segunda-feira, 28 de junho de 2021

Ascender, Vol. I - A Galáxia Assombrada (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

Passaram dez anos desde que a ação dos Coletores acabou com grande parte da tecnologia do universo, deixando muitos planetas reduzidos a uma sombra do que eram e expostos à entrada de novos poderes. E houve realmente um novo poder a surgir. A magia tomou posse e agora é uma figura tenebrosa a quem todos chamam de Mãe, que reina sobre o universo. Só que nem todos estão dispostos a ser "salvos" por esta figura "materna". É o caso de Andy e da sua filha Mila, que vivem isolados do mundo para não terem de se submeter. Só que o passado não está tão morto como parecia. E a aparição de um velho amigo fará com que a paz precária da vida de Andy e de Mila se veja subitamente destroçada.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que, apesar de ser o início de uma nova série, é importante ter lido a série Descender para entender os acontecimentos. E, tendo lido essa série, uma das primeiras coisas a saltar à vista é o contraste entre os dois mundos e a forma como tudo mudou em tão pouco tempo. O mundo de Mila não podia ser mais diferente do de TIM-21. E, ainda assim, há elos de ligação em toda a parte, o que faz com que este novo livro seja - apesar de ser o início de uma nova série - também a continuidade perfeita para a série Descender.
Embora todo o cenário tenha sofrido alterações drásticas, as qualidades essenciais mantêm-se as mesmas: a arte, com os seus traços singulares, que, sobretudo nos grandes momentos, fazem com que as personagens quase pareçam ganhar vida na página e o seu contraste entre os diferentes cenários; a oscilação entre diferentes perspetivas, que mostram mais uma vez uma rede de movimentações que promete tornar-se cada vez mais complexa; e a ligação pessoal, que nasce da inocência de algumas personagens em contaste com a crueldade implacável de outras, e também da falibilidade que humaniza as que não são uma coisa nem outra. É particularmente notável, aliás, o caso das personagens que já vinham do livro anterior: o Andy deste livro é mais maduro e marcado, e gera uma empatia absurda; Telsa, por sua vez, parece ter sofrido a mais dramática das transformações... mas o coração continua lá. E, assim, num mundo que parece totalmente novo, existe uma familiaridade que, apesar de tudo o que mudou, nunca deixa de ser reconfortante.
Sendo o primeiro volume - e sendo uma continuidade de Descender - não é propriamente surpresa que fiquem muitas possibilidades em aberto. Aliás, depois de todas as surpresas que surgem ao longo deste livro, todas as possibilidades estão em aberto. Não fica, porém, curiosidade insatisfeita, até porque é evidente que a história vai continuar. Fica, sim, uma vontade irresistível de saber como. E de ler o que se segue o mais rapidamente possível.
A mesma intensidade e a mesma emoção, num mundo que é também o mesmo, mas não poderia estar mais diferente: assim é este primeiro volume de Ascender, uma nova história com os mesmos laços e a mesma capacidade de intrigar, surpreender e comover. Muito, muito bom.

sábado, 26 de junho de 2021

Sem Rei Nem Roque (João Palma e Rodrigo de Matos)

Acontece aos melhores. Às vezes, metemo-nos uma trapalhada que nos faz andar sem rei nem roque. Ou então aparece uma chatice qualquer que nos custa os olhos da cara. E até podemos já ter respondido a uma proposta: nem que a vaca tussa! São expressões tão conhecidas e tão comuns que, às vezes, até já nos saem sem pensar. Mas sabemos de onde vieram? E que algumas delas até têm uma origem bastante mais sombria do que a leveza com que hoje as utilizamos? Pois bem, este livro é bom um ponto de partida para passarmos a saber.
Simultaneamente divertido e educativo, este livro tem na concisão uma das suas principais qualidades. Cada texto ocupa apenas uma página e dedica-se a explicar de forma mais sucinta e esclarecedora possível as origens - ou possíveis explicações, porque nem todas são claras - das várias expressões populares. Algumas são sobejamente conhecidas, outras nem tanto. Outras ainda aplicam-se a contextos específicos como o mundo futebolísticos. Mas todas têm as suas singularidades e a leveza e o humor com que são abordadas faz com que o conhecimento seja absurdamente fácil de assimilar.
Claro que nem todas têm explicações absolutas, o que significa que, nalguns casos, fica uma certa curiosidade insatisfeita. Mas há sempre teorias, e as teorias são sempre interessantes, o que significa que não faltam possibilidades. Ah, e claro, as expressões podem ser populares, mas não significa que todas elas sejam de uso assim tão comum, o que quer dizer que há espaço também para algumas descobertas surpreendentes ao longo desta breve leitura.
Há, naturalmente, um último ponto que importa destacar: as ilustrações. Além de tornarem o livro visualmente apelativo, conseguem enfatizar ainda mais as já referidas leveza e humor. Porquê? Porque cada expressão vem acompanhada por uma imagem que reflete, até certo ponto, o possível significado... mas com uns quantos laivos de inesperado. Casos como os da expressão "bater na madeira" são particularmente certeiros na abordagem. Ou o tão evidente "sem rei nem roque", pois basta olhar para a capa para entender que as ilustrações serão tudo menos representações literais.
Breve e divertido, trata-se, pois, de um livro que é simultaneamente leve e esclarecedor, que ensina e entretém. E uma coisa é certa: depois de terminada a leitura, estas tão conhecidas expressões vão ganhar novo sentido. Não necessariamente por serem novas, mas porque conhecer-lhes a origem dá-lhes uma nova perspetiva.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A Colina que Subimos (Amanda Gorman)

