quarta-feira, 28 de abril de 2021

Armazém Central: Marie (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp)

É ao Armazém Central de Félix Ducharme que todos os habitantes da aldeia de Notre-Dame-des-Lacs vão buscar tudo aquilo de que precisam, o que significa que, além de ser o local onde tudo pode ser comprado, o armazém tornou-se também numa espécie de centro da comunidade. Só que agora Félix Ducharme morreu e a única pessoa a tomar conta do armazém é a sua viúva, Marie. Assoberbada por pedidos e responsabilidades, Marie tenta encontrar uma forma de prosseguir sozinha. Mas nem mesmo o apoio de uma comunidade coesa - ainda que também com todos os atritos e maledicências de um meio onde tudo se sabe - parece capaz de lhe tornar o trabalho mais leve. E há tanto trabalho para fazer...
Um dos aspectos mais impressionantes nesta série é a forma como, a partir de uma história que não é feita nem de grandes dramas nem de grandes momentos de acção, sei vai moldando uma visão completa - e sobretudo muito cativante - da vida nesta comunidade. Os desenvolvimentos nascem sobretudo das pequenas coisas - uma perna partida, um ciúme injustificado, alguém que morreu de velhice, alguém que se afastou da fé - mas formam uma teia tão coesa como a comunidade que os protagoniza. E, embora sendo uma história de vidas quotidianas, não deixa de estar repleta de momentos marcantes.
Outro aspecto a sobressair é a precisão com que retrata a vida em meios pequenos, nas qualidades e nos defeitos. Qualidades como o espírito de entreajuda, a forma como toda a aldeia converge para consolar quem perdeu alguém, a partilha dos momentos de alegria e a certeza de haver sempre alguém a quem recorrer. Defeitos como o alastrar furioso dos rumores, os julgamentos excessivos, o choque ante qualquer novidade e as limitações de uma vida onde há coisas que são inevitavelmente inacessíveis. É Notre-Dame-des-Lacs nos anos 20 do século passado, mas há coisas que continuam a ser muito actuais. E também esse reconhecimento contribui para tornar a leitura tão cativante.
Finalmente, e olhando agora para a arte, evidencia-se uma vastidão insuspeita. É que, ao fundo de cada momento central, há toda uma imensidão de pormenores a descobrir, seja em coisas tão simples como as brincadeiras das crianças ou em presenças tão discretas e oportunas como a do gato que aparece na capa e que, ao longo do livro, nunca deixa de ser uma presença expressiva e ternurenta. Além, claro, da expressividade de certos momentos: as lágrimas nos olhos de Marie, o desconcerto de Gaetan, a inesperada revelação das ideias luminosas do padre. Tudo ganha vida nas páginas e, seja no humor ou na emoção, tudo deixa a sua marca.
É, pois, uma história de pequenas coisas que convergem em toda uma vida: a vida de uma comunidade feita de singularidades e, sobretudo, de gente notável e de corações cheios de vida. Visualmente encantador e cheio de momentos notáveis, um livro memorável em todos os aspectos.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Um Auto de Gil Vicente (Almeida Garrett)

Prepara-se a encenação das Cortes de Júpiter, um auto escrito por Gil Vicente para celebrar a partida da infanta D. Beatriz para a sua nova vida como duquesa. Mas, se o auto promete comédia, já as emoções que se movimentam nas sombras são bem menos sombrias. É que, com a muito relutante mas abnegada colaboração da filha de Gil Vicente, Bernardim Ribeiro vive os últimos momentos do seu amor proibido com a infanta. E está decidido a que o seu último adeus seja dramático e memorável - nem que para isso tenha de se infiltrar no auto...
Menos célebre, talvez, do que Falar Verdade a Mentir, a tão conhecida peça que muitos de nós estudaram na escola, esta é uma peça que assume um registo algo diferente. Embora tenha também os seus rasgos de leveza e de humor, a linha geral do enredo é muito mais dramática, com uma teia de amores proibidos, movimentações secretas e até declarações de amor tragicamente eloquentes. Não perdendo de vista, é certo, um certo tom de crítica - ou não fosse o amor proibido da infanta com Bernardim um perfeito reflexo de como as aparências e o estatuto ditam a suposta pureza de uma reputação. Ainda assim, é o drama que tudo move e o resultado é uma leitura muito mais sóbria, ainda que também pautada por uma saudável dose de estranheza.
Situada no reinado de D. Manuel I, pretende também retratar as movimentações da corte, o que significa um grande número de personagens e também uma algo surpreendente componente descritiva. Ora, isto torna o texto mais pausado, pois, mesmo imaginando as indicações transpostas para um cenário, também os longos diálogos têm o seu quê de caracterização introspectiva. Fica-se, porém, com uma visão mais clara das coisas, o que, mais do que em comportamentos e cenários, acaba por ter um impacto particularmente forte ao debruçar-se sobre as ambiguidades do coração. De Bernardim e da infanta, claro, mas... não só.
Importa ainda fazer referência aos textos iniciais, do autor e dos editores, que, não sendo cruciais para a leitura, permitem uma maior contextualização da obra no seu tempo, bem como uma breve reflexão sobre o estado do teatro português na altura em que ela foi escrita. Também estes textos são pausados, até porque oscilam entre a crítica e a explicação, mas contribuem para uma visão mais completa da obra e do seu contexto. E, sendo assim, não podem deixar de ser interessantes.
São menos de cem páginas, mas não lhes faltam pontos de interesse, quer na caracterização da obra, quer no drama propriamente dito. E assim, apesar de relativamente pausado, não deixa nunca de ser um livro cativante, sobre dramas e amores proibidos... e também sobre teatro, poesia e emoção.

