um livro que esconde na sua brevidade complexidades insuspeitas. E é também por isso que todas as coisas que o tornam difícil de descrever fazem também deste Torpor uma leitura memorável.

Título: Torpor
Autor: Luís Adriano Carlos
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Stumptown - Volume Um (Greg Rucka e Matthew Southworth)

Dexedrine Parios é uma talentosa detective privada cujos vícios e falta de sorte deixam em constantes dificuldades financeiras. E é para pagar uma dívida que Dex se vê a seguir o rasto de Charlotte, neta da dona do casino a quem Dex deve uma elevada quantia. O problema é que desta vez a explicação mais simples não é a verdadeira e Charlotte não fugiu com um rapaz. Fugiu, sim, de alguém muito perigoso e que quer eliminar pontas soltas... Dex não tarda a perceber que a situação é mais complexa do que parecia e que, para a resolver, terá de fazer umas quantas escolhas difíceis.
De longe o aspecto mais cativante deste livro é o facto de a protagonista ser tudo menos a detective perfeita. Tem os seus talentos, é verdade, que se manifestam quando realmente é preciso, mas também tem as suas vulnerabilidades, o que, além de proporcionar vários momentos divertidos, tem o dom de humanizar esta peculiar detective. Afinal, é difícil não sentir uma certa empatia por quem está a levar porrada - principalmente, quando a dita porrada se deve ao facto de estar do lado certo.
Também particularmente notável é a forma como a componente visual, principalmente a cor, traça o ambiente perfeito para cada momento da história. A casa de Dex, sombria e azulada, reflecte um pouco os seus estados de espírito. Os tons sombrios, com ocasionais rasgos de cor (vermelho-sangue e amarelo-luz, sobretudo), realçam o perigo e o mistério que dominam toda a história. E, se juntarmos a isto certos rasgos de expressividade, não só de Dex, mas sobretudo do irmão, cuja presença discreta acaba por ser também a força motriz da protagonista, o resultado é algo que facilmente fica na retina.
Voltando à história, importa referir que, embora sendo o primeiro volume de uma série, o caso central fica efectivamente resolvido. Assim, e dado envolver elementos surpreendentemente complexos, fica, talvez, a sensação de que algumas coisas avançam de forma um pouco acelerada. Não deixa, ainda assim, de ser curiosa a forma como este ritmo alucinante acaba por se ajustar ao contexto dos acontecimentos, pois a informação pode surgir de forma concisa, nomeadamente no que diz respeito aos Marenco, mas o essencial está lá.
O que fica deste primeiro volume é, pois, a impressão de uma leitura empolgante, feita de crime e de investigação, mas, sobretudo, da vulnerabilidade da protagonista. Espécie de Jessica Jones, mas sem super-heróis e com uma identidade própria, Dexedrine Parios fica na memória. E é impossível não querer saber que outras aventuras a aguardam.

Título: Stumptown - Volume Um
Autores: Greg Rucka e Matthew Southworth
Origem: Recebido para crítica 

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

As Nuvens de Hamburgo (Pedro Cipriano)

