sábado, 30 de abril de 2022

À Procura de Anne Frank (Ari Folman e Lena Guberman)

Quando uma forte tempestade faz com que um raio atinja o local onde o diário de Anne Frank está guardado, a sua amiga imaginária, Kitty, desperta para a vida. Inicialmente não sabe onde está nem o que aconteceu à amiga, mas o diário está mesmo à mão para a lançar na busca de respostas. Só que essa busca lançá-la-á também num mundo real onde a sua amiga está em toda a parte, mas a mensagem das suas palavras parece ter sido esquecida. E terá de ser Kitty a relembrá-la...
Parte do que torna esta leitura tão marcante é a forma como põe em evidência não só as atrocidades do passado, mas também as violências e indiferenças do presente. Em busca da amiga, Kitty descobre não só o que lhe aconteceu, mas também o que continua a acontecer no mundo. E assim, este percurso fluido e emotivo é também uma poderosa reflexão sobre onde está, afinal, a suposta bondade humana perante o impensável.
Também o aspeto visual é especialmente cativante, com rasgos de movimento a conferir fluidez ao percurso, uma expressividade notável nos rostos das personagens e uma beleza desoladora e fascinante em certos cenários - sobretudo os imaginários. Há como que uma harmonia que transborda das páginas e que dá ainda mais força a uma história já poderosa.
Ainda um último ponto a destacar tem a ver com as circunstâncias singulares de Kitty e a forma como estas se repercutem no enredo, suscitando alguns momentos surpreendentes e um final agridoce, mas perfeitamente adequado.
Uma mensagem intemporal e mais necessária do que nunca, um percurso que dá nova vida a uma história sobejamente conhecida e uma arte que realça todas as singularidades desta história tornam este livro memorável em todas as suas facetas. E muito necessário também. 

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Que Túmulo em que Talhão (João Moita)

Da decomposição e ressurgimento da terra, transbordante de vida e de morte em equilíbrios ora fascinantes, ora macabros. De paisagens silentes e crueldades quotidianas, vistas por um olhar impávido que não expressa sentimentos, mas visões. De vida que se transforma em morte, desertos que se transformam em água, silêncios que o som da natureza rasga para depois voltar a fundir. De tudo isto é feita esta poesia, contemplando a morte através da vida. Ou vice-versa.
Provavelmente o aspeto mais surpreendente deste livro, e também o mais memorável, é a sua singularidade na construção das imagens. É uma poesia que vive fundamentalmente de paisagem, de natureza, ainda que exista alguma presença humana de vez em quando. É uma natureza feita maioritariamente de elementos razoavelmente normais. Surpreende, portanto, a forma como esta contemplação da paisagem se assume como tudo menos bucólica e harmoniosa. É um olhar à decadência através do que ainda existe, um traçado sombrio de abismos futuros através da serenidade presente. E essa visão soturna tem algo de fascinante - como que um grande memento mori que lembra também que ainda há vida.
Também bastante surpreendente é o facto de todo este contraste resultar de uma poesia que é, do ponto de vista estrutural, aparentemente muito simples, com os seus versos curtos e sem grandes imposições em termos de métrica. Aparentemente simples, contudo, porque a verdade é que há um equilíbrio nesta construção, uma fluidez que quase projeta mentalmente as imagens, e uma cadência na construção da paisagem que facilmente se entranha na memória.
Não é o tipo de poesia que apela às emoções, é certo. É mais como que uma contemplação. Mas também isto faz parte da sua singularidade, esta perceção do mundo não de uma forma emocional, mas vendo-o nos seus equilíbrios e na forma como persistem, mesmo na ausência da sentimentalidade humana.
Singular na paisagem, na voz e na intensidade dos contrastes que confere aos cenários que traça, trata-se, em suma, de um livro que, não sendo propriamente emotivo, facilmente se torna memorável. E de uma forma única de contemplar os ciclos naturais da vida.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Branco em Redor (Wilfrid Lupano e Stéphane Fert)