domingo, 25 de abril de 2021

Noites Azuis (Joan Didion)

Noites azuis, diz-se, são as noites de longos crepúsculos que preparam a chegada da escuridão, noites em que a luz se demora, mas que anunciam também a sua morte. E são estas noites azuis - alerta para as trevas que se aproximam - que servem de base a um livro feito de memórias, mas que não é só memória, mas também reflexão sobre o abandono, a mortalidade e o envelhecimento. E é uma história também: da autora, das pessoas que, ao longo do tempo, povoaram a sua vida e das suas muito pessoais noites azuis.
Sendo, acima de tudo, um registo muito pessoal de emoções, experiências e impressões da autora, este não é propriamente um livro fácil de descrever, até porque o seu registo impressionista faz com que, também aos olhos de quem o lê, sejam mais as impressões que ficam no pensamento, e não algo que possa ser descrito de forma absolutamente palpável e linear. É um livro que vive de memórias, e a memória tem os seus ritmos peculiares. E, apesar de pessoal e intransmissível, não deixa de despertar também impressões de proximidade.
Um óbvio aspecto que se destaca é, ainda assim, a escrita propriamente dita, pois a voz da autora parece reflectir na perfeição o impacto dos temas que pretende abordar. Fala do envelhecimento, e evoca - não só nas memórias, mas na própria construção das descrições - fragilidade, confusão, nostalgia. Fala de morte, e reflecte não só toda a dor e tristeza, mas também as diferentes formas de assimilar a perda - ou de viver com ela. Fala de família e de abandono e recua à infância da filha para traçar uma teia de impressões complexas, mas onde é fácil encontrar pontos de identificação. Tudo com laivos de introspecção e de poesia que fazem com que a leitura pareça, a espaços, quase uma conversa intimista.
São, curiosamente, os aspectos mais ambíguos - ou mais vagos, poder-se-á dizer - que acabam por ter mais impacto, e não tanto aqueles em que figuras específicas assumem mais protagonismo. Também isto resulta um pouco do facto de serem memórias pessoais, e vindas de um meio muito específico, pelo que é mais a ligação que essas pessoas têm com a autora, e não os seus próprios percursos, que realmente chama a atenção. E são também esses momentos - viagens, ensaios, festas - os que parecem mais distantes, criando um contraste interessante com aqueles em que as emoções vêm à tona.
Introspectivo, pausado, mas surpreendentemente poderoso na sua reflexão sobre o envelhecimento e a perda, trata-se, pois, de um livro mais de impressões do que de enredos, mas capaz, ainda assim, de despertar emoções intensas. E, num livro como este, tão pessoal e tão poético, basta isso para o fazer ficar na memória.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Procura-se Lucky Luke (Matthieu Bonhomme)

Procura-se Lucky Luke. Vivo. É essa a indicação que parece ter-se espalhado por toda a parte. E a recompensa pela sua captura não é nada pequena, o que significa que não faltam interessados. Desde velhos inimigos a jovens empreendedoras, Luke vê-se subitamente obrigado a seguir por sendas ainda mais solitárias a fim de evitar a perseguição por um sem fim de adversários. Só que, como bom herói, não pode ver uma donzela em perigo, e muito menos três. Assim, ao cruzar-se com três belas mulheres em circunstâncias delicadas, sente-se obrigado a acompanhá-las até ao seu destino, protegendo-as, tanto quanto possível, dos perigos. Só que nem elas são apenas donzelas indefesas, nem a delicada situação de Luke é exactamente o que parece. E a explicação virá de onde menos se espera...
Sendo protagonizada por uma figura sobejamente conhecida, para não dizer mesmo intemporal, não é propriamente uma surpresa a facilidade com que se entra nesta nova aventura. Basta a familiaridade da personagem, associada à peculiaridade das suas circunstâncias, para querer saber o que causou essa situação e, principalmente, como será que Luke se vai livrar dela. E, se juntarmos a isto a expectável sucessão de reviravoltas, momentos de acção e... bem, tiros em abundância, o resultado é, no mínimo, muito interessante.
Há, ainda assim, dois aspectos específicos que importa salientar (e que ganham outro sentido após a leitura da entrevista incluída no final do livro): a presença de velhos inimigos, que cria ligações com outras aventuras e (para quem não as leu ainda) a vontade de as conhecer; e o duplo sentido da avidez com que as diferentes personagens querem deitar a mão a Lucky Luke. São dois aspectos curiosos que, além de acrescentarem intensidade à história, estão na base de alguns dos momentos mais interessantes de todo o enredo.
Quanto à linha do enredo propriamente dita, é aparentemente simples (até porque é uma leitura relativamente breve), mas esconde toda uma abundância de momentos memoráveis, tanto a nível de desenvolvimento das personagens, com rasgos de humor deliciosos a envolver a "palhinha" de Luke, como do próprio enredo, com a forma como tudo termina a ter um inesperado impacto emocional.
Finalmente, importa referir também dois pontos ao nível do aspecto visual: o movimento, que é particularmente interessante na forma como equilibra uma certa convergência de múltiplos adversários para o mesmo ponto; e a cor, sobretudo na forma como dá vida aos cenários desérticos e contribui também para pôr em ordem os momentos com mais potencial para confusão (nomeadamente, a já referida convergência de adversários).
Não é preciso conhecer profundamente a história de Lucky Luke para desfrutar desta aventura. Mas se, como eu, ainda conhecerem poucas das deambulações deste cowboy solitário, acreditem... vão ficar com vontade de as conhecer a todas. E esse é apenas um dos mais interessantes efeitos secundários desta leitura breve, mas muito empolgante e surpreendente.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Uma Hora de Vida (M.J. Arlidge)