Apesar das dificuldades levantadas pela família, Marta conseguiu finalmente conquistar a sua vitória e ir estudar para Hamburgo. Mas esperam-na outro tipo de problemas que cedo começam a manifestar-se com a visão inesperada de bandeiras nazis num país onde estas são proibidas. Inicialmente, Marta julga que pode estar a enlouquecer, mas um rápido olhar à história mostra-lhe que as suas visões são verdadeiras viagens ao passado. Mas porquê? O que as provoca? E, de tantos períodos históricos a visitar, tinha mesmo de lhe sair aquele? Talvez haja um motivo. Talvez Marta tenha uma missão a cumprir. Mas, para isso, precisa primeiro de compreender como funcionam as suas viagens ao passado.
Com as suas menos de cem páginas e uma premissa que, à partida, exigirá um certo contexto, tanto no que toca às viagens no tempo como no que diz respeito ao período visitado, talvez fosse de esperar que uma história tão breve fosse inevitavelmente apressada. Bem, não é. Tudo parece ter a medida adequada, cingindo-se, é certo, aos elementos essenciais - até porque toda a história é vista da perspectiva de Marta - mas sem deixar de fora nada de crucial. Além disso, tendo em conta o período histórico visitado pela protagonista, faz especial sentido que as suas experiências desse período não sejam muito aprofundadas, pois, como os últimos capítulos bem demonstram, essa exploração prolongada pode ter consequências terríveis.
Quanto a viagens no tempo, há outro elemento que se destaca. Ao explorar este tema, o que acontece frequentemente às personagens é que vão súbita e inexplicavelmente parar ao passado, onde vivem uma história sequencial (ou tão sequencial quanto possível). Bem, as viagens de Marta são diferentes. Surgem como visões momentâneas, ao ponto de, numa fase inicial, a sua realidade ser questionada, e mantêm esta faceta temporária mesmo nos desenvolvimentos mais atribulados. Além disso, parece haver um princípio definido - ainda que não totalmente revelado - associado a estas viagens. Marta sugere explicações possíveis e há outras a vir ao pensamento ao longo da leitura. Uma coisa é certa: existem razões. E a forma como Marta as vai gradualmente dominando - mais uma vez, na medida do possível - é também muito interessante.
Importa ainda voltar à brevidade para salientar o equilíbrio que emerge da própria escrita. Directa quanto baste, mas capaz de transmitir na perfeição os pensamentos e angústias da protagonista, consegue traçar cenários nítidos sem nunca perder a leveza e a concisão que tornam a leitura tão empolgante.
Breve, mas com um equilíbrio quase perfeito entre a intensidade dos acontecimentos, a natural confusão na mente da protagonista e um fenómeno que, aparentemente inexplicável, não deixa por isso de ser bem real, trata-se, pois, de uma leitura intensa e cativante, além de cheia de surpresas. Vale muito a pena conhecer a Marta... e fica a vontade de a reencontrar.

Título: As Nuvens de Hamburgo
Autor: Pedro Cipriano
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Divulgação: Novidades Saída de Emergência

Há séculos que Maxis Drago vive em reclusão as consequências do seu trágico destino. O residente mais misterioso e reservado do Santuário perdeu a sua mulher, e tudo o que tinha, às mãos de um rival implacável que jurou vê-lo cair. Desde então, vagueia taciturno e com as suas enormes asas fechadas. Todos dizem que não pode voar. Mas o destino age de formas misteriosas e perversas e ainda tem reservadas algumas surpresas. Quando os velhos inimigos de Maxis regressam com sede de vingança, o campo de batalha escolhido é a moderna Nova Orleães.

Neste quarto volume, Maika está finalmente perto de encontrar as respostas que há muito procura — mas a que preço? Quando os seus amigos e aliados revelam segredos escondidos e alianças instáveis, Maika vê-se face a face com um estranho do seu passado longínquo, um carismático demagogo cujas ligações a Maika e Zinn são mais profundas do que alguma vez se poderia imaginar.
Com uma guerra iminente entre Humanos e Arcânicos — uma guerra que ninguém quer impedir —, que lado irá Maika escolher?

A guerra aproxima-se. O exército de Roma será testado até ao limite contra um inimigo inesperado.
O tribuno Cato e o centurião Macro, veteranos do exército romano, estão estacionados na fronteira oriental, conscientes de que os seus movimentos são constantemente controlados pelos espiões da perigosa e misteriosa Pártia. Mas o inimigo nas fileiras de Roma pode ser uma ameaça mais mortal para a legião… e para o império.
Roma é implacável para com aqueles que traem os seus camaradas e o império. Mas antes é necessário descobrir o culpado. Cato e Macro estão numa luta contra o tempo para expor a verdade, enquanto o poderoso inimigo aguarda pacientemente para explorar quaisquer fraquezas da legião.
O traidor tem de morrer… 