Foi um poema que andou nas bocas do mundo. Afinal, não são todos os textos - nem todos os poetas - que ocupam uma posição de relevo na cerimónia de tomada de posse de um presidente. Mas não foi a única razão para tanto se ouvir falar nele. Quem assistiu, ficou com o momento na memória. Quem não o fez... bem, tem aqui uma boa oportunidade de descobrir o poema, e o porquê de ter tido o impacto que teve no nosso por vezes tão estranho mundo atual.
É difícil encontrar um ponto por onde começar a falar sobre este livro, primeiro por ser muito breve e sobretudo porque o impacto das palavras é sobejamente conhecido. Mas um bom ponto de partida talvez seja dizer que este relativamente pequeno poema acerta em cheio nas tribulações e dificuldades que marcam o mundo atual. Claro que é mais fácil vê-las no contexto americano, até porque foi nesse contexto que ele foi escrito. Mas, se olharmos bem, não há em muitas destas questões algo de universal? Tolerância, resiliência, superação, aceitação. Reconhecimento da diferença, e também do caos que ameaça destruir e do que pode ser feito para o combater. Sim, o contexto pode ser muito específico, mas as suas aplicações são muito abrangentes.
É um livro de cerca de sessenta páginas, e difícil, talvez, de separar das circunstâncias em que o poema se tornou conhecido, pelo menos para quem o ouviu ou ouviu falar nele. Mas um olhar atento mostra que é também um texto para lá das suas circunstâncias. Lido em voz alta, é quase um apelo à ação. Mas é também uma lembrança do poder das palavras para mudar o mundo, da força da poesia para dar a voz certa às coisas que nem sempre são fáceis de dizer. E, mais uma vez, pode ter um contexto específico, mas com repercussões que o transcendem.
Às vezes, a brevidade esconde insuspeitas profundezas. Neste caso, esconde um olhar certeiro e completo aos problemas e desafios dos Estados Unidos em particular e também do mundo em geral. E, além de visão, abrange também luta e otimismo, beleza e admiração pela complexidade da vida. Porque subir a colina implica coragem. E é essa mesma coragem que transborda das palavras deste poema.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Outra História, Outras Estórias (Adérito Tavares)

