Casado com a mulher que ama e prestes a ser pai, o comandante Camille Verhoeven tem, em todos os aspectos, uma vida feliz. Mas a sua tranquilidade - ou a tranquilidade possível a um membro das forças policiais - está prestes a ser abalada com a descoberta de um crime invulgarmente brutal. Sem pistas, excepto as deliberadamente deixadas pelo assassino, Verhoeven vê-se perante uma hipótese improvável: o assassino está a recriar crimes de romances policiais. E se, de pista em pista, a polícia começa a conhecer o criminoso, também é certo que este está sempre um passo à frente. E, assim sendo, quantas mais mortes serão necessárias até que ele seja detido?
De tudo o que este livro tem de fascinante - e diga-se que, basicamente, tudo é fascinante - o primeiro aspecto a sobressair-se é a forma como o autor constrói a sua história, numa íntima relação com os clássicos da literatura policial em que partes deles são transpostos para a realidade. Basta isto para criar algo de diferente, estabelecendo uma aura de mistério que torna praticamente impossível não querer saber mais. E, como se não bastasse esta peculiaridade, o autor leva a dualidade entre a realidade e a ficção a um nível mais alto, percorrendo uma sequência de viragens que faz com que tudo o que se julgava saber ganhe uma perspectiva diferente. O resultado é uma história em que tudo é inesperado. Tudo é surpreendente. E, claro, tudo impressiona.
Também especialmente interessante é a forma como o autor constrói as personagens, realçando as suas características mais por acções do que por palavras, para depois - numa nova reviravolta - revelar que o que se julgava claro não é, de todo, assim tão simples. Camille, em particular, é-nos apresentado como uma personagem de traços sólidos, mas a perspectiva que no-los descreve nem sempre é completamente fiável. E, assim, a fronteira entre o real e o imaginado torna-se mais vaga, abrindo caminho a novas interpretações.
Quanto aos crimes propriamente ditos e ao cérebro por detrás da sua execução, sobressai, mais uma vez, a tal perspectiva pouco fiável que abre caminho a interpretações falíveis, mas também o conjunto de peculiaridades que caracteriza as acções do criminoso. Meticuloso, fiel até ao mais ínfimo detalhe às obras que pretende retratar, o assassino é igualmente uma personagem complexa, cujas acções são moldadas de forma a influenciar tudo o que se lhe segue. Disto resulta, além de uma maior complexidade no caso, que entre Camille e o criminoso se cria uma espécie de duelo de inteligência. Duelo que culmina num final muitíssimo impressionante, em que tudo - ou quase - se torna incrivelmente pessoal.
E tudo isto é contado num registo incrivelmente envolvente, em que tudo - acção, emoção, contextualização, mistério - é conjugado precisamente nas medidas certas, conferindo a cada momento a melhor voz possível para o que está a suceder. É fácil acompanhar as personagens a cada passo que dão, o que, numa história com tantas reviravoltas e tantos factores passíveis de manipulação, não é tão simples como parece.
Viciante desde as primeiras páginas e surpreendente em inúmeros aspectos, trata-se, portanto, de um livro que, tendo no seu cerne as bases da literatura policial, consegue, a partir delas, fazer algo de único e de impressionante. O resultado resume-se numa única palavra: brilhante.
Título: Irène
Autor: Pierre Lemaitre
Origem: Recebido para crítica