Um romance apaixonante e comovente sobre o movimento Rosa Branca, que enfrentou os nazis e pagou o preço definitivo.
No verão de 1942, quando a guerra alastra pela Europa, começam a surgir panfletos anónimos perto da Universidade de Munique que alertam para as atrocidades nazis. A estudante Natalya Petrovich sabe quem está por detrás dos panfletos — um grupo secreto chamado Rosa Branca. Como enfermeira na frente russa, Natalya testemunhou os horrores da guerra em primeira mão. Quando decide entrar no círculo Rosa Branca, sabe que cada palavra sussurrada pode significar a morte às mãos da Gestapo. Mas a jovem decide arriscar tudo na esperança de que o poder dessas palavras encoraje outros a resistir. Infelizmente, o perigo pode esconder-se até entre aqueles em quem mais confia, e, quando tudo ameaça desmoronar, só há uma decisão a tomar.
Baseado na verdadeira história do Rosa Branca — o movimento de resistência de jovens alemães contra o regime nazi —, Traição narra a história de uma mulher que, durante um dos períodos mais negros da História, arriscou tudo para enfrentar a tirania.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Os Guardiões (John Grisham)

Quincy Miller foi condenado por um crime que não cometeu e há mais de vinte anos que está na prisão, esquecido pela família e sem um advogado que o defenda. Mas isso acaba de mudar. O Ministério dos Guardiões, um pequeno grupo dedicado à obtenção de justiça para os injustamente condenados, escolheu representar Quincy. O rosto deste grupo e Cullen Post, advogado, pastor episcopal e absurdamente dedicado às suas causas. O caso de Quincy não é, contudo, um mero erro da justiça. Foi uma conspiração deliberada para o condenar pelo crime. E, mesmo passados mais de vinte anos, tentar corrigir essa trama pode ter consequências terríveis...
Basta a premissa deste livro - a da luta pela libertação de um inocente condenado - para despertar interesse em empatia. Afinal, a luta pela correcção de um erro que teve consequências terríveis contra aqueles que deviam ser os primeiros a assumi-lo dá, por si só, uma história empolgante. E o autor tem uma forma particularmente cativante de construir esta história. Se, por um lado, basta a situação de Quincy para gerar empatia e deixar os leitores a torcer por ele, a própria posição do Ministério dos Guardiões, pequena organização quase falida, mas decidida a fazer o que for necessário para ajudar os que dele precisam, desperta também uma certa admiração. Ora, a conjugação destas duas facetas resulta, naturalmente, no tipo de história em que é possível não querer saber o que acontece a seguir.
E o que acontece... é um turbilhão de surpresas. Sejam confrontos em tribunal, revelações pessoais, inesperados regressos do passado e até um episódio particularmente sinistro ordenado pelos principais conspiradores, há em cada capítulo algo de marcante. E é particularmente notável a forma como os elementos mais perigosos e as situações mais dramáticas contrastam com outros que, mais feitos de serenidade ou de resignação, ou ainda de uma forma mais pessoal de desespero, abrem também as portas do coração das personagens.
Até porque a história não vive apenas do caso de Quincy e há outros aspectos, tanto da acção do Ministério como da história pessoal dos seus membros, que acrescentam complexidade à história. E há ainda um ponto a conferir-lhe realismo. O objectivo é a absolvição do condenado. A descoberta do verdadeiro culpado pode ser um bónus, mas nem sempre acontece. E assim, desde cedo que este livro nos vai preparando para que nem tudo tenha respostas ou soluções definitivas, pois faz sentido que assim seja. Mas as que tem... são bastante impressionantes.
Empolgante, surpreendente e, a espaços, curiosamente emotivo, trata-se, pois, de uma leitura envolvente, repleta de personagens marcantes e cativante do início ao fim. Uma história de justiça depois da injustiça - e de verdades que, apesar de tudo, não prescrevem.