Tudo começa com uma chamada perturbadora. Uma voz inquietante, desconhecida, com um anúncio aterrador: «Tens uma hora de vida.» A vítima é um homem de sucesso, mas foi em tempos um adolescente assustado, parte de um grupo de jovens que, numa mistura de sorte e de coragem, conseguiu escapar a um assassino sádico. A ameaça é clara e a morte parece ter regressado para reclamar os anos conquistados na fuga. No dia seguinte, Justin é encontrado morto. Mas será o responsável o mesmo assassino do passado, cujo derradeiro fim é mera especulação? Cabe à inspectora Helen Grace seguir as pistas e desvendar o mistério. Mas o assassino parece ser um dos mais perigosos que já enfrentou e estar sempre um passo à sua frente. Principalmente porque a sua equipa já não é tão coesa como em tempos foi...
Há algo de absurdamente impressionante na forma como, após nove volumes e toda uma sucessão de dramas, intrigas, tragédias e perdas, esta série nunca deixa de surpreender. Se a protagonista é familiar, já as suas circunstâncias parecem ser um turbilhão de incessante mudança. Se há figuras cuja presença e atitude se tornaram relativamente expectáveis, como é o caso da sempre fascinante e odiosa Emilia Garanita, já os seus novos passos nunca deixam de expandir os limites daquilo de que ela é capaz. E há sempre desenvolvimentos para todos os elos comuns, desde as conturbadas relações na equipa de Helen ao percurso pessoal dos que lhe são mais próximos.
Junte-se a isto um caso alucinantemente frenético, em que o único aspecto previsível é o facto de ser, como sempre, uma corrida contra o tempo, e é basicamente impossível parar de ler. As páginas voam ao ritmo da intensidade devastadora dos acontecimentos. Cada capítulo é uma teia de possibilidades em suspenso para o que se poderá seguir. E, à medida que as revelações se vão sucedendo, é tão forte o impacto das surpresas, não só em termos de caso, mas também de percursos pessoais, que é simplesmente impossível não ter a sensação de estar lá a assistir - e a participar - em tudo.
Como é habitual nesta série, o caso central tem neste livro o seu início e o seu fim. Já quanto ao percurso das personagens - Helen, Charlie, Joseph, Emilia -, há coisas que ficam em aberto, o que tem dois efeitos interessantíssimos. Primeiro, reforçar as ligações que vêm de trás e a evolução que as várias personagens foram sofrendo ao longo da série. E, segundo, deixar em aberto alguns fios que fazem com que - apesar de ainda não ter sido publicado - seja irresistível a vontade de ler o próximo volume. O mais rapidamente possível.
Com as suas personagens marcantes e a sua história empolgante, nunca deixa de surpreender, seja nos desenvolvimentos do caso ou no percurso pessoal da protagonista. E, com o seu ritmo frenético, a intensidade avassaladora e a sempre fascinante complexidade de Helen Grace, transporta-nos para o interior de uma corrida contra o tempo da qual é extremamente difícil sair a meio. Intenso, viciante, frenético e devastador, prende logo às primeiras frases e é impossível de largar antes do fim. E tudo isto o torna memorável. Irresistível. Magnífico.

domingo, 18 de abril de 2021

Tristia [um díptico e meio] (António Cabrita)

Nasce numa conjugação de tempos, de extremos históricos - presente próximo e passado longínquo - unidos por fios cuja descrição se afigura, por vezes, impossível. Heitor e Andrómaca deambulam por paisagens actuais, sem estarem verdadeiramente presentes, mas parecendo afirmar-se em cada pensamentos. E também as imagens se confundem entre o palpável e o onírico, entre o estranhamente real e o absurdamente impossível. Tal como as palavras, ora insondáveis, ora brutais, ao ritmo de uma evocação longa e livre, mas onde parece existir uma cadência subjacente.
Não é propriamente fácil descrever este livro. Há características bastante vincadas - os poemas maioritariamente longos, a liberdade de uma poesia sem rima e em que o ritmo parece ser o da consciência, o contraste entre cenários directos e percepções maioritariamente imaginárias - mas a verdade é que o todo parece formar algo de diferente que se sobrepõe a tudo isto. Ao longo da leitura, as imagens vão-se entranhando no pensamento, as referências vão-se dando a conhecer. E, ainda assim, a impressão que fica é mais de sensações do que de descrições palpáveis, o que faz com que a imagem resultante seja bastante difícil de descrever.
Há, ainda assim, um ponto bastante evidente nestas mais de trezentas páginas: a união. E é uma união surpreendente, tendo em conta não só a extensão do livro, mas também o facto de ser dividido em três partes - ou talvez, seguindo a lógica do título, duas e meia. A divisão é clara: na primeira domina Heitor, na última a Arca, na intermédia o insondável Quíron. E estas figuras dominantes, elo de ligação entre cada uma das secções, podem ter as suas diferenças e mover-se em meandros distintos, mas há um elo também indescritível - a voz do próprio autor, talvez? - que faz com que este díptico e meio se constitua em unidade. Cada peça é um todo completo - mas, juntas, formam um todo maior a que todas as peças pertencem.
É um livro longo, e às vezes chega a ser desconcertante na estranheza das imagens que evoca. O mundo em que as figuras se movem é tudo menos linear, tal como as próprias figuras não o são. E, assim, é impossível não ficar com uma certa sensação de estranheza, já que a visão global é difícil de assimilar e as suas pequenas partes estão cheias de contrastes. Não deixa, ainda assim, de ser impressionante, até porque não faltam versos notáveis ao longo deste extenso volume.
Feito de impressões e de imagens difíceis de descrever, trata-se, pois, de um volume extenso, mas sempre surpreendente na sua vastidão por vezes insondável. E de um conjunto equilibrado, cuja totalidade é também uma odisseia, mas em que cada parte vale também por si mesma. Vale a pena embarcar nesta estranha viagem.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

A Cor Azul (Jaime Soares)

Azul. Do céu, do mar, de luzes que se acendem, de um sabão que serve de marcador, de fenómenos estranhos e de pedras preciosas. Azul também de melancolia e das consequências que ficam depois dos golpes da vida. Azul, presença discreta em histórias com todas as cores do mundo - mas que têm, ainda assim, também nas palavras uma melancolia azul. São de azul os dois contos deste livro - e de um azul mais sentido do que visível.
O primeiro conto, Tesouro, parece expandir-se pelos labirintos de múltiplas formas. Conta a história de um casal de agricultores, ele apegado à terra, ela desejosa de partir para a cidade. E conta também a história de um casal que se vai afastando, de desconfianças moldadas à base de segredos e de um elemento mítico que, aparentemente imaginado, assume outras formas com o desfiar das revelações. Mantém sempre um registo algo ambíguo, como que pretendendo deixar ao leitor as derradeiras conclusões, mas nunca deixa de cativar no contraste entre a intensidade crua de alguns momentos e os laivos quase introspectivos que entre eles se vão cruzando.
Já o segundo conto, Contrato, história de uma investigadora cuja carreira está prestes a chegar ao fim, mantém os mesmos contrastes transpostos para outro cenário e outra vida. Os acontecimentos são bem menos enigmáticos, já sem a presença de uma inefável moira encantada, mas não deixam de ter, ainda assim, o seu lado inesperado, a contrastar com a melancolia que parece definir o percurso da protagonista. Mantém-se também a ambiguidade, mas uma ambiguidade que faz sentido, pois parece evocar um percurso que não se esgota nas partes que são contadas.
De ambos os contos, sobressai ainda a relativa brevidade e o contraste entre as suas poucas páginas e uma escrita tão complexa e enigmática como o percurso das personagens que a habitam. Complexa, mas não na forma, que flui com naturalidade, e sim no tipo de imagens que evoca durante a leitura, surpreendentes e inefáveis como o toque de mistério que as parece envolver.
Muito breve, mas sempre cativante, trata-se sobretudo viagem aos labirintos da mente. Tem como base uma cor, mas expande-se para lá dela. E, feita de contrastes, de surpresas e de enigmas, fica na memória bem depois de terminada a breve leitura. Vale, pois, a pena explorar mais esta cor.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Divulgação: Novidade Saída de Emergência

Quem é Benjamim Tormenta, o famoso detetive do oculto que se move na Lisboa do século?
 
Benjamim Tormenta. Figura elegante e misteriosa, tanto é avistada nos salões luxuosos da capital como nas ruelas decadentes de Alfama, em palacetes de Sintra ou casas de ópio de Macau. Cruzando-se com figuras como o rei D. Luís, Fontes Pereira de Melo ou Eça de Queiroz, ele usa as suas habilidades na Lisboa secreta: a dos deuses negros convocados por burgueses ociosos, das aberrações vindas do outro lado do Cosmos, dos livros amaldiçoados e da mais perigosa sociedade secreta do império português: a Irmandade da Serpente Verde. O que poucos sabem é que também Tormenta esconde um segredo tenebroso. Preso no seu corpo pela magia de muitas tatuagens está um demónio milenar que se quer soltar e espalhar a destruição, primeiro em Lisboa e depois no mundo.
 