Todos conhecemos aquela expressão que diz que quem não conhece a história está condenado a repeti-la. E basta olhar para o nosso mundo de hoje para ver sombras dessas possíveis repetições. Mas conhecer a história? Nomes, datas, batalhas, locais... é chato, não é? Bem... não, não é. Muito pelo contrário. E, quando a história nos é contada com a voz certa, pode muito bem tornar-se fascinante. É o que acontece com este livro que, através de um conjunto de crónicas relativamente breves, se debruça sobre múltiplos aspetos da história, alguns tão conhecidos que deram origem a expressões populares, outros vistos de uma perspetiva mais restrita, mas que surpreende precisamente por ser menos conhecida.
Sendo certo que o mais importante é sempre o conteúdo, e sobretudo num livro destes, o primeiro aspeto a destacar é, ainda assim, estrutural, pois, dividido por temas, trata-se de um livro que é fácil consultar em busca de um aspeto específico. Não quer isto dizer que, à primeira leitura, não valha a pena lê-lo do início ao fim. Vale muito. Mas é essa mesma leitura que garante que este é um livro a que regressar mais vezes.
Outro aspeto a sobressair, e que torna importante esta divisão por temas, é precisamente a diversidade de questões. Temos uma secção dedicada às palavras (e a desmistificar algumas ideias sobre a história por trás de certas expressões), outra aos momentos mais cruéis da história, outra ainda à importância das viagens... Enfim, diferentes tipos de histórias. E é esta grande diversidade que faz com que, mesmo que uma crónica específica se afigure menos marcante (porque, afinal, todos temos temas que consideramos mais apelativos), haverá sempre outras para nos fascinar ao longo da leitura. E até com as que marcam menos podemos aprender muita coisa.
Finalmente, importa olhar para o registo das ditas crónicas, informativo, mas sem se tornar maçador, cativante na sua relativa concisão e com laivos de leveza verdadeiramente deliciosos. Aliás, a quem acha que a história é uma coisa muito chata e muito séria, recomendo especificamente o epílogo que, além de lembrar tempos mais inocentes, é deliciosamente divertido.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura cativante, cheia de informação interessante e que, além de educativa, facilmente arranca sorrisos e até gargalhadas. Leve, interessante e muito agradável de ser ler, um belo livro para conhecer a história... a partir das suas estórias.

domingo, 20 de junho de 2021

Lena (Pierre Christin e André Juillard)

Lena perdeu tudo. E a sua perda tornou-a na escolha perfeita para as missões que mais ninguém pode - ou quer - desempenhar. Agora, lança-se em longas viagens, assume identidades que não lhe pertencem, esquece-se de tudo menos do papel que lhe está destinado. E, pelo caminho, tenta influenciar o mundo nas sombras, tentando evitar o tipo de sofrimento que lhe roubou a família. Sem que ninguém o saiba, Lena está bem perto das grandes revoluções do mundo. E tem um papel crucial. Mas até quando estará disposta a continuar a desempenhá-lo?
Há algo de especialmente cativante nos labirintos de inesperado que constituem esta história (ou histórias). A missão, ainda que possa parecer linear, tem sempre as suas medidas de mistério e de perigo. O objetivo é sempre nobre, mas os meios tornam-se, por vezes, ambíguos. E quanto à história da protagonista, o passado apenas vislumbrado, mas que acaba por ser a força motriz de tudo, torna-a uma figura mais complexa e, ao mesmo tempo, mais fácil de compreender.
Outro aspeto surpreendente vem da intensidade da cor, que contrasta vivamente com o lado sombrio destas histórias. Talvez porque esse lado sombrio se manifesta sempre de forma relativamente discreta, quase que insinuada, até ao momento em que as verdadeiras intenções se manifestam e a derradeira conclusão ganha vida. O que é certo é que há uma inesperada tranquilidade na arte que contrasta com o lado sombrio da intriga e realça o secretismo que é, afinal, toda a vida de Lena.
Ainda um outro ponto a salientar é o equilíbrio entre continuidade e independência que, não sendo tão importante por se tratar de uma edição integral, não deixa, ainda assim, de ser notável. Cada história é, na sua essência, independente, mas há laços a unir os três volumes, não só pela protagonista comum, mas também nas suas escolhas e na forma como preparam o caminho para a derradeira resolução. Neste caso, trata-se de um só volume, mas, lidas separadamente (ou de forma faseada), as histórias completam-se, tendo, ainda assim, cada uma a sua própria identidade.
É um livro surpreendente, em que a aparente tranquilidade esconde uma vida secreta - como acontece também com a própria protagonista. E é também uma leitura empolgante, visualmente apelativa e cheia de laivos de inesperado, na arte, no enredo e na construção das personagens. Muito bom, em suma. E memorável.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Bairro Sem Saída (Fernando Ribeiro)