Título: Os Guardiões
Autor: John Grisham
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Dylan Dog - O Velho que Lê (Fabio Celoni, Tiziano Sclavi e Angelo Stano)

O velho Ozra costumava passar a vida a ler... até ao dia em que pousou o livro nos joelhos, olhou para o relógio e desapareceu. Agora, três dos seus velhos amigos querem saber  o que lhe aconteceu e, seguindo a pista de um estranho marcador, acabam por bater à porta de Dylan Dog. Ora, um desaparecimento é algo que, à partida, é da responsabilidade da polícia, mas não no caso de Ozra. É que não se trata de um rapto nem nada que se pareça... Ozra desapareceu... para um mundo peculiar. E é para lá que Dylan terá de o seguir.
Uma das primeiras coisas a ficar na retina ao dar início a esta leitura é o fascínio da arte. Sendo a preto e branco, não é propriamente uma surpresa que os jogos de luz e sombra tenham um papel crucial, mas neste caso, associados aos cenários oníricos e a uma alucinante vastidão de pormenores, o jogo de sombras é verdadeiramente impressionante. Associemos a isto o contexto que explica estes estranhos cenários, mistura de inspiração literária e de paisagem de sonho e pesadelo, e estas páginas onde tudo é peculiar e fascinante tornam-se simplesmente irresistíveis.
Outro ponto curioso é a forma como o que inicialmente se assemelha a uma simples - bem, ou não tão simples assim - história de detectives não tarda a ganhar contornos de algo muito diferente. Nas memórias de Ozra, vivem horrores do passado, inspirações livrescas e um amor transformado em prisão. Além disso, o elemento sobrenatural faz com que a história resvale um pouco para o horror, mas um horror interno, psicológico, daquele que nos mexe com a cabeça e se nos entranha nas memórias. Também isso é algo de brilhante, principalmente tendo em conta as muitas revelações que lhe estão associadas.
E depois há Dylan Dog, claro. Para quem, como eu, tem aqui o seu primeiro contacto com o protagonista, é quase impossível não sentir uma mistura de estranheza e de empatia. Dylan tem capacidades peculiares, mas tem, acima de tudo, um coração notável. E é fascinante a forma como isto molda o rumo dos acontecimentos, fazendo do que começou por ser um mistério uma história surpreendentemente emotiva, surpreendentemente complexa... e absurdamente expressiva nas emoções que evoca.
Feito de sombras e de mistério, de amor humano e amor livresco, de pesadelos e de emoção, trata-se, pois, de uma leitura breve, mas vastíssima nas suas qualidades. Visualmente belíssimo, emocionalmente devastador e muito, muito intrigante, um livro que não posso deixar de recomendar.

Título: Dylan Dog - O Velho que Lê
Autor: Fabio Celoni, Tiziano Sclavi e Angelo Stano
Origem: Recebido para crítica

sábado, 5 de setembro de 2020

Observação da Gravidade (André Osório)

Longas paisagens e pequenos fragmentos. Imagens que se projectam para o interior e pensamentos que, aparentemente simples, quase parecem conter uma vida inteira. Longas deambulações por sequências de gestos ligeiramente surreais e breves imagens surpreendentemente certeiras. É de um pouco de tudo isto - e mais - que é feita esta Observação da Gravidade. Gravidade que não afecta apenas os corpos, mas também a mente.
Não é propriamente fácil descrever este livro, até porque o seu ponto mais forte está no facto de gerar sobretudo impressões e sensações fortes, mais do que propriamente percepções racionais. E isto é em si mesmo uma surpresa, porque, se olharmos para os versos tal como eles são, parece haver uma firme base objectiva - paisagens, objectos, gestos - mas projectada para algo de diferente, de indefinível interioridade. É o tipo de livro que dificilmente se defina, mas que deixa várias pegadas na memória.
Talvez seja possível, apesar disso, olhar um pouco para a estrutura. E a estrutura é relativa. Há poemas de várias páginas e outros de apenas três versos. Poemas com ritmo definido e com a cadência do pensamento. Poemas com rima e sem ela. À imagem das paisagens relativamente reais, relativamente surreais que evoca, também a estrutura vagueia ao ritmo das sensações. E, assim sendo, há poemas mais longos, mas que parecem dispersar-se um pouco e, outros que contém tudo aquilo de que precisam nas suas escassas linhas. E, entre uns e outros, há todo um espectro de impressões e possibilidades.
É também um livro breve, o que, associado aos pontos comuns entre poemas, realça a sensação de união que liga as partes. Cada poema é um todo independente, mas o conjunto parece ter sido pensado como um todo coeso, ou pelo menos é essa a impressão que fica: a de uma totalidade que é maior do que a soma das suas partes.
Observação da Gravidade: de uma gravidade interior, possivelmente. E é esta gravidade interior, tão perto do mundo, mas traçada de uma forma tão singular, que torna esta leitura memorável. Difícil de descrever, é certo... mas marcante, sem dúvida.