Luís Corte Real fundou a Saída de Emergência em 2003. Desde então criou a Coleção Bang! (que lança em Portugal os melhores autores de fantástico da atualidade e muitos clássicos) e a Revista Bang! (uma publicação semestral e gratuita dedicada à fantasia, FC e horror). Também editou autores como a Nora Roberts e Mark Manson, mas vocês não querem saber disso.
As paredes de sua casa estão ocupadas por todo o tipo de livros, banda desenhada, manuais de Dungeons & Dragons e Call of Cthulhu, jogos de tabuleiro, action figures e mais caixas de Lego do que aquelas que consegue montar. O Deus das Moscas Tem Fome é a sua primeira obra — uma espécie de X-Files na Lisboa de Eça de Queiroz, com influências que vão de H. P. Lovecraft e Arthur Conan Doyle a Mike Mignola.

terça-feira, 13 de abril de 2021

A Burning Sea (Theodore Brun)

Partir era a sua única opção, mas não foi o fim das suas tribulações. Pois, tal como já lhe havia sido dito anteriormente: "Suportarás muita dor, mas jamais quebrarás". Agora, Erlan vê-se perante uma nova perda: os seus dias enquanto homem livre terminaram, sozinho numa terra estranha. A sua amada, porém, que ficou para trás como fiel e cumpridora rainha - e em segurança - perdeu também o seu estatuto e enfrenta grandes perigos. Desesperada, segue o rasto de Erlan, na esperança de que os seus caminhos se voltem a cruzar. Mas novas provações os aguardam... e mais dor. Mais batalhas. Mais perdas.
Parte da magia desta série é que cada novo volume transporta-nos para algo que é simultaneamente familiar e novo. Temos as mesmas personagens, mas as suas circunstâncias mudaram. As suas almas permanecem iguais, mas novos lugares e novas dificuldades abrem a porta a novas aventuras. E, assim, o que obtemos é todo um conjunto de novas intrigas, batalhas e provações protagonizadas por um leque de pessoas que já aprendemos a amar.
Embora familiar em personagens e em voz, é também um livro cheio de surpresas. Um novo cenário e um novo conjunto de circunstâncias dão origem a toda uma nova sucessão de conflitos e dramas, perdas e descobertas, momentos de leveza e de devastação emocional. E, rodeado por sombras, perigos e dúvidas, Erlan terá de encontrar, uma vez mais, novos sentidos para o seu caminho e para a sua identidade. Levando-nos numa viagem onde é impossível não sentir por e com ele.
E há tanto para sentir! Pode estar tudo mudado, do cenário às circunstâncias, mas há algo que permanece igual: a intensidade emocionalmente devastadora provocada por estas personagens e pelas suas tribulações. Há amor e perda, fé e magia, honra e traição, além de todo um novo labirinto de intrigas. E, através de tudo isto, um turbilhão de surpresas onde ninguém é poupado. Nem mesmo o leitor. Principalmente o leitor.
Quanto ao final... é, como habitual, cheio de surpresas, revelações e de uma intensidade devastadora. E, mais uma vez, não parece ser uma conclusão definitiva, mas o fim de uma fase após a qual um novo caminho terá de se abrir para o nosso sempre fascinante vagueante.
Intenso, devastador, fascinante e belo, é impossível não se ser puxado para o interior desta história. E senti-la. E vivê-la. E lembrá-la para sempre. Infinita e inesquecível, resume-se, pois, a isto: pura implacabilidade. E puro génio.

segunda-feira, 12 de abril de 2021

O Salteador da Infância Perdida (José Jorge Letria)

É na infância que se começa a moldar aquilo em que nos tornaremos, em que influências, presenças e afectos começam a dar forma aos valores que nos acompanharão durante a vida. É também na infância que a imaginação se abre, pois tudo é possível, todas as explicações são aceitáveis e até a mais simples das histórias nos pode fazer sonhar. É a infância que, chegados à idade adulta, nos transporta, nas asas da nostalgia, de regresso à inocência e ao tempo dos grandes sonhos. E é para uma infância pessoal e transmissível - mas capaz de evocar todas as infâncias - que este livro nos transporta também.
Sendo embora um relato muito pessoal, das memórias do autor e das suas próprias experiências, um dos aspectos mais cativantes deste livro é a facilidade com que apela às nossas próprias memórias. Todos tivemos uma infância e todos guardamos tesouros - ainda que apenas em pensamento - desse tempo. E assim, embora estas memórias sejam pessoais, há nelas uma certa familiaridade, não nos acontecimentos, mas nos sentimentos e nas percepções. Até porque a história pode ser muito diferente para cada um de nós, mas há sempre elos comuns: laços de família, imaginação hiperactiva, a descoberta das palavras e do amor aos livros, aos animais, aos valores que nos fazem mover. É uma memória singular, mas com um toque de universal. E é esse delicado equilíbrio o que mais de marcante existe neste livro.
É, talvez, surpreendentemente breve, já que, atrás do fio destas memórias, parecem existir outras histórias - a começar pelo óbvio percurso posterior - que ficam apenas pela sugestão. Ainda assim, faz um certo sentido que assim seja, pois é da infância que se trata e das recordações necessariamente fragmentárias que ficam desse período. Além disso, embora feitas de momentos, estas memórias não deixam de convergir num todo coeso, que, construído a partir das memórias, projecta, ainda assim, como quase personagem, a figura do passado do autor.
Finalmente, importa referir a própria voz do texto, introspectiva e nostálgica, além de bastante poética, mas sem perder de vista o equilíbrio entre a narração das memórias e os sentimentos por estas evocados. Não faltam frases memoráveis e momentos enternecedores, apesar da relativa brevidade do texto. E há, além disso, um claro cuidado em abrir espaço para a reflexão e a imaginação, mas sem perder de vista a realidade.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura breve, mas vasta nas evocações, pessoal, mas com uma ligação intangível à infância de todos nós, e envolvente na forma como entrelaça memórias e pensamentos. Uma boa leitura, em suma, sobre a infância perdida... mas sempre recordada.

