sábado, 30 de outubro de 2021

A Última Coisa que Ele Queria (Joan Didion)

Elena McMahon está habituada a reconstruir a sua vida sempre que se apercebe de que a que tem se transformou em fingimento. É, pois, quase por impulso que decide abandonar a campanha eleitoral que estava a acompanhar como jornalista a fim de ir visitar o pai. O que não sabe é a dimensão da intriga em que está prestes a entrar. O pai de Elena faz negócios de um tipo altamente secreto e duvidoso, mas uma doença imprevista acaba de o deixar incapaz de assumir o seu papel. Elena assume, pois, o seu lugar, longe de imaginar a magnitude do esquema em que acaba de se envolver. E não tarda a que tudo comece a descarrilar, num jogo de interesses e conspirações políticas onde não há verdadeiros inocentes e cada passo pode ter consequências fatais.
Apesar de não ser um romance particularmente extenso, este livro tem como uma das suas principais caraterísticas a complexidade. Complexidade na intriga, complexidade na dimensão das forças em jogo e complexidade na construção das próprias personagens. Assim, não é de admirar que a impressão inicial seja de alguma confusão, pois são muitas as coisas que há para assimilar e a autora tem uma forma muito própria de as descrever, ao ritmo da consciência da voz que narra e não numa linha temporal linear.
Ora esta singularidade torna a leitura um pouco pausada, principalmente na fase inicial, contribuindo para isso também a relativa ambiguidade, moral e não só, das personagens. Ainda assim, à medida que o enredo vai evoluindo e as ligações começam a tornar-se mais claras, a estranheza é substituída pela curiosidade e a ambiguidade inicial vai dando lugar a uma estranha empatia. Estranha porque todas as personagens têm uma faceta menos clara, mas intensa, a espaços, e sobretudo a partir do momento em que se torna evidente que uma história como esta jamais poderia ter um final perfeito e cor-de-rosa.
É certo que ninguém é totalmente inocente, mas não deixa de haver casos em que as personagens se envolvem em algo muito maior do que julgavam, o que desperta também uma certa simpatia face à sua posição. Mas há ainda um outro ponto marcante: é que o cerne da história pode estar na intriga política e nas teias dos negócios obscuros, mas há espaço para pequenos momentos pessoais que são particularmente poderosos. Acabam, aliás, por ser esses os que mais ficam na memória, ainda que entrelaçados numa intriga muito mais vasta.
Tudo somado, o que fica é a impressão de uma leitura singular, inicialmente desconcertante, mas que se vai entranhando pouco a pouco, abrindo caminho para a revelação das verdadeiras forças destas personagens e da desolação dos meandros em que se movem. Exige o seu tempo, sim, mas compensa. Amplamente.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Manifesto pela Leitura (Irene Vallejo)

Ler é uma espécie singular de magia, uma base para o crescimento, um conforto por entre as sombras, a possibilidade de viver mais vidas na brevidade de uma só. É companhia, é descoberta, é fuga e encontro, é potencial e materialização. É vida, em suma. E, se estão a ler isto, é provável que partilhem deste meu sentimento. Mas é também um espelho, uma forma de nos vermos refletidos noutras histórias, noutras pessoas (reais ou fictícias). E é um pouco isso que acontece ao ler este pequeno, mas maravilhoso, livro. Vemo-nos refletidos enquanto leitores e vemos que não estamos sozinhos na nossa paixão.
Chama-se Manifesto pela Leitura, e faz sentido que assim seja, pois é essencialmente um apelo à proteção desta tão nossa maravilha. "O que nos salva não pode desaparecer." Mas é também uma belíssima declaração de amor aos livros, daquelas que falam às profundezas do coração. Não faltam frases memoráveis, pensamentos que parecem avassaladoramente familiares, visões fáceis de entender e de reconhecer. Até porque, enquanto leitores, todos partilhamos muitas delas. E, além do apelo que constitui todo este livro - Salvemos o milagre -, há também nele uma muito viva lembrança do porquê de a leitura ser efetivamente um milagre.
A mensagem é, no fundo, muito simples: ler é essencial. Este livro faz, aliás, parte de uma iniciativa da editora que tem esse mesmo nome. E é particularmente impressionante como tudo neste pequeno livrinho nos recorda esse mesmo facto. Ao debruçar-se sobre as múltiplas vertentes da leitura - escapismo, propagação e preservação do conhecimento, conforto, descoberta, partilha - a autora lembra-nos o infinito potencial destes objetos tão simples mas, oh, tão vastos. E, assim sendo, fica uