sábado, 30 de janeiro de 2021

Black Hammer - O Evento (Jeff Lemire, Dave Stewart, David Rubin e Dean Ormston)

Presos na Quinta há demasiado tempo e separados de tudo o que em tempos os fez avançar - tudo excepto uns dos outros, claro - os heróis de outrora parecem ter-se resignado à sua condição de prisioneiros. Mas eis que chega uma visitante do mundo exterior, alguém que eles conhecem e que vem à procura do Black Hammer. Lucy só quer saber o que aconteceu ao pai, mas está agora tão presa como os outros, mas ainda mais confusa, pois não entende muito bem os seus sentimentos. Não está, porém, disposta a resignar-se como os outros e, à medida que procura respostas e o passado começa a vir à superfície, Lucy descobre mais do que as memórias que perdeu. Descobre a promessa de um futuro.
Há algo de fascinante neste estranho contraste de uma história em que os super-heróis não parecem já ser muito heróicos. Presos num lugar inexplicável, cada um dos heróis tentou reconstruir a sua vida, dentro dos possíveis, através de relações ou de isolamento, de resignação ou de revolta. E esta percepção de uma vida para lá dos seus dias áureos tem o condão de humanizar as personagens, além, claro, de criar um contraste poderoso entre as memórias do passado - que incluem naturalmente grandes cenas de acção e de combate - e a inexorável tranquilidade da Quinta.
É um percurso que vem já do volume anterior, mas que ganha aqui novos contornos. A entrada em cena de Lucy lembra que o mundo não acabou, despertando novos planos de fuga e, consequentemente, novas suspeitas. Assim, gera-se também outro equilíbrio: entre as memórias do passado, que ocupam grande parte deste segundo volume, e as possibilidades futuras, que envolvem alguns segredos e intrigas e também um grande desenvolvimento final que promete ainda novas revelações. Os dias de glória das personagens não contrastam apenas com a resignação presente. Realçam também os segredos que persistem apesar da convivência - e que implicam que nem tudo é exactamente o que parece.
E, sendo uma história em que tudo contrasta, também na parte visual sobressaem os equilíbrios. O passado de glória transborda de cor e de movimento, contrastando com a relativa tranquilidade da Quinta. Mas as fronteiras vão-se gradualmente esbatendo. Além disso, a presença de Lucy e a sua relação com as palavras acrescentam também uma nova forma de expressão e um novo ponto de contraste, que se manifesta não só nos tons nostálgicos que a envolvem, mas também nas suas próprias expressões.
Proximidade e isolamento, acção e silêncio, movimento e introspecção. Contrastes e equilíbrios, em suma. São estes os elementos centrais de um segundo livro que, expandindo a história para o passado e para o futuro, abre portas a novas relações e revelações - e promete ainda muitas mais surpresas. Intenso, surpreendente e inesperadamente emotivo, um segundo volume ainda mais memorável e equilibrado que o primeiro. Muito bom.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Dylan Dog - Os Inquilinos Arcanos (Tiziano Sclavi, Corrado Roi, Luigi Mignacco, Enrique Breccia, Barbara Baraldi e Nives Manara)

Um prédio assombrado, um nevão mortal e um fantasma que anda a assustar os alunos de um colégio (e a causar estragos maiores). São estas as premissas das três aventuras que compõem esta nova visita a Dylan Dog. Um prédio com vida própria, onde Dylan encontra uma nova paixão, mas também uma série de pesadelos invulgares. Um nevão que esbate a ténue linha que separa passado, presente e futuro. E o fantasma de uma humilhação que perdura para além da morte. Em comum, a presença do detective do pesadelo - aqui em plena actividade profissional.
Talvez não devesse ser uma surpresa, tendo em conta a actividade profissional do protagonista, mas o primeiro elemento a sobressair, sobretudo em comparação com outras histórias, é que neste volume dominam efectivamente os monstros e os casos sobrenaturais, ao contrário de outros em que o sobrenatural serve de ponto de partida para uma visão mais introspectiva. Junte-se a isto o facto de termos um total de três histórias diferentes em pouco mais de cento e vinte páginas e a impressão que fica é, por vezes, a de desenvolvimentos ligeiramente apressados.
Outro aspecto bastante obviamente diferente é que este livro é a cores, o que acaba por criar um ambiente um pouco menos sombrio do que o de outras aventuras. Ainda assim, há outros pontos a sobressair neste aspecto, a começar pelas diferenças entre as três histórias, sobretudo na expressão dos rostos, mas também na forma como os cenários se revelam também distintos. Além disso, existe também um contraste de cor entre as três histórias, com os cenários surpreendente luminosos do prédio assombrado a contrastar com a escuridão e o caos do grande nevão e o ambiente estranhamente idílico do colégio. Embora juntas num mesmo volume, cada história é um todo independente, e as diferenças são notórias, tanto no percurso como na arte.
Um último ponto a salientar é que, embora mais activo e menos introspectivo, Dylan Dog continua a ser Dylan Dog, com a sua faceta de apaixonado fugaz e a sua tendência irresistível para se deixar arrastar para o amor mesmo em situações delicadas, além dos ocasionais momentos de humor que estas situações provocam. Não é um Dylan Dog tão sombrio, mas continua a ser, a espaços, o romântico incurável, e é fácil reconhecê-lo como tal em cada uma destas histórias.
Não será, talvez, a mais marcante das aventuras deste herói, pelo menos do ponto de vista emocional. Mas não deixa de ser uma leitura envolvente, visualmente surpreendente (já disse que este é a cores?) e repleta de momentos interessantes. Uma boa leitura, em suma, e um sempre agradável reencontro.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Quando Servi Gil Vicente (João Reis)