domingo, 11 de abril de 2021

Segredo Mortal (Bruno M. Franco)

Uma inundação massiva, e estranhamente localizada, que deixa para trás centenas de cadáveres e cuja única explicação possível parece estar nas alterações climáticas. Um crime macabro, cujo autor deixou para trás um puzzle construído com as partes do corpo de múltiplas vítimas. Um rapaz com uma vida normal, que se vê subitamente catapultado para uma fuga para limpar o nome e salvar a vida. E, a unir tudo isto, uma dupla de investigadores com laivos de génio, mas também com vulnerabilidades suspeitas. Qual é, afinal, o Segredo Mortal que une todos estes elementos? E que perigos mortais reserva aos envolvidos?

A principal característica a destacar-se deste livro e a única que, a partir de determinada altura, é fácil de deduzir, é o facto de nesta aventura nada seguir pelo caminho mais fácil ou previsível. Ninguém é o que parece. Os planos nunca seguem o rumo previsto. E, à medida que o enredo se adensa e a necessidade de agir antes que seja tarde se vai tornando mais imperiosa, também a leitura se torna mais e mais viciante, ao ponto de, na fase final, ser impossível largar o livro.
Não há muito que se possa dizer sobre o enredo propriamente dito sem estragar algumas das surpresas. Existem, ainda assim, alguns elementos que importa salientar. Primeiro, o cruzamento entre o que são inicialmente vários casos distintos e também entre os vários pontos de vista das diferentes personagens, o que contribui para intensificar o mistério e também as grandes revelações. Depois, a mistura entre elementos de investigação policial pura e dura e outros que quase parecem saídos de um romance de ficção científica, o que torna a história mais complexa. E, finalmente, o intrigante equilíbrio entre o desenvolvimento dos acontecimentos centrais e os elementos da vida pessoal das personagens, que torna tudo mais emocionante.
O que me leva às personagens propriamente ditas e a outra construção particularmente eficaz. Na fase inicial, parece ser relativamente fácil identificar heróis e vilões, mas a entrada em cena de novas personagens faz com que essa fronteira se vá esbatendo. Além disso, mesmo nas personagens que são nitidamente os heróis há uma certa ambiguidade que as humaniza. Isto é particularmente evidente em Leonardo, cuja personalidade às vezes irascível contrasta com os seus momentos de vulnerabilidade, e que é tão perfeitamente capaz de cativar como de irritar. E, quanto à situação de Carlos, esta ambiguidade é ainda mais delicada, pois as suas circunstâncias estão em constante alteração e há novas revelações à espreita capazes de darem a tudo uma perspectiva diferente.
Também sobre o fim não há muito que se possa dizer sem estragar a surpresa. Excepto isto: que, além de surpreendente, ganha um maior impacto por não ser límpido e perfeito, tal como o não são os protagonistas. Afinal, todos os acontecimentos passados têm de ter as suas consequências. E o autor consegue encontrar um bom equilíbrio para esta situação delicada.
Intensa, viciante e cheia de surpresas, trata-se, pois, de uma história intrincada quanto baste, mas onde tudo acaba por fazer sentido no final. E é também uma história de crimes imperfeitos, cometidos e investigados por gente extraordinária, mas com as medidas certas de vulnerabilidade a identificá-los como pessoas normais. Imparável e empolgante, um livro longo, mas impossível de largar.

sexta-feira, 9 de abril de 2021

Tex - A Chicotada (Pasquale Ruju e Mario Milano)