Rogério Paulo nasceu no bairro durante um tremor de terra, assombrado já pela morte do primo dois dias antes de nascer. E, sem saber bem como ou porquê, viu-se plantado numa vida da qual parece ser impossível sair - ainda que haja quem os queira expulsar de lá. Cresce entre sombras e sonhos, inocência que se vai tornando implacabilidade, na companhia do amigo diabético que vai desaparecendo, do medo do monstro que frequenta a sua escola, da iminência da tomada de parte do Bairro - do seu Bairro, do único lugar que conhece - por um grupo de novos e ricos habitantes cujas intenções são, no mínimo, duvidosas. E vai-se encontrando na promessa de uma luta inevitável, entre ricos e pobres, sim, e os que estão dispostos a vender-se para conseguir o que querem.
Construído à base de sombras e de inocência, das dores - e desejos - de crescimento entrelaçadas no crescimento da própria paisagem, este não é, desde logo, um livro fácil de descrever. Até porque a voz do protagonista tem, ao longo de todo o percurso, algo de onírico e de surreal que faz com que as fronteiras da realidade se esbatam. Ainda assim, há algo de estranhamente fascinante nesta história ora introspetiva, ora brutal, onde o cruelmente real e o aparentemente impossível se fundem num equilíbrio notável.
Não é propriamente uma leitura rápida, até porque tem um ritmo muito próprio. A história de Rogério Paulo confunde-se, às vezes, com a história do Bairro, o que significa que há uma visão introspetiva - a do crescimento do protagonista - que se entrelaça com a do crescimento do cenário. Mas este início mais pausado, feito das teias do real e do improvável vai crescendo em intensidade à medida que os desenvolvimentos se sucedem. A estranheza inicial dá lugar à curiosidade e depois a uma certa empatia ambígua - como o são as personagens que a despertam - que faz com o final seja particularmente poderoso em termos emocionais. O Bairro e os seus habitantes podem não ser propriamente gente perfeita. (E quem o é, afinal?) Mas, tendo em conta os desenvolvimentos, acabam por surgir rasgos de heroísmo que acabam por ser também inesperadamente marcantes.
E importa, por último, olhar para outra voz. Sendo certo que é a voz do protagonista a contar toda esta história, há na cadência das palavras o eco de uma voz própria que, nos ritmos e na capacidade de suscitar choque, vai para lá do protagonista e parece transcendê-lo. Será a voz do autor a falar através de Rogério Paulo... ou talvez a voz do próprio Bairro. O que é certo é que há uma singularidade na cadência do texto que capta sempre a atenção, mesmo nos momentos em que a distância parece ser um pouco maior.
Pausado mas cativante, surreal, a espaços, mas com uma dose brutal de realidade, introspetivo, mas com uma visão de comunidade que transcende a história pessoal: assim é este Bairro Sem Saída, um livro que exige o seu tempo, mas que vale cada minuto.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Divulgação: Novidade Saída de Emergência

Até à erupção do monte Rainier, Greenloop era uma comunidade de sonho. Localizada numa floresta perto de Seattle, oferecia uma vida idílica aos seus habitantes, aliando tecnologia e natureza. Agora, dos escombros da cidade, foram recuperados os diários de Kate Holland. E eles contam uma história demasiado angustiante para ser esquecida…
Nas páginas de Involução, Max Brooks divulga, pela primeira vez, não só o testemunho de Kate – uma história arrepiante sobre o confronto com um terrível predador e a selvajaria e morte que daí advém –, mas também os resultados da sua própria investigação sobre o massacre de Greenloop e as criaturas que o realizaram… seres com uma aura lendária mas que se revelaram terrivelmente reais.
Se o que a Kate relata nos seus diários é verdade, teremos de aceitar o impossível. Esta é uma narrativa de sobrevivência, uma sangrenta história de terror, uma jornada na fronteira entre a realidade e a ficção. Esta é a história do Bigfoot como só Max Brooks consegue contar – e como nunca ninguém leu.

sábado, 12 de junho de 2021

A Mão que Mata (Lourenço Seruya)