Quando Prudence Crandall decide receber uma rapariga negra na sua escola, está muito longe de imaginar as ondas de choque que isso terá - e a forma como os verdadeiros rostos da sua comunidade se irão revelar. Pois há quem ache que a distância é sagrada e que as aspirações são um exclusivo dos brancos. Ainda assim, Prudence tem um plano para dar às suas alunas o conhecimento por que anseiam. E está disposta a lutar por isso até ao fim.
Uma das primeiras coisas a salientar sobre este livro é o impacto emocional devastador. Dado o tema e a história, é de esperar uma impressão forte, mas a verdade é que todo o livro é um tratado sobre a forma como o ódio à diferença torna visíveis os limites da crueldade humana - ou a falta deles. Há, pois, momentos verdadeiramente angustiantes nesta história, e uma grande reflexão subjacente a eles. E, sendo embora a história de um período específico, as questões que suscita mantêm a atualidade.
Se a história é notável, a arte não lhe fica atrás, com um toque ligeiramente impressionista a realçar o impacto das situações com mais movimento, uma expressividade que ora confere leveza, ora realça a intensidade e contraste eficaz de luz e sombras que parece enfatizar ainda mais a emoção.
Ainda um último ponto a referir é que, tendo em conta o facto de ser uma história real, certas partes não são propriamente imprevisíveis. Ainda assim, isso não retira qualquer intensidade à história, chegando mesmo a despertar aquele desejo de um final diferente que nasce, por vezes, da proximidade gerada durante a leitura.
Poderosíssimo no tema, visualmente fascinante e carregadinho de emoção e de material para reflexão, trata-se, em suma, de um leitura memorável. E de uma análise certeira ao que a humanidade tem de menos humano.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O Rapaz da Fotografia (Nicole Trope)

Há seis anos, o filho de Megan desapareceu. Agora, está de volta, mas está longe de ser o rapazinho doce que foi raptado pelo pai. E há muitos mistérios em torno do seu regresso, a começar pelo incêndio que matou Greg e deixou Daniel livre para voltar para a mãe. O que devia ser um reencontro feliz cedo se revela um poço de tensões. Mas serão os comportamentos invulgares de Daniel fruto do trauma ou laivos de um segredo mais sombrio?
Um dos aspetos mais empolgantes deste livro é a capacidade da autora de manter uma tensão constante ao longo de toda a história. Desde a intensidade do reencontro à tensão da reconstrução da relação, sem esquecer os laços emocionais e os jogos de mentiras e manipulação, há sempre uma sensação ominosa a pairar sobre as personagens e um mistério que se prolonga mesmo até ao fim, tornando quase irresistível a necessidade de continuar a ler até à manifestação das respostas.
Também a estrutura do livro contribui para o tornar viciante, com os contrastes poderosos entre as diferentes perspetivas e os diferentes momentos da linha temporal. Os capítulos vistos pelos olhos de Daniel são particularmente marcantes, pois a forma como a autora reflete os impactos da manipulação é particularmente impressionante, ao ponto de despertar sentimentos fortes em relação às personagens.
E também a construção das personagens se destaca, com figuras que são fáceis de odiar, mas cuja força motriz não deixa de ter as suas complexidades, e outras que facilmente despertam empatia, mas cuja faceta falível as humaniza. E claro, há quem não seja o que parece ser, o que contribui para a surpresa do final.
Carregado de tensão e de situações complexas, com uma aura de mistério que cresce em intensidade até culminar num final poderoso e com a medida certa de material para reflexão, trata-se, em suma, de um livro empolgante e que prende da primeira à última página. Uma belíssima história, portanto. 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Ascender, vol. 2 - O Mar dos Mortos (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

A devastação do fim das máquinas deu lugar a uma forma de brutalidade diferente, causada por monstros e magia. E, como sempre, não faltam inocentes a sofrer as consequências. Mila julga ter perdido o pai e a única opção que lhe resta é uma fuga desesperada do planeta. Já Andy continua vivo, mas numa situação delicada. E enquanto cada um tenta encontrar o caminho para a segurança possível, outras forças começam a manifestar-se. A liderança da Mãe não é assim tão incontestada. E há fios do passado a estender-se para o futuro...
Parte do que este livro tem de impressionante, à semelhança do primeiro volume, é a forma como conjuga múltiplas facetas e diferentes fios narrativos num equilíbrio perfeito. Acompanha diferentes personagens, cada uma com as suas lutas e os seus fantasmas. Percorre diferentes momentos da linha temporal, o que implica mudanças drásticas de cenário e de sistemas em vigor. E oscila também entre diferentes impactos emocionais, com laivos de humor, ação intensa e alguns rasgos brilhantes de emoção.
Esta diversidade reflete-se também na componente visual, com a expressividade dos rostos a contrastar com a devastação dos cenários, o movimento das cenas de ação a complementar a quietude possível das memórias e os jogos de cor e de sombra a realçar os traços mais vincados de cada momento. Além disso, há também uma mudança de tons predominantes entre os diferentes cenários, o que salienta o facto de, apesar de bastante centrada nas personagens, esta história decorrer num mundo vasto.
Finalmente, importa salientar que, embora sendo apenas o segundo volume desta série específica, é bastante evidente que faz parte de um contexto bastante maior. É, pois, importante conhecer a série Descender para apreciar plenamente os laços e ligações desta história, ainda que tudo pareça, à primeira vista, ser bastante diferente.
Intenso, empolgante e equilibrado, trata-se, em suma, de um novo volume à altura das expetativas, capaz de prender, surpreender e emocionar em todos os momentos certos. Memorável, como sempre.