Os nomes são uma coisa estranha e por isso Anrique habituou-se a ajustar o seu às suas circunstâncias, a fim de evitar, tanto quanto possível, os inconvenientes. E sob o nome de Anrique de Viena que se apresenta, mas é na sua função que está a sua verdadeira importância: servo de Gil Vicente, ilustre figura das letras e do teatro, nos seus derradeiros anos. E é enquanto fiel servidor que Anrique conta a sua história e a de seu amo: uma história talvez improvável, talvez ligeiramente bizarra, mas tão cativante e singular quanto surpreendentemente humana.
Sendo todo ele uma unidade coesa e difícil de dividir - como, aliás, o próprio texto, que quase exige ser lido de uma vez só - existem, ainda assim, duas facetas distintas que importa salientar: o estilo de escrita e a construção dos protagonistas. E é por estes que começo, pois é a sua singularidade que torna esta leitura tão surpreendente. Não se espere daqui uma visão adoradora do mestre no alto do seu pedestal. Gil Vicente é aqui um homem comum, ainda que de génio (nos dois sentidos da palavra) invulgar. E quanto a Anrique... bem, a sua condição de servo coloca-o numa posição única, de ter de lidar com o génio (irascível) do mestre e de conhecer ao mesmo tempo o seu génio (brilhante). E assim, a biografia improvável torna-se absurdamente plausível, nos momentos mais comuns e nos mais peculiares.
Quanto à escrita, sobressaem também duas ramificações: o registo individual deste livro e a comparação com outros livros do autor. Individualmente, destaca-se a evidente intenção de dar à voz de Anrique um registo ajustado ao seu tempo, bem como, a espaços, uma quase intenção por parte da personagem de imitar o mestre (o que é particularmente notável se tivermos em conta a forma como tudo termina). No conjunto da obra, destaca-se a capacidade quase camaleónica do autor de dar a cada uma das suas histórias a exacta voz que ela exige. Cada livro é como que um mundo novo, algo de totalmente diferente. E, ainda assim, a identidade está lá.
Da conjugação destas duas facetas, converge uma terceira que importa ainda reforçar: a tal coesão referida no início. É um livro que, sem estar dividido em capítulos, e não sendo, afinal, assim tão breve, pode parecer, ao primeiro folhear, ligeiramente intimidante. Pois bem, não o é. Muito pelo contrário. As páginas quase voam, o que é particularmente notável tendo em conta as suas múltiplas singularidades e a inevitável complexidade associada ao deambular mental de Anrique.
Tudo somado, o que fica é a imagem de uma leitura surpreendente em todos os aspectos. Singular na escrita, singular nas personagens e deliciosamente cativante na sua mistura de humano e de improvável. Estranha e memorável viagem ao passado, eis, pois, em suma, uma leitura a não perder.

sábado, 23 de janeiro de 2021

Pulp (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Foram já três as vezes em que Max Winter quase morreu. E, à terceira, face a um ataque cardíaco, Max começa finalmente a aceitar que já não é o mesmo que vê na sua imaginação. Para trás, ficou uma vida de fora da lei e até o seu percurso de autor de histórias pulp parece estar finalmente a esgotar-se. Mas o início do  fim é também um início. E a necessidade de deixar algo de bom à mulher que é, na prática, a única luz que lhe resta, leva-o a fazer planos desesperados. Planos esses que o levarão ao reencontro com alguém do passado - e a um plano distinto, movido por valores mais altos, mas que pode muito bem ser o último.
Será, talvez, uma premissa surpreendente a ideia de misturar uma história de bandidos (sim, daqueles dos westerns) com uma história de combate aos nazis. E, tendo isto em vista, seria talvez de esperar uma certa medida de estranheza. Pois, mas não há. E essa é uma das primeiras grandes surpresas e uma das maiores qualidades deste livro: é que o que parece improvável flui com naturalidade, pois tudo faz sentido, desde as mudanças de percurso do protagonista à forma como vinganças antigas dão lugar a novas forças motrizes sem nunca perder de vista os motivos do passado. Tudo encaixa, tanto no rumo da história como no impacto emocional. E esse... esse é particularmente poderoso.
Tendo em conta a dupla de autores, já se espera à partida uma certa medida de desolação, mas não deixa de ser algo de fascinante a forma como, em cada série ou história individual, essa desolação adquire facetas diferentes. Aqui, é o peso da velhice, a contemplação de uma vida que não atingiu os objectivos pretendidos e a presença inexorável da morte quando há ainda algo mais que é preciso fazer. É a mesma sombra que se avista em Criminal ou em The Fade Out - Crepúsculo em Hollywood, mas com matizes diferentes. E esta mistura de novo e de familiar, conjugada com um percurso que facilmente gera empatia, torna a leitura tão empolgante quanto devastadora.
Mas voltando aos contrastes, e à tal conjugação de contextos diferentes. É também particularmente interessante a forma como este contraste se reflecte a nível visual. As cores das cenas de western, mais vivas, sobretudo no vermelho, contrastam com os matizes mais escuros da vida presente de Max Winter. Além disso, há uma diferença nos rostos, que se torna ainda mais clara nas últimas páginas. É como se o peso emocional traçasse marcas físicas (como acontece, na verdade). E como se também isso fizesse parte da alma da história.
No fundo, tudo é memorável, e é essa a verdadeira marca que fica desta leitura. Uma história relativamente breve, mas magnificamente construída, visualmente marcante e, acima de tudo, transbordante de emoção e de intensidade. Impressionante, em suma.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Minha Sombria Vanessa (Kate Elizabeth Russell)