Um mês após a morte do patriarca da família, os seus três filhos reúnem-se para tratar das partilhas. O local é a casa em Sintra onde o pai viveu e que um dos irmãos pretende comprar. Mas o que devia ser um encontro tranquilo transforma-se em tragédia quando a tia Manuela é encontrada morta. E, ainda que a teoria do assalto seja a explicação mais fácil de adotar, não é essa a opinião de um dos inspetores responsáveis pelo caso.
Parte do que torna esta leitura cativante é a forma como o autor consegue construir uma identidade própria a partir de uma estrutura relativamente conhecida. A ideia so crime misterioso cuja resolução está nos segredos dos presentes na casa é, de certa forma, um clássico, mas o autor dá-lhe uma voz diferente ao transpor para Portugal um enredo normalmente mais frio e ao substituir o habitual detetive pelos procedimentos de um grupo de inspetores da Polícia Judiciária. Além disso, se inicialmente a fórmula parece familiar, o desenrolar dos acontecimentos não tarda a abrir portas a uma sucessão de inesperados, o que rapidamente torna a leitura viciante.
Outro equilíbrio particularmente notável resulta da multiplicidade de perspetivas, acompanhando não só o percurso da investigação, mas também o dos suspeitos. Estes vários pontos de vista vão deixando pistas para a identidade do culpado, mas apontam também em vários sentidos diferentes, o que contribui em muito para manter o mistério vivo até ao fim.
E há ainda a questão pessoal, não só aplicada aos motivos do crime, mas sobretudo à vida particular de Bruno. Além de revelar uma personagem profundamente humana, com os seus defeitos, mas essencialmente com o coração no sítio certo, insinua enigmas do passado que sugerem, talvez, um possível regresso.
Da soma das partes, fica, pois, a impressão de uma reconstrução moderna do mistério clássico. E uma leitura cativante, intensa e cheia de surpresas. Muito bom.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Entre a Lua, o Caos e o Silêncio: a Flor

Dos primórdios à modernidade, da antiga tradição às novas liberdades do presente, da incessante luta por uma liberdade que parece sempre, na melhor das hipóteses, parcial e por uma vida que ora é pessoal, ora é a de um continente inteiro. De tudo isto, em inúmeras vozes, é feita esta longa e vasta antologia. Um livro extenso e tão variado em vozes como em estilos e temas, onde há, por isso, uma imensidão de poesia a descobrir.
Existem essencialmente duas características nesta antologia que sobressaem logo ao primeiro contacto e que são confirmadas ao longo de toda a leitura: é completa e é diversa. Completa, porque abrange toda a história da poesia angolana: tradição oral, precursores e contemporaneidade. Diversa, porque em todo este longo caminho, não falta diversidade de vozes, de estilos, de estruturas e, claro, de perspetivas. Claro que há temas que dominam - a liberdade, a luta, o sacrifício, a relação com a terra, os grandes heróis - mas parece haver espaço para todo o tipo de registos, desde os que assumem a voz de um país inteiro aos que exploram os labirintos pessoais do coração, dos que dão ritmo à tradição e à memória aos que contemplam com nostalgia o que foi e não voltará a ser.
Alguns nomes são sobejamente conhecidos. Outros não o serão tanto. Alguns, conhecidos de outras formas literárias, têm na poesia um registo totalmente diferente, o que suscita uma cativante mistura de reencontro e de revelação. E, ao longo de todo o livro, há todo o tipo de impressões emotivas: o que marca, o que comove, o que apela à dança (ou parece dançar na página). Claro que há sempre poemas mais marcantes e outros que não suscitam o mesmo impacto. Mas entra aqui outras das vantagens de tão grande diversidade: cada leitor tem as suas preferências. E cada leitor encontrará aqui algo à sua medida.
Longo, abrangente e muito interessante. Completo, complexo e cheio de vozes marcantes. Vasto na diversidade das vozes e nos impactos que causa. E, por tudo isto, memorável à sua maneira singular. Assim é esta antologia que abrange uma história inteira. E que é nitidamente um livro a que valerá a pena regressar.

domingo, 6 de junho de 2021

Heather, Absolutamente (Matthew Weiner)