Autor: André Osório
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Em Português nos (Des)Entendemos (João Carlos Brito)

Há quem diga que a língua portuguesa é muito traiçoeira. E, ainda que esta expressão se aplique geralmente aos segundos (e terceiros...) sentidos das frases, não deixa também de ser muito válida se considerarmos as singularidades de certos vocábulos utilizados em determinadas regiões do país. Pois bem, é a estas singularidades que este livro se dedica, debruçando-se sobre os vários e fascinantes regionalismos típicos de cada região do nosso país. E desengane-se quem acha que os conhece a todos...
A primeira coisa a cativar para esta leitura é - bastante obviamente - o conteúdo. Já todos ouvimos uma ou outra expressão que nos deixou "com a pulga atrás da orelha" relativamente ao seu possível sentido. E a ideia de reunir estas palavras e expressões características num só livro que abrange um país inteiro não pode deixar de ser também intrigante. Escusado será, pois, dizer que todo este livro é uma grande e muito agradável mistura de reencontro e de descoberta. Afinal, todos nós conhecemos as "nossas" palavras, as que vêm das nossas origens. Outras há, contudo, que são uma revelação.
Ora, isto abre caminho a outra revelação. Ao longo do livro, as palavras estão agrupadas pelas regiões onde são mais comuns, sendo que, nalguns casos, têm associados sentidos completamente diferentes daqueles que geralmente lhes associamos (a não ser que pertençamos à dita região). Mas esta organização por locais proporciona também algumas surpresas: é que algumas destas palavras já ganharam âmbito nacional, havendo também outras que, sem esta dimensão de fama, são também utilizadas noutras regiões que não as referidas. São típicas dali? Pois, com certeza. Mas também as podemos conhecer de outras andanças.
Importa, por fim, olhar para outra faceta da organização: as explicações e interpretações. São explicações relativamente concisas, abordando, porém, múltiplas possibilidades nos casos em que a origem é tudo menos consensual, e acrescentando ainda um muito agradável toque de humor à forma como cada expressão é abordada. Não são explicações exaustivas, até porque não é esse o objectivo, mas, além de esclarecedoras, mostram também uma certa leveza que as torna mais fáceis de assimilar.
Conciso e leve, mas muito cativante, trata-se, pois, de um daqueles livros que se lêem de uma assentada, mas que deixam desde logo a promessa de um regresso futuro. Há tanto a descobrir nestas expressões singulares... Eis, pois, o livro ideal para conhecer melhor as particularidades regionais da nossa língua - e um bom manual de sobrevivência para a compreensão de certas... sugestões.

Autor: João Carlos Brito
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Gideon Falls, vol. 3: Via Sacra (Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart)