Vanessa Wye sempre foi relativamente solitária. Com aspirações criativas, habituou-se a passar o tempo sozinha, a trabalhar nos seus poemas e nos seus sonhos de se tornar escritora. Mas, aos quinze anos, surge uma mudança súbita, quando Jacob Strane, o seu professor de inglês, começa a dar-lhe atenção. À primeira vista, tudo aponta para uma mera simpatia por uma boa aluna, mas há uma certa intensidade, uma manifestação de súbitas - e aparentemente involuntárias - palavras que parecem sugerir algo mais. E Vanessa deixa-se levar pelo que julga ser o início de uma grande história de amor proibido... Dezassete anos depois, outra rapariga vem a público denunciar contactos inapropriados por parte do mesmo professor. E procura o apoio de Vanessa. Mas o que Taylor vê como abuso, Vanessa vê como uma relação singular. E, agora que a verdade começa finalmente a vir ao de cima, terá de analisar como nunca o fez o que realmente aconteceu - nesse ano e depois.
Provavelmente o aspecto mais impressionante deste livro é a forma como a autora consegue reflectir com uma precisão avassaladora todas as complexidades que envolvem a história da protagonista. Não é uma simples história de vítima e de vilão, porque Vanessa nunca se quis ver como vítima e aquilo que vê em Strane é muito diferente do que se reflecte nas acusações das outras alunas. E é tendo esta perspectiva em vista que toda a história vai sendo construída numa delicada linha de ambiguidades, onde não há - pelo menos aos olhos da protagonista - verdades e mentiras absolutas, mas apenas o que conhece e o que não quer admitir.
Não é - e, ainda que Vanessa a veja como tal, isto é algo que desde o início é muito claro - a grande história de amor que vive no pensamento da protagonista. É algo mais sombrio, mais perturbador, mais intrincado. E é algo de impressionante a forma como a autora constrói todas estas facetas. O lado negro de Vanessa, que se manifesta das mais inesperadas formas, o desequilíbrio de poder e o potencial de manipulação que lhe está associado (e a forma como, por vezes, se inverte), a complexa teia de rumores e de verdades - e, sim, de mentiras também - associada a todo o percurso. E, no meio de tudo isto, uma proximidade que nunca é compreensão absoluta, pois nunca o poderia ser, um jogo de atracção e aversão que vai evoluindo a cada novo desenvolvimento e converge num final que tem na ambiguidade a sua maior força.
E importa ainda salientar um último aspecto. Sendo Vanessa uma aspirante a escritora, e grande parte do seu percurso guiado pela sua relação com Lolita, não é propriamente uma surpresa a abundância de referências literárias, sobretudo a Nabokov, mas não só. Mas, mais do que as referências propriamente ditas, sobressai a precisão com que encaixam na história, surgindo sempre no momento adequado, de tal modo que quase parecem construídas para pertencer ali. É como se a voz da autora se harmonizasse com as vozes que cita, reforçando a fluidez e a envolvência das palavras.
Complexo, intenso, perturbador e muito cativante: assim se resume esta história de amor que não o é, na verdade. Uma história sombria, mas fascinante nas suas ambiguidades, além de maravilhosamente escrita e capaz de se entranhar no pensamento bem depois de terminada a leitura. Memorável, em suma, e altamente recomendada.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Cão Flash (Antero Barbosa)

A partida, a perseguição, o regresso. A presa em fuga, a corrida da matilha, a sempre constante iminência da morte, concretizada, por vezes, de formas imprevisíveis. Uma caça que se torna visão... visão inefável, talvez. E um ritmo que é, em si mesmo, uma corrida, difícil de descrever, mas estranhamente fascinante. Um flash, deveras. E um flash surpreendente.
Uma das primeiras coisas que importa salientar sobre este livro é que, embora cada uma das partes possa ser lida indepedentemente, a impressão que fica não é a de um conjunto de poemas, mas sim a de um longo e vasto poema que abrange a totalidade do livro. É certo que há impressões distintas, rasgos de introspecção por entre a corrida, deambulações por outras paisagens e outras formas de pensamento. Há, ainda assim, uma unidade de ritmo e de perspectiva, que forma um todo coeso e sucessivo que é quase uma história, sem nunca o ser realmente.
Tem no seu cerne uma cena de caça, o que implica necessariamente uma dose de crueldade. Mas é também este lado mais negro e inevitavelmente sangrento que cria um forte contraste entre os rasgos de brutalidade e outros de quase emoção. A imagem que se forma tanto é a de um caçador que persegue a presa como a de um regresso ao que se deixou por fazer. Tanto retrata a sobrevivência do mais forte como a vulnerabilidade dos que apenas o parecem ser. E, sendo certo que existem momentos de choque, há também surpreendentes rasgos de meditação.
O aspecto mais marcante acaba, ainda assim, por vir da estrutura. Com versos relativamente breves e sem grandes restrições em termos de rima ou de métrica, surpreende pela facilidade com que consegue reflectir no ritmo das palavras a cadência da cena relatada. Todo o conjunto - ou todo o poema, na verdade - se lê como uma corrida, ao ritmo dos passos que descreve. E essa impressão quase sensorial é particularmente notável por se conseguir manter constante ao longo de todo o livro.
Ritmo intenso, contrastes fortes e uma grande coesão: são estas, pois, as grandes impressões que ficam deste relativamente breve - mas surpreendentemente vasto - Cão Flash. Uma leitura de contrastes, mas sempre muito cativante.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O Cardeal (Nuno Nepomuceno)