Mark e Karen Breakstone construíram uma vida perfeita. Ele ganha bem, embora nunca tenha alcançado o auge do sucesso com que sempre sonhou. Ela encontrou na filha, Heather, alguém em quem depositar todos os seus sonhos e ideais. E Heather tem realmente um brilho especial que não é visível apenas aos olhos dos pais. E, ao crescer, começa a atrair um tipo diferente de atenção. Radiante e bela, Heather atrai olhares onde quer que vá. Mas o perigo está mais perto do que julgam e as obras realizadas pelo vizinho de cima trazem para perto a presença de estranhos. E de um estranho em particular, cuja contemplação de Heather parece esconder intenções tenebrosas.
Um dos primeiros aspetos a sobressair no que diz respeito a este livro é a forma como, apesar da relativa brevidade, explora múltiplas perspetivas e questões pertinentes. A história oscila entre as perspetivas de Mark, Karen, Heather e Bobby, cada um com a sua própria personalidade e as suas próprias sombras. E oscila também entre meios contrastantes: a riqueza e a segurança que definem a vida dos Breakstone e o mundo de pobreza e violência de onde Bobby emergiu. Ora, com estes dois mundos em colisão e o poderoso contraste entre o ideal e o inimaginável, tudo insinua tragédia desde muito cedo. Mas a tragédia anunciada... não é a bem a que se espera.
Outro aspeto particularmente interessante é que, numa história que gira em torno de visões do ideal, nenhuma das personagens é propriamente ideal. Nem o casamento de Mark e Karen é perfeito, nem eles são exatamente o que queriam ser. A própria Heather, com a sua beleza radiante e empatia profunda, consegue transformar, a espaços, essa empatia em profunda crueldade. E quanto a Bobby, tudo é ambiguidade, pois esconde monstruosidades insuspeitas e sonhos quase infantis na mesma personalidade. O resultado é que nenhuma destas personagens é do tipo que desperta empatia imediata, não deixando, ainda assim, de, com as suas imperfeições e complexidades, despertar uma constante curiosidade.
É precisamente neste aspeto que a relativa brevidade faz com que fique uma ligeira curiosidade insatisfeita, pois o papel destas personagens acaba por surgir sempre em função dos outros intervenientes. A história de Bobby cinge-se sobretudo à promessa da tragédia iminente, mas fica a sensação de que mais haveria a dizer. E quanto a Heather, a sua totalidade só surge muito a espaços, quando a sua perspetiva consegue sobrepor-se à visão idealizada de todos os outros sobre ela. Não falta nada de essencial à história, em suma, mas fica uma ligeira impressão de que podia não se ter esgotado nas suas cerca de cento e cinquenta páginas.
Cheia de contrastes e de surpresas, trata-se, pois, de uma leitura relativamente rápida, mas memorável em muitos aspetos. Breve mas intensa, concisa mas complexa na construção dos laços, uma história de tragédia anunciada... mas com os seus matizes de inesperado ao longo de todo o percurso.

sábado, 5 de junho de 2021

Criminal - Livro Quatro (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Nascer num certo meio, com um determinado nome ou com certos amigos nem sempre é caminho aberto para uma vida de sucesso. Existem meios, nomes e amigos em que o caminho aponta inevitavelmente para uma vida de crime e de violência. Aqui, os negócios de família envolvem atividades pouco lícitas - ou nada lícitas mesmo - e quem se vê embrenhado nelas sabe que não existem verdadeiras saídas. Nem a prisão é segura. Nem a infância. Nem mesmo um sonho alternativo que acaba por se desfazer.
Sendo um dos elementos característicos desta série o equilíbrio entre a relativa independência de cada história e a intrincada teia de laços, intrigas e interesses que unem as várias personagens deste universo, uma das primeiras coisas a destacar deste volume específico é a presença de um novo laço. Bem, não totalmente novo, pois o universo do desenho e da banda desenhada já se tinha manifestado antes. Mas o elo comum é, desta vez, bastante mais evidente e, além de acrescentar um lado quase inocente aos desenvolvimentos, acrescenta também um poderoso contraste visual nas histórias (ou fragmentos de histórias) que surgem dentro do enredo principal.
Outro aspeto comum a todos os volumes, mas que surge aqui com um impacto diferente, é a desolação da inevitabilidade. Muitas das personagens parecem estar presas ao mundo em que nasceram, ou a que involuntariamente acabaram por ficar ligadas, mas tudo adquire um impacto maior quando a história e a perspetiva são as de um miúdo que não tem propriamente escolha. Além disso, ao não haver propriamente uma cronologia linear, pois só este livro passa por três épocas diferentes, todo o percurso realça a ideia de um círculo vicioso de crime que se perpetua por não haver alternativas.
O que me leva a outro ponto marcante: que, sendo embora um mundo de crime e de violência, não são os momentos de grande ação e conflito os que mais se entranham na memória. São os de um miúdo que sacrifica a inocência, de alguém que carrega aos ombros o peso de uma grande vergonha, de um espaço em que a única fuga é para o interior de uma história que não existe. Desolação, em suma, a mesma desolação que tão caraterística parece ser de tudo o que estes dois autores tocam.
Não são as histórias mais complexas deste universo e, ainda assim, não lhes falta nada. Têm inocência e emoção, esperança e desolação, expetativas e uma realidade inexorável. E violência e ação quanto baste, mas muito mais além disso. Encaixam, pois, perfeitamente no ciclo de sombras e de intrigas que é este tão fascinante universo. E, como todas as outras, ficam também na memória.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Divulgação: Novidade Saída de Emergência