Há quem diga que a vingança é um prato que se serve frio e há também quem esteja disposto a tudo para a conseguir. Que o diga Diego Portela, que carrega no rosto as marcas de um suplício passado e que conseguiu finalmente reunir os meios para a sua vingança final. A única coisa com que não contava era com a entrada em cena de Tex Willer e do seu parceiro, que, seguindo a pista dos negócios ilegais do arqui-inimigo de Portela, acabam por se ver bem no meio do seu confronto final. Se haverá ou não vingança... bem, só o tempo e as armas dirão.
Algo que importa começar por referir sobre este livro é que é uma história bastante breve. Nas suas cerca de cinquenta páginas, tem de haver espaço para os confrontos, para as memórias do passado, para a construção das personagens e, claro, para os grandes momentos de drama e de acção. Tendo isto em conta, é, de certo modo, inevitável a sensação de que mais haveria a dizer sobre o percurso e o carácter das personagens, não tanto no caso de Tex (que é, afinal, o protagonista de muitas aventuras), mas sobretudo acerca dos elementos específicos desta história.
Ainda assim, e apesar das limitações trazidas pela brevidade, não deixa de haver um equilíbrio eficaz no que respeita ao essencial. Ao longo do caminho, há espaço para um pouco de tudo, desde as sombras do passado atormentado de Diego Portela às grandes e dramáticas trocas de tiros, passando por escolhas impossíveis, atitudes traiçoeiras e uma relação de companheirismo que contrasta com as maquinações de tudo o resto. Não importa realmente se havia mais a explorar, porque o essencial está lá. E o essencial - enredo, personagens e arte também - é muito cativante.
E, por falar em arte, há dois aspectos especiais que importa destacar, além da óbvia construção dos cenários, que parecem transportar-nos directamente para o centro da acção. O contraste entre momentos luminosos e sombrios, que se torna mais intenso por nem sempre corresponder à previsível dualidade bem/mal, e o elemento mágico, que, aparentemente discreto, tem, ainda assim, um papel decisivo nos acontecimentos e cuja figura central é uma das mais marcantes a nível visual. Não é a personagem mais expressiva, mas é a que tem uma presença mais definida... talvez também devido ao momento em que mais se manifesta.
Breve, mas cativante, trata-se, pois, de uma história capaz de conjugar, de forma relativamente sucinta, acção, drama e intensidade na história de uma vingança que assume proporções... inesperadas. Intenso e surpreendente nos momentos certos, um bom ponto de partida para conhecer Tex.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

O Oposto de Sempre (Justin A. Reynolds)

Jack King sabe que a sua vida é um cliché: eternamente apaixonado pela melhor amiga, que namora com o seu outro melhor amigo. Sabe que a sua vida é uma sucessão de quases e habituou-se a isso. Mas tudo muda quando, numa festa, conhece Kate, uma rapariga cativante, com um sentido de humor muito parecido com o seu e com quem se identifica praticamente de imediato. Seguem-se os melhores dias da sua vida, até que, súbita e inesperadamente, Kate morre. E, ainda incapaz de descobrir sequer como conseguir lidar com a sua perda, Jack sofre um acidente que o projecta... directamente para o passado e para a forma como tudo começou. Sem saber como nem porquê, Jack vê-se com uma nova oportunidade das mãos. Mas o que pode fazer de diferente? E que consequências terá isso para as outras pessoas que são importantes para ele?

Contado pela voz do protagonista e transbordante das suas emoções, este é um livro que marca, em primeiro lugar, pela intensidade emocional. Jack está ainda naquela fase indescritível em que tudo é possível, todas as coisas boas são brilhantes e todas as tragédias são o fim do mundo. Só que, no caso dele... bem, há uma boa medida de fim do mundo envolvido. Assim, é particularmente marcante a forma como o autor consegue gerar proximidade tanto nas pequenas coisas (como a partilha de um simples gesto de companheirismo entre amigos ou de afecto entre familiares), como nas grandes (como as sucessivas corridas de Jack contra o tempo. É uma história emotiva, que, por ter também sempre algo de memorável a acontecer, é também emocionante. E, assim, é impossível não querer continuar a ler para descobrir quais serão as próximas decisões de Jack.
É também uma história que aborda vários temas sérios, desde a doença de Kate à forma como o preconceito acaba por estar na origens de várias situações dramáticas. E, ainda assim, há sempre uma certa leveza, resultante de um equilíbrio eficaz entre os momentos mais dramáticos e os deliciosos rasgos de humor que vão surgindo pelo caminho. Além disso, há afecto genuíno nas relações entre estas personagens, e esse afecto transborda também, de certa forma, para o leitor. É quase como acompanhar Jack nas suas viagens pelo tempo. E torcer, sempre, para que a próxima vez corra melhor.
Importa, por fim, olhar um pouco para o final, que pode não ser, pelo menos em linhas gerais, o mais surpreendente - afinal, no que toca à situação central, só há duas alternativas - mas não deixa de ser o culminar de muitas pequenas surpresas. Além disso, numa história onde as relações parecem, por vezes, um pouco vacilantes, a forma como tudo termina não pode deixar de ser particularmente satisfatória.
Leve, mas cheia de emoção; dramática, mas com um sentido de humor encantador; simples nas suas linhas gerais, mas carregadinha de pequenas surpresas: assim é esta história de amor para além do tempo... e também de amizade, de afecto e do que nos torna humanos. Prende da primeira à última página e nunca deixa de emocionar. E, assim sendo, a soma das partes só pode ser uma: um livro muito bom.

domingo, 4 de abril de 2021

O Homem Mais Feliz do Mundo (Eddie Jaku)