Uma criança desaparece a caminho da escola, acabando por ser encontrada morta e com óbvios sinais de violência. Uma idosa desaparece da casa onde vivia e os seus membros são encontrados espalhados pela neve. Um escritor famoso é acusado destes crimes, após ter sido visto a fugir de um dos locais, e consequentemente detido. Mas nem todos acreditam na sua culpa. De regresso a Cambridge, morada dos seus fantasmas, o professor Afonso Catalão dá por si intrigado pelo caso e a acreditar na inocência de Adam Immanuel e começa a seguir as pistas do que não bate certo. Mas não são estes os únicos crimes a chamar a atenção. No Vaticano, o papa foi assassinado de forma brutal - tal como a sua reputação. E Diana, que nunca deixou de investigar certos aspectos, vê-se novamente atraída para o mistério. Até porque também aqui parece haver um culpado óbvio - mas as teias da intriga são bastante mais complexas...
Parte do que torna esta série tão empolgante, e isto aplica-se, na verdade, a todos os volumes, é a mistura de proximidade e de surpresa constante. Proximidade porque, a cada novo volume da série, Afonso e Diana vão-se tornando quase que da família, figuras conhecidas de quem gostamos e que é sempre um prazer reencontrar. Surpresa... bem, por tudo. Tudo é surpreendente nestas histórias, desde a sempre complexa teia de intrigas às sucessivas revelações que se vão manifestando. Além disso, ao acompanhar de perto os múltiplos fios, e não só o percurso de Afonso e de Diana, o autor explora com precisão todas as complexidades da intriga, além de despertar emoções fortes - sejam de empatia ou de aversão - que não se cingem apenas aos protagonistas.
Sendo certo que todos os livros desta série têm uma história central independente, neste caso, é mais evidente do que nunca que o impacto se intensifica conhecendo toda a história anterior. Há muitos elos que vêm de livros anteriores, sobretudo de A Morte do Papa (mas não só), o que faz com que o conhecimento prévio torne a visão global ainda mais impressionante. Além disso, as ligações de Afonso e de Diana - passadas e presentes - têm uma evolução ao longo da série. E este percurso pessoal é também fascinante de se acompanhar.
Ainda um outro ponto que merece especial destaque - e outro contraste poderoso - é o equilíbrio entre proximidade emocional e ambiguidade moral. Não é em Afonso e Diana que isto mais se manifesta (ainda que seja particularmente interessante ver a forma como a jornalista lida com as recusas...), mas mais nos alvos da sua investigação. Há figuras que parecem, apesar de tudo, intrinsecamente boas, mas que escondem facetas sombrias. Outras, pela personalidade irascível, parecem inocentes improváveis, mas... o rumo dos acontecimentos pode fazer-nos mudar de opinião múltiplas vezes. A verdade é que ninguém é o que parece e nenhuma explicação é tão simples como à primeira vista aparenta ser. E, assim, de surpresa em surpresa, de revelação e revelação, vamos sendo empolgantemente - e imparavelmente - conduzidos rumo a um final poderosíssimo.
O que fica no fim desta leitura? A sensação de uma viagem deliciosamente atribulada, cheia de intensidade e de surpresas, o sempre agradável reencontro com personagens que é sempre um prazer rever, e uma intensa e avassaladora história de intrigas, crimes e segredos que prende do início ao fim e deixa logo saudades do professor Afonso Catalão. Numa palavra? Soberbo.


Esta é minha recomendação para a campanha Prosa e Poesia da editora educativa Twinkl.

domingo, 17 de janeiro de 2021

QualityLand (Mark-Uwe Kling)

No futuro, tudo é planeado por algoritmos e ajustado às necessidades de cada utilizador. A sociedade está organizada por níveis, as lojas de entrega por correspondência enviam os produtos desejados pelos seus clientes antes mesmo de eles pensarem neles e deixou de ser preciso de tomar decisões, porque o sistema trata disso. E quanto ao regime? Bem, o voto deixou de ser secreto, pois tudo é gerido por perfis, o que significa que são os próprios algoritmos a sugerir o candidato mais adequado ao votante. Tudo está automatizado - incluindo o ódio e os preconceitos. Mas, se o sistema é perfeito e as máquinas não cometem erros, então porque se verificam fenómenos estranhos? Porque é impossível devolver um produto indesejado ou reparar uma máquina? E porque procuram as máquinas esconder as suas falhas, pois sabem que admiti-las pode ser o fim? Afinal, talvez os algoritmos possam estar errados. E é exactamente isso que Peter quer provar.
A primeira qualidade que importa destacar neste livro é relativamente óbvia, mas também por isso mesmo particularmente eficaz. Refiro-me aos abundantes paralelismos entre este mundo e nosso, com o expectável exagero associado à sua satirização, mas com uma perspectiva assustadoramente certeira. Desde os meandros da campanha eleitoral à proliferação dos comentários de ódio na internet, passando pela xenofobia, a reformulação da história para servir os próprios fins e a associação do valor à popularidade, QualityLand pode ser um mundo muito diferente, mas chega a ser arrepiantemente próximo. E é assim que uma leitura essencialmente leve e divertida se mostra também carregadinha de material para reflexão.
Tem também, naturalmente, a sua dose de estranheza, ou não fosse parte do que leva Peter a dedicar-se à sua missão a entrega por engano de um vibrador em forma de golfinho. Mas é particularmente notável a forma como a estranheza e as particularidades do sistema - e, bem, de alguns hábitos das personagens também - acabam por fluir com naturalidade, proporcionando uma leitura que não é simplesmente cativante. É viciante do início ao fim.
E, claro, pode ser uma história do futuro, mas o que não falta são referências ao nosso presente, desde atrizes a livros, passando pela surpreendente presença de alguns filmes populares. Ora, além de gerarem familiaridade no meio da estranheza, estes elementos estão também, muitas vezes, na base de alguns momentos especialmente divertidos, o que contribui também para fazer com que seja quase impossível parar de ler.
Sátira certeira, história empolgante, leitura divertida e base para reflexão. Tudo isto serve para descrever este QualityLand. E, em todas estas facetas, no estranho e no familiar, é sempre uma leitura cativante, surpreendente e muito, muito viciante. Recomendo.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Roupão Azul (Ana Paula Jardim)