Polónia, 1941. Róża e a sua filha de cinco anos, Shira, têm de se refugiar num celeiro quando os nazis iniciam a perseguição aos judeus. Escondida dia e noite, Shira tem dificuldade em permanecer quieta e em silêncio, com a música a percorrer-lhe o corpo e a quinta convidativa lá fora. Para a acalmar, Róża conta-lhe a história de uma menina num jardim encantado, onde um pássaro amarelo canta as melodias com que ela sonha. Neste mundo de fantasia, Róża consegue proteger Shira dos horrores que as cercam. Até ao dia em que o abrigo deixa de ser seguro e Róża tem de tomar uma decisão impossível: manter Shira ao seu lado ou afastar-se para lhe dar uma hipótese de sobreviver.

Jennifer Rosner é autora de vários livros para crianças. A Melodia do Pássaro Amarelo é a sua estreia na ficção para adultos. Os seus trabalhos já foram publicados no The New York Times, The Massachusetts Review, The Forward, entre outras publicações. Para além de escrever, é professora de Filosofia.
Estudou na Universidade de Columbia e de Stanford. Vive com a família no Massachusetts.

 

terça-feira, 1 de junho de 2021

Roma Obscura (Luis Manuel López Román)

A cidade de Roma esconde no seu seio todo o tipo de perigos, desde as complexas intrigas das diferentes fações políticas, que implicam muitas vezes consequências fatais para o lado perdedor, às mais aparentemente simples rixas de taberna causadas por uma frase mal interpretada. Mas existem ainda outros tipos de perigo, mais tenebrosos e incompreensíveis, alimentados - ou interpretados - à base das superstições da maioria. É a este mundo que Marco Lemúrio pertence. Há quem lhe chame bruxo, feiticeiro, caçador de licantropos, charlatão, vigarista. E talvez seja um pouco de tudo isso. Mas tem também um legado de conhecimento e de sangue e é por isso que sabe que nem todas as histórias de fantasmas são contos para assustar crianças ou explicar o inexplicável. Sabe que as sombras existem e os feiticeiros também. E, ao que tudo indica, anda um à solta na cidade.
Provavelmente o aspeto mais cativante deste livro - e diga-se de passagem que não lhe faltam aspetos cativantes - é a forma como transpõe para um mundo que é, por si só, bastante complexo um conjunto de elementos sobrenaturais sem com isso tornar a história demasiado obscura ou irreal. A possibilidade da existência da feitiçaria, a presença de poderes sobrenaturais e o inevitável confronto com esses poderes conjugam-se com a intriga política, as diferenças sociais e até um contexto histórico que deixou as suas marcas no protagonista de forma equilibrada e natural, o que proporciona uma leitura surpreendentemente leve, tendo em conta as complexidades do sistema.
Outro ponto particularmente notável é a construção do próprio Marco Lemúrio. Não é, à primeira vista, o tipo de personagem com a qual se espera sentir uma empatia imediata. Frequentador assíduo de tabernas e prostíbulos, com uma ocupação no mínimo duvidosa e uma vida gerida entre a preguiça e o vício, não é propriamente um cidadão romano exemplar. Mas esta primeira impressão vai-se gradualmente esbatendo para revelar uma figura mais complexa e muito mais moralmente reta do que seria de esperar. Não é um herói perfeito, nem poderia ser, com as sombras que o acompanham. Mas as particularidades do seu percurso vão revelando qualidades insuspeitas na sua personalidade.
E há, claro, o mistério propriamente dito, que Marco tem de resolver, não só por motivos financeiros, ma também por interesse pessoal. Por múltiplos interesses pessoais, aliás, sendo um deles salvar a vida. E, não querendo revelar demasiado sobre os desenvolvimentos, sobressaem dois aspetos: o crescendo de intensidade que culmina num final poderosíssimo; e as várias perguntas em aberto que, não dizendo respeito ao caso específico, que é basicamente independente, deixam uma enorme curiosidade em saber o que se segue relativamente a esta saga.
Intrigante, intenso e viciante, trata-se, em suma, de um livro cheio de surpresas. Da verdadeira natureza do protagonista aos inesperados desenvolvimentos na teia de intrigas que é a Roma desta saga, sem esquecer os surpreendentes momentos de ternura, tudo prende nesta história, da primeira à última página. Mal posso esperar para saber o que se segue na vida de Marco Lemúrio.