Eddie Jaku nasceu em 1920, no seio de uma família judaica alemã. Tinha uma vida normal e um grande orgulho em ser alemão. Depois, o impensável aconteceu. O ódio chegou ao poder e não tardou a manifestar-se de formas atrozes. Inicialmente, sob uma identidade falsa, Eddie conseguiu manter uma relativa normalidade e completar a sua educação. Mas um inocente regresso a casa acabou por deitar tudo a perder. Detido, espancado, privado da sua identidade e da fé na humanidade, começava assim o seu contacto com o mais sinistro lado dos seres humanos. E, ainda assim, sobreviveu. E, após ter carregado em silêncio o fardo da sua experiência, decidiu finalmente contar a sua história.
É difícil não se ficar impressionado com a história de alguém que, após ter vivido horrores, diz ser o homem mais feliz do mundo. E é também incrivelmente admirável. Aos cem anos, Eddie conta a sua história com uma precisão aterradora, mas também no tom de um amigo que quer partilhar algo connosco e que aquilo que aconteceu nos acompanhe e ensine algo. É um tom positivo, quase alegre (no que diz respeito à sua vida posterior), capaz de nos lembrar do que verdadeiramente importa, do que persiste apesar do caos e do horror. E é por isso que a mensagem que fica não é de tristeza, mas de esperança. E é também por isso que este livro é tão marcante.
É também impressionante a forma como o autor conjuga esta aparente leveza - definida, talvez, pela escrita simples e pelo registo conciso com que narra os aspectos mais negros, num contraste com as mensagens positivas que conseguiu tirar dessas situações e que o mantiveram vivo - com uma descrição que não poupa pormenores quanto à brutalidade vivida. É assim que deve ser, para que, nos estranhos tempos que vivemos, em que o ódio parece estar novamente a ganhar fôlego, ninguém se atreva a esquecer das consequências da última vez. E, ainda assim, há um equilíbrio poderoso: a crueldade no seu máximo expoente contrasta com lições que, nas nossas vidas bem mais leves, não deixam de ser igualmente válidas: a importância dos gestos de bondade, da família, da amizade, da esperança. E se são válidas no pior dos cenários... são-o também nas pequenas coisas.
É uma voz simples, directa, mas de uma expressividade tremenda. E, numa história como esta, é simplesmente impossível não admirar a clareza com que se recordam experiências tão indescritivelmente difíceis, sem esbater o impacto duradouro das consequências, mas tentando sempre ver o bom da vida e das pessoas. É admirável, de facto, e um enorme apelo à reflexão sobre a fé no ser humano e a capacidade de não odiar - mesmo quando o ódio é contra monstros e parece justificar-se.
Não chega às duzentas páginas, mas abrange uma vida inteira, uma história aterradora e uma mensagem de vida simplesmente notável. E tudo isso - voz, percurso, mensagem - contribui para fazer deste livro uma leitura imprescindível. Para aprender. Para reflectir. Para nunca esquecer.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Espíritos dos Mortos (Richard Corben)

Edgar Allan Poe. Dispensa apresentações, não é verdade? Todos conhecemos, pelo menos vagamente, uma das suas histórias ou um dos seus poemas, seja o corvo com o seu eterno nunca mais, seja a tão actual morte vermelha, seja ainda Montresor com a sua terrível vingança. São múltiplas e variadas as adaptações que já foram feitas tendo por base a sua obra. Esta? Esta é particularmente notável, não só porque muitas das obras adaptadas são poemas, mas sobretudo porque realça em toda a sua sinistra glória a complexidade e a intensidade das sombras que habitam os contos e poemas deste autor.
Uma das primeiras coisas a salientar neste livro é o delicado equilíbrio que faz com que seja ao mesmo tempo uma adaptação relativamente fiel dos originais e uma perspectiva própria e singular. Sobretudo no que respeita aos poemas, como é natural, já que a transposição para um percurso visual contínuo (ainda que não necessariamente linerar, lhes confere imediatamente uma aura diferente. Mas tudo tem algo de novo, sem por isso divergir em demasia do material de base. Continua a ser Poe, mas Poe de uma forma diferente. E, por isso, é perfeitamente capaz de cativar recém-chegados à sua obra sem desiludir quem já a conhece de outras formas.
Para quem sempre gostou de Poe, é também um delicioso reencontro, complementado com facetas distintas, pois muitas destas histórias estão entre as obras mais conhecidas do autor. Ainda assim, há muito a desvendar nessas facetas distintas: começando pela enigmática figura que serve de elo de ligação às várias histórias, narrando-as, em parte, pela sua própria voz, e sem esquecer a forma como as paisagens sombrias e misteriosas, os rostos grotescos e a escuridão geral que parece transbordar das páginas evocam na perfeição não só o lado sinistro dos enredos, mas a tão conhecida sensação onírica de "sonho dentro de um sonho".
E, finalmente, mais Poe, porque, sendo a inspiração, é também uma presença inevitável. Texto e imagem podem seguir os seus próprios caminhos, mas continua a ser possível ouvir a voz de Poe, sobretudo nos excertos dos textos originais que, de forma perfeitamente natural, parecem fazer questão de salientar o laço que une original e adaptação. É uma adaptação diferente - mas continua a transbordar da vida que lhe deu origem.
Simultaneamente familiar e única no seu equilíbrio entre a fidelidade ao original e a perspectiva própria de uma visão mais brutalmente palpável, trata-se, pois, de uma adaptação notável da obra original de Poe. Uma visão visualmente mais sombria, mas igualmente complexa e poética. Igualmente memorável, em suma.