Não é apenas uma peça de roupa. É o ponto de partida para uma viagem às memórias, aos laços de coração, aos afectos e a um passado feito de pequenas memórias que são, ao mesmo tempo, pessoais e constatações do mundo. É um roupão que foi de outrem antes de ser próprio, e que por isso guarda as memórias de antes da perda. E é uma abertura à alma, a uma alma individual que tem, ainda assim, pequenos reflexos de todos nós.
Provavelmente a impressão mais forte que fica deste pequeno livro é a de uma poesia que é, ao mesmo tempo, introspectiva e descritiva. Descreve cenários, épocas e hábitos, tradições de meios pequenos e de passados que persistem, locais, objectos e pessoas. Mas tudo isto é visto da perspectiva de um olhar individual, da voz claramente comum a todos os poemas, que faz com que, embora completos na sua individualidade, estes textos formem um conjunto mais amplo, uma viagem maior.
E é uma viagem singular, uma viagem à memória, o que significa que haverá tanta identificação como estranheza. As emoções são familiares - nostalgia, perda, melancolia, introspecção, esperança - mas os elementos específicos são exclusivos da voz que os relata. E, assim, a poesia é simultaneamente história, ou fragmentos da história de uma vida, pintados em imagens surpreendentes, mas sempre com o seu quê de familiar.
Ainda um último ponto que se destaca, e que contribui para esta impressão, é a estrutura. São versos que parecem fluir ao ritmo da omnipresente memória, não havendo grandes imposições em termos de métrica ou de rima, mas que assumem, ainda assim, uma cadência cativante e uma fluidez notável. São, simultaneamente, viagem ao interior, viagem ao passado, viagem à paisagem externa e viagem à história da voz que nos fala. E, sendo certo que há versos e poemas mais e menos marcantes neste conjunto, a verdade é que o todo é bastante memorável.
Não é, pois, apenas uma peça de roupa. É uma viagem singular e marcante, feita de memórias, de paisagens e de rasgos surpreendentes no meio da nostalgia. Uma leitura breve, em suma, mas muito cativante.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Dylan Dog: Mater Morbi (Roberto Recchioni e Massimo Carnevale)

Dylan Dog está habituado a lidar com pesadelos, monstros e outros fenómenos sobrenaturais. Mas não imagina que o mais temível dos medos pode estar extremamente perto. Reconhecidamente hipocondríaco, sempre lidou com os sintomas da doença - e com os médicos - da maneira mais fácil de assimilar: ignorando-os. Mas fazer de conta que nada se passa deixou de ser possível. E, confrontado com uma enfermidade desconhecida e confinado a uma cama de hospital, Dylan vê-se perante outro tipo de demónio: a Mater Morbi, mãe de todas as enfermidades. E ela tem planos para ele.
Há algo de absurdamente genial na forma como este livro de pouco mais de cem páginas consegue conter tanto e explorá-lo de forma tão precisa. Do retrato da doença e do peso que ela tem na vida dos enfermos à reflexão sobre o prolongamento da vida quando prolongá-la significa apenas mais sofrimento, este é um livro que dá a temas profundos e assustadores uma visão completamente nova - e, ainda assim, brilhantemente fácil de assimilar.
Conhecer Dylan Dog é conhecer uma personalidade singular, com os seus rasgos de romantismo, os seus demónios interiores e a sua personalidade única - além da óbvia capacidade de lidar com todo o tipo de pesadelos. Mas este livro... este livro explora outro tipo de pesadelo e é poderosíssima a forma como estas impressões ecoam na mente do leitor. As introspecções de Dylan, além de maravilhosamente escritas, são de uma precisão perfeita. E quanto à visão da doença, é simultaneamente aterradora e assustadoramente certeira. A Mater Morbi, com os seus jardins de sofrimento, é, além de uma personagem notável, um reflexo perfeito daquilo que representa. Mãe da enfermidade, deveras... e extraordinariamente construída.
Algo que é constante nas aventuras de Dylan Dog é o forte impacto visual dos cenários e das expressões. Neste caso, isso torna-se ainda mais vincado. Os cenários de pesadelo, cheios de pormenores marcantes e com diferenças de traço e de sombras (e de cor também, neste caso) que parecem reflectir na perfeição os diferentes matizes da história. As expressões de um Dylan Dog mais vulnerável do que nunca, que espelham com a máxima precisão o sofrimento que serve de base a todo este percurso.
Muito mais do que um confronto pessoal com um demónio interior, este é um livro capaz de reflectir, através de um percurso individual, toda a intensidade de um sofrimento que é, no fim de contas, universal. E de construir a partir dele uma história simultaneamente assustadora e comovente, intensa, fascinante e memorável. Belíssima, em suma.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Divulgação: Novidades Saída de Emergência

Não há fórmulas mágicas para travar o envelhecimento. Mas, através do estilo de vida que adotamos, podemos antecipá‑lo ou retardá‑lo. O stress em que vivemos, a rapidez de tudo à nossa volta, o automatismo das escolhas, o processamento dos alimentos, a falta de tempo, as preocupações, o excesso de peso, tudo isto faz acelerar o processo de envelhecimento, tão natural quanto inevitável.