Começam a ganhar forma os verdadeiros contornos do que se esconde no Celeiro Negro. Um poder que se manifesta através de portais, que abre caminho para diferentes tempos e cidades e que, mais perto ou mais longe do centro, espalha caos e morte onde quer que se manifeste. Foi a necessidade de parar essa entidade assassina que fez com que um padre cruzasse o espaço e o tempo em busca de respostas, preparando-se para algo ainda impossível de abarcar, mas moldado na certeza de que algo vai acontecer. E essa mesma entidade que move tempos e mistérios - abrindo caminho a um regresso que é tudo menos inofensivo.
Provavelmente o aspecto mais marcante desta série, e particularmente deste terceiro volume, é a sua singularidade. Tudo é peculiar neste livro, desde a história pessoal das personagens à teia cada vez mais complexa de acções, lugares e momentos que define toda a situação, passando, naturalmente, pelos acontecimentos propriamente ditos e, sobretudo, por uma componente visual que é tudo menos previsível.
E é precisamente a arte o que mais impressiona neste livro tão cheio de surpresas. A cada vez mais óbvia presença do sorriso na escuridão realça e fortalece o elemento de horror que, desde o início, vinha a insinuar-se. Os tons de vermelho e negro - do celeiro, da expressão da entidade, da morte que vai alastrando - realçam a dimensão das sombras que envolvem este mundo. E o contraste entre as múltiplas Gideon Falls - cidade moderna, aldeia pacata, localidade aparentemente arrancada a um western, fortaleza orwelliana - reforça o imenso enigma dos laços e barreiras entre os múltiplos tempos e espaços abrangidos pelo celeiro.
Mas nem só da arte vive Gideon Falls e há na precisão dos diálogos um impacto poderosíssimo. Das múltiplas afirmações ambíguas ao longo da perseguição do bispo à forma como (principalmente nas últimas páginas) uma única palavra parece adquirir sentidos tão distintos, cada frase proferida acrescenta novas possibilidades. Além disso, tendo em conta que muito continua a ficar em aberto - já que todo este volume foi uma expansão em termos de complexidade - o tão presente conceito de casa consegue ser, simultaneamente, o fim adequado de uma fase e a promessa de consequências muito mais complexas.
Mais vasto, mais complexo, mais surpreendente ainda do que os volumes anteriores, eis, pois, um novo crescendo para uma série cuja intensidade era já avassaladora. Visualmente impressionante, notavelmente certeiro nas palavras e fascinante nas complexidades a que dá forma, uma leitura viciante e ainda mais imperdível do que as anteriores.

Título: Gideon Falls, vol. 3: Via Sacra
Autores: Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 1 de setembro de 2020

O Livro dos Humanos (Adam Rutherford)

O que nos torna humanos? Que acaso ou improbabilidade fez com que nos diferenciássemos das outras espécies, dando origem a capacidades únicas, ainda que também a pontos comuns? Em que pontos divergimos das outras espécies? E que explicações existem para esses pontos de divergência e elos de ligação? Este livro debruça-se sobre as características e comportamentos de diferentes seres vivos - presentes e passados - para traçar uma breve história da natureza humana e do que somos em relação aos outros animais.
Provavelmente o aspecto mais interessante deste livro (além, naturalmente, do conteúdo propriamente dito) é a forma como consegue ser simultaneamente conciso e completo. Composto por secções relativamente breves, consegue cingir-se sobretudo ao essencial de cada aspecto, traçando, ainda assim, uma visão global bastante precisa do percurso da humanidade e daquilo que a define. Junte-se a isto um muito agradável sentido de humor, com algumas referências particularmente certeiras, e o resultado é uma leitura que, apesar da muita informação específica, nunca deixa de ser leve e cativante.
Outro ponto particularmente notável é a facilidade com que permite visualizar os comportamentos e períodos que descreve. Se as ocasionais ilustrações contribuem para esta impressão, já que é sempre mais fácil compreender um artefacto com um auxiliar visual, também as próprias descrições são bastante claras. E, sendo os comportamentos - e a sua possível importância evolutiva - um elemento tão fundamental neste livro, é particularmente marcante a facilidade com que é possível imaginar gestos - humanos e não só.
Claro que, ao abranger tanta informação e tantos pontos específicos para assimilar, é inevitavelmente um livro que exige algum tempo e concentração. Ainda assim, nunca se torna cansativo. Muito pelo contrário. É um daqueles livros com que facilmente se adquire conhecimento e em que, apesar do ritmo relativamente pausado, a descoberta nunca se torna maçadora.
O que fica da soma das partes é a impressão de uma leitura acessível, mas não simplista, e de um retrato conciso, mas bastante completo, do que nos define enquanto seres humanos. Interessante, repleto de conhecimento e de leitura muito agradável, um bom livro para conhecer melhor esta criatura estranha que o ser humano.

Autor: Adam Rutherford
Origem: Recebido para crítica