terça-feira, 25 de outubro de 2022

O Acontecimento (Annie Ernaux)

Um acontecimento capaz de traçar o limite da despreocupação e despertar em pleno a vida adulta, uma mudança que inicia buscas e transformações. Uma gravidez indesejada de uma estudante decidida a abortar em tempos de clandestinidade e que recorda, ao fim de muito tempo, os passos orientadores deste acontecimento. Vida narrada em voz de romance, mas num registo intimamente pessoal.
Apesar da evidente brevidade deste livro, não se trata propriamente de uma leitura fácil de descrever. Sempre a deambular pela fronteira da realidade, mas com a visão por vezes ambígua da memória, não é  tanto uma história como a introspeção, embora girando em torno de um acontecimento. E é também uma história que podia ser de muitas, o que deixa também uma marca singular.
Também devido à brevidade, mas no próprio registo, há uma impressão de concisão nos factos que contrasta com a vastidão da matéria para reflexão. O próprio tema suscita questões e a forma pessoal, mas refletindo uma situação comum a muitas outras, evoca questões sociais e até sobre a natureza humana.
E, mais uma vez, tudo de forma muito sucinta, o que faz sobressair um outro ponto. A narrativa converge para um acontecimento e o ritmo das palavras reflete essa convergência, oscilando entre deambulares pelas palavras, explicações muito rápidas e momentos de pura intensidade  dramática.
Tudo somado, o que fica é a sensação de um livro pequeno, mas vasto, pessoal, mas aberto às questões e complexidades sociais, e com uma voz certeira e direta, mas que evoca na perfeição os meandros da memória. Conciso, mas com uma eficácia memorável, um livro que marca de diferentes formas. 

terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Jardim Secreto (Mariah Marsden e Hanna Luechtefeld)

Enviada para viver na charneca com o tio após a morte dos pais, Mary sente-se muito só. Não tem amigos, aborrece-se e, naquela mansão de quartos trancados, também não tem nada para fazer. Mas tudo muda quando começa a conhecer as pessoas da casa… e a descobrir os seus segredos. Há portas escondidas e mistérios do outro lado de um muro. E uma tristeza que talvez Mary possa começar a curar.
Algo que importa começar por salientar é que, sendo embora uma adaptação, este livro facilmente pode ser lido sem qualquer conhecimento prévio da história. O percurso é completo, ainda que conciso quanto baste, e as imagens completam a brevidade dos diálogos, além de salientarem o ambiente em que as personagens se movem.
Outro ponto a destacar é o inevitável contraste entre ternura e irritações. No início, não é propriamente fácil gostar das personagens, com as suas birras e petulâncias, mas isso é algo que vai evoluindo com a progressão da história,  e abrindo caminho para uma ternura inocente e melancólica que não pode deixar de cativar. Também ajuda o facto de as personagens irem surgindo gradualmente na vida da protagonista, o que faz com que a sua mudança gradual de perceções se vá transferindo, aos poucos, também para o leitor.
Finalmente, importa mencionar a arte, simples quanto baste nos traços das personagens, mas repleta de pormenores interessantes nos cenários e de vida na natureza. Ou não fosse esta a história de um jardim secreto, cujas transformações são parte do âmago da aventura. E as informações no final do livro, que permitem uma compreensão mais clara da origem da história e também um reconhecimento mais profundo dos elementos - plantas e aves - que surgem ao longo do enredo.
Simples quanto baste, mas com uma cativante fusão de inocência e melancolia, trata-se, em suma, de uma leitura envolvente, cativante à vista e bastante memorável no seu conjunto. Breve, mas surpreendente, vale bem a pena descobrir este Jardim Secreto.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A Espia do Oriente (Nuno Nepomuceno)

André Marques-Smith tinha uma vida dupla - mas não sabia até que ponto. E agora que a verdade veio à tona, grande parte do que julgava saber foi posto em causa. Ainda assim, a vida não para e a sua faceta mais secreta chama-o de volta ao ativo. Os documentos que tanto esforço lhe custaram a recuperar ainda não estão decifrados, e por isso a investigação deve continuar, até porque a sua vida pode depender disso. Mas quando isso implica trabalhar com uma mulher que despreza e em quem não confia... André não pode deixar de se interrogar se não estará a ser enganado outra vez.
Provavelmente a maior prova da intensidade deste livro é que, mesmo numa segunda leitura, em que as grandes revelações já são conhecidas, a história não perde absolutamente nenhum impacto. Das primeiras surpresas ao final devastador, tudo mantém exatamente a mesma força da primeira leitura, em fluidez, envolvência e, acima de tudo, emoção. 
Mas, claro, dizer que as qualidades se mantêm não diz quais são. E são muitas: a naturalidade da escrita, a capacidade incessante de surpreender, o equilíbrio entre emoção e humor e a força dos momentos mais dramáticos. 
E, além de tudo isto, sobressaem ainda dois pontos. O primeiro é o contraste equilibrado e cativante entre as múltiplas facetas da vida de André, oscilando entre a adrenalina da espionagem, as tribulações do trabalho e o quotidiano da vida familiar e dos amigos. O segundo está na base disto: a construção completa de personagens tão admiráveis como falíveis, tão eficientes como vulneráveis. Complexas. Imperfeitas. Humanas.
E se, de certo modo, este livro é também uma transição, no sentido em que deixa pontos em suspenso para o que falta contar, o que é certo é que não faltam desenvolvimentos marcantes, mais do que suficientes para tornar esta fase da aventura completa por direito próprio. E para deixar uma enorme vontade de ler o volume final - sim, mesmo já conhecendo a história.
Tudo somado, o que fica é a sensação de um reencontro marcante, cheio de intensidade, de surpresas e de ação, mas também de uma vulnerabilidade que nunca deixa de impressionar. E a ideia de que vale sempre a pena regressar aos lugares onde já fomos felizes quando as pessoas que nos cativam vivem por lá. Como é certamente esse o caso deste livro.