Com este livro, Mafalda Rodrigues de Almeida mostra‑nos que é possível controlar todos estes processos para revitalizarmos o nosso corpo e mantê‑lo mais jovem e saudável. Além de explicar a importância do sono, do exercício físico, da genética, das toxinas, dos desequilíbrios hormonais ou do stress, a autora apresenta igualmente inúmeras receitas de pequenos‑almoços, snacks, refeições principais e sobremesas que nos ajudarão a pôr em prática estes ensinamentos no dia a dia.

Chamam-lhe Flagelo – uma pandemia mortal que começa numa fria véspera de ano novo na zona rural da Escócia. A doença surgiu de repente e disseminou-se rapidamente. Poucas semanas depois, a rede elétrica falhou, a lei e o governo colapsaram, e mais de metade da população mundial foi dizimada.

Enquanto as pessoas adoecem e morrem, o terror e a loucura estendem-se por todo o planeta. Mas entre as ruínas e o caos há uma centelha de esperança: um grupo de sobreviventes aparentemente imunes ao vírus inicia uma viagem em direção ao desconhecido. Ninguém sabe como terminará, nem se haverá sobreviventes. A única coisa que se sabe é que alguns deles desenvolveram estranhos poderes que talvez os possam ajudar a instaurar uma nova ordem.

A Outra Neferet pode ter deixado a sua Casa da Noite, mas está longe de desistir dos seus objetivos de dominar o mundo. Enquanto tenta aceder à Magia Antiga, Anastasia, a nova Sumo‑Sacerdotisa, trabalha em prol da paz e da aceitação dos vampyros do Outro Mundo. Mas tal como o coração partido do Outro Kevin precisa de tempo para sarar, trazer a paz àquele mundo também exige tempo e trabalho — e nem todos os vampyros do Outro Mundo querem essa paz. Entretanto, Zoey está desesperada por livrar o Outro Mundo de Neferet de uma vez por todas, e não saber o que lá se passa está a consumi‑la. No entanto, tal como alerta a Manada dos Marados, é extremamente perigoso invocar a Magia Antiga.
O que acontece quando mundos diferentes se confrontam e poderes que deveriam ser ignorados são despertados? Conseguirá o Outro Kevin e o seu mundo recuperar das feridas que Neferet lhes infligiu? Será possível controlar e utilizar a Magia Antiga para o bem? Ou irão as Trevas extinguir a Luz e deixar os nossos heróis destruídos, desesperados e esquecidos?

Com o feminismo e o movimento #metoo a ganharem força, está a crescer igualmente uma rede digital de homens que odeiam as mulheres. Eles autodenominam-se «Incels», refugiam-se nos recantos mais obscuros da Internet e estão unidos no seu desejo de vingança contra as mulheres que nunca olharam para eles.
A norte de Estocolmo, uma mulher é encontrada morta no seu apartamento, num ataque brutal que aponta para um único suspeito. No entanto, quando a detetive Vanessa Frank assume a investigação fica com a sensação de que está em falta um elemento fundamental.
Quando a investigação começa a apontar para o possível envolvimento da sinistra rede de Incels nos crimes, Vanessa questiona-se se o ódio destes misóginos os poderá levar a um ataque em massa, imprevisível e num lugar supostamente seguro para as mulheres…

As técnicas de sedução tradicionais são uma treta. Para Mark Manson, a sedução é um processo emotivo e não físico ou social, um processo que envolve criar empatia com as mulheres em vez de as impressionar. O que importa é a intenção, a motivação e a autenticidade. Para melhorar a sua vida amorosa, deve melhorar a sua vida emocional – a forma como se sente e como se exprime perante os outros.
Divertido, irreverente e atrevido, A Arte Subtil de Saber Seduzir não é apenas mais um livro com técnicas de sedução e frases feitas prontas a usar. É um guia honesto sobre a forma como um homem pode atrair uma mulher sem fingir comportamentos, sem mentir e sem imitar os outros.

«Um guia detalhado para as interações sexuais modernas.»

1915. Sherlock Holmes está reformado e completamente dedicado ao estudo das abelhas quando uma adolescente tropeça literalmente nele em Sussex. Desajeitada mas muito determinada, a jovem Mary Russell impressiona o detetive com a sua inteligência, ousadia e vivacidade. Sob a tutela e proteção de Holmes, a jovem desenvolve os seus dotes para a investigação e prova estar à altura de ser parceira do detetive mais famoso do mundo.
Quando ambos são chamados a Gales para ajudar a Scotland Yard a encontrar a filha de um senador americano, esta parceria é colocada à prova. Este é um caso com ligações internacionais, e as pistas apontam para o passado de Holmes, onde um vilão se move nas trevas com jogadas precisas como num jogo de xadrez.
Pleno de dedução brilhante, dissimulação e perigo, este primeiro livro da parceria Mary Russell-Sherlock Holmes é o início de uma série aclamada internacionalmente.
Nomeado como um dos 100 melhores livros de mistério do século pela Independent Mystery Booksellers Association

sábado, 9 de janeiro de 2021

A Rapariga Invisível (Carlos M. Queirós)

Quando chega ao hospital para uma consulta com um neurologista, a quem deverá mostrar os resultados dos exames que fez, Rafael Castro teme já que as notícias possam não ser boas. Mas está longe de imaginar o que o espera. Esquecido na sala de espera em virtude de uma urgência, vê-se inesperadamente acompanhado por uma menina que anda a deambular por ali sem que ninguém se interesse com ela. O problema é que mais ninguém a vê. A explicação mais lógica parece ser uma alucinação provocada por seja qual for o problema que Rafael tem na cabeça. Mas Eva sabe coisas que o próprio Rafael não pode saber. E é esse o primeiro indício de que, seja aquela criança o que for, visão, fantasma ou outra coisa qualquer... o que é certo é que tem uma missão para lhe transmitir.
Com um óbvio elemento sobrenatural, mas caracterizado de uma forma algo diferente do que seria de esperar de uma história envolvendo visões do "além", é nas particularidades deste contexto que está provavelmente a maior força deste livro. Eva é, à falta de melhor palavra, um fantasma, mas a forma como este tema é desenvolvido segue um caminho bastante diferente do das almas penadas, do céu e do inferno. Além disso, a busca de uma possível explicação científica para os acontecimentos invulgares é também uma das forças motrizes da história, o que acaba por dar origem a vários desenvolvimentos inesperados. Assim, é a visão diferente de um tema relativamente comum que torna esta leitura imprevisível, apesar dos aspectos aparentemente familiares.
Há também outro grande tema a pairar sobre toda a história, materializado na forma de Rita e do seu coma alegadamente irreversível. É, aliás, esta situação o cerne da grande missão que move o enredo. Mas, mais do que este sentido de missão e a convergência de factores naturais e sobrenaturais na expectativa de operar o milagre, o que sobressai desta abordagem é a moralidade dúbia que faz com que as personagens tomem, por vezes, decisões que são, na melhor das hipóteses, censuráveis. Além disso, várias das personalidades são, por natureza, contraditórias, o que significa que nem sempre é fácil compreender as suas acções (ainda que faça também um certo sentido, pois também elas não as compreendem).
Tendo em conta os temas, é ainda inevitável um certo lado introspectivo, que faz com que a leitura seja, a espaços, um pouco mais pausada. Ainda assim, os capítulos relativamente curtos, associados aos picos de intensidade de certos momentos e à também inevitável emoção associada às circunstâncias fazem com que a leitura nunca deixe de ser cativante e nunca se esbata a vontade de saber mais, mesmo quando as escolhas das personagens são difíceis de entender.
Tudo somado, ficam alguns sentimentos ambíguos, mas sobretudo a sensação de uma história interessante, surpreendente e com uma boa dose de material para reflexão. Uma boa leitura, em suma, e uma visão diferente do sobrenatural.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Doze anos

 E o tempo continua a voar... Doze anos - ainda ontem e há uma eternidade.
E ainda aqui estou... e ainda aqui estamos,
No meio dos livros, como sempre.

E, se a estranheza continuar...
Continuaremos também a ter os livros.


Obrigada por continuarem desse lado.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Gideon Falls, Vol. 4: O Pentóculo (Jeff Lemire, Andrea Sorrentino e Dave Stewart)

Gideon Falls é um local singular, reflectido em múltiplas identidades ligadas pelo que parece ser uma fissura causada por uma experiência que correu mal. É, pelo menos, essa a teoria, ainda que sejam muito mais as perguntas do que as respostas no que toca ao que as personagens sabem sobre o Celeiro Negro e tudo o que ele implica. Uma coisa é certa, há algo de tenebroso vindo do suposto centro, algo que espalha o caos por onde quer que passe. E é com esta sinistra e sorridente criatura que Norton, Angela, Clara e Fred têm de lidar seja de que forma for. Até porque agora... a criatura já não é só uma sombra no celeiro. E espalha morte à sua passagem.
Uma das coisas que nunca deixam de surpreender a cada volume desta série é a sua persistente estranheza. Há aspectos que se tornaram familiares, como o Celeiro, o sorriso diabólico, a desconstrução dos cenários e a percepção de uma realidade basicamente indescritível. Mantém-se, contudo, a singularidade em todos estes aspectos, pois, embora comecem a surgir algumas respostas, as repercussões continuam a ser surpreendentes e inexplicáveis e o mesmo se aplica à forma como as personagens lidam com elas.
Também a componente visual é singular e também isto já vem de trás. E, tal como acontece com a história propriamente dita, também na arte a familiaridade (relativa) não diminui em nada o seu impacto. As grandes dispersões, os jogos de escuridão no próprio centro, as diferenças entre as múltiplas versões de Gideon Falls... tudo isto pode ser agora mais conhecido, mas não deixa de impressionar e de acrescentar novos elementos ao virar de cada página. Além disso, esta constante estranheza - com os elementos de metamorfose kafkiana - contrasta poderosamente com a expressividade humana das personagens (figura sorridente à parte) e realça a força de certas decisões com que algumas personagens acabam por ser confrontadas.
Ainda um outro ponto surpreendente é a forma como, no meio de desenvolvimentos cada vez mais sombrios, continua a haver espaço para rasgos de emotividade, seja nas decisões difíceis tomadas por Norton, seja nas perdas e reencontros que vão acontecendo ao longo do caminho. E, sendo certo que este volume culmina num grande desenvolvimento, que promete que tudo será diferente a seguir, não deixa de ser muitas vezes nos gestos pessoais que está a sua máxima força. Que consequências virão depois é um mistério - mas não falta intensidade a cada passo.
O que fica deste novo volume é, pois, o mesmo equilíbrio entre estranheza e proximidade que, a cada nova revelação, torna tudo ainda mais intenso. Imagens tão singulares como marcantes, personagens aparentemente devastadas, mas firmes na sua personalidade, e um enredo que nunca pára de surpreender. É Gideon Falls no seu melhor, em suma. E promete ainda mais.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

O Livro (Cesário Verde)

Cenas do campo e da urbe. Mulheres delicadas e homens vigorosos. Gestos quotidianos da vida e a presença súbita e inquestionável da morte. Uma poesia de cenários complexos e meticulosamente descritos - e de contrastes, sobretudo, a irromper de entre a descrição. Assim são os poemas deste livro, longos, detalhados e com os seus rasgos de intensidade.
Sendo uma obra sobejamente conhecida  - e, pelo menos no meu tempo, amplamente dissecada na escola - dificilmente este livro será uma novidade. E, mais uma vez, porque amplamente dissecados na escola, poderá não ser necessariamente arrebatadora a primeira impressão que estes poemas trazem à memória. Porquê? Porque no que toca a rimas, métrica e figuras de estilo, estes poemas dificilmente poderiam ser mais abundantes - e, talvez por isso, o que ficou na memória foi essa imensamente meticulosa dissecação.
Mas é também por esta impressão tão vincada que um regresso a estes poemas fora desse contexto de análise é importante, pois acaba por ter um impacto diferente. Lê-los ao ritmo das palavras não esbate esta meticulosidade de pormenores, mas dá-lhes um fluxo diferente. E sendo o deambular pelos cenários uma tão importante parte destes textos, esta leitura sucessiva transmite essa sensação, sem quebras, sem divisões, de deambular por cenários mais ou menos marcantes, mas todos meticulosamente construídos e com os seus rasgos de luz e sombra a emergir.
Há também sempre outro impacto nesta leitura pessoal, pois, mais do que as damas e os homens, e os exaustivamente descritos labores do campo, há um rasgo que às vezes se manifesta e que, a espaços, cria uma certa proximidade. Há morte a vaguear nessas paisagens e a sua presença confere intensidade a um registo que, por vezes, parece muito distante. E reconhecer esses rasgos de angústia no meio dos amplos cenários cria emoção onde ela não parecia existir.
Talvez não seja uma impressão radicalmente nova a desta leitura distanciada da forma - mas não deixa de ser mais próxima, mais cativante. E, entre as extensas descrições destes poemas, é também o encontro da proximidade que permite reconhecer melhor a beleza do resto. Porque há beleza neste livro - e não é só a da contemplação. É a das palavras, a do ritmo - e sim, a das figuras de estilo amplamente dissecadas - mas que formam um todo maior vistas como um todo.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Shanghai Dream (Philippe Thirault e Jorge Miguel)

Berlim, 1938. Bernhard e Illo tinham uma vida feliz, com uma carreira em desenvolvimento no cinema, ela a escrever argumentos, ele a caminho de se tornar realizador. Mas tudo mudou com as leis raciais. Ninguém correrá o risco de dar trabalho a judeus, nem no cinema, nem em qualquer outro local, e até as suas próprias casas só estarão seguras durante um período limitado. Desesperados, Illo e Bernhard preparam uma fuga para oriente em conjunto com o pai dela, mas são muitos os que fogem e só há dois lugares disponíveis. Partem com destino a Xangai, mas Illo não suporta a ideia de abandonar o pai. E o que deveria ser apesar de tudo um exílio em família torna-se algo mais negro, mais solitário... só com a promessa da memória a alimentar um sonho aparentemente impossível.
Não será propriamente uma surpresa que um dos aspectos que mais de destaca neste livro seja o contexto histórico. Se é certo que o período propriamente dito tem sido amplamente explorado em todo o tipo de histórias, também o é que nunca deixam de existir novas perspectivas e histórias pessoais marcantes. Este livro explora um caminho diferente, um êxodo talvez menos conhecido, realçando ao mesmo tempo o pleno impacto das atrocidades e a continuidade da vida mesmo quando tudo parece perdido. Bernhard e Illo seguem caminhos diferentes - mas estão ambos no cerne da crueldade e da esperança.
Tendo em conta este contexto, importa referir outro aspecto que também não é uma surpresa, mas é particularmente poderoso: o impacto emocional. É absurdamente fácil sentir com as personagens: o dilema de Illo entre ficar ou partir, o desespero de Bernhard ao ver-se sozinho e perdido, a determinação do pai de Illo num derradeiro gesto, a devastação da perda, a coragem de construir algo a partir dela... e todo o ciclo de aspirações, perdas, novas esperanças e novas perdas que é a vida destas personagens. Há momentos terrivelmente dolorosos e belíssimos rasgos de esperança. E há um sonho e o amor que o acompanha - e isso... isso fala ao coração.
Todo este impacto converge ainda num outro equilíbrio: entre diálogos certeiros e uma arte que parece reflectir na perfeição estes dois elementos. Os diálogos dão a esta mistura de terror e esperança uma voz precisa e certeira. A arte, com os seus vastos cenários, os poderosos contrastes de cor (sobretudo entre cidades diferentes) e a grande expressividade nos rostos, realça não só as diferenças entre os diferentes momentos e locais da história, mas entre os estados emocionais das próprias personagens. Além, claro, dos elementos do filme e da forma como esses inesperados rasgos a preto e branco realçam o lado onírico - ou idealista - da história. Porque é de um sonho que se trata... realizável, pelo menos em teoria, mas um sonho ainda assim.
De esperança e de crueldade, de um período negro, mas onde nem todos os sonhos morreram, e de um amor que prevalece para lá da atrocidade. De tudo isto é feito este Shanghai Dream: viagem ao passado, ao sonho e à esperança... comovente, poderoso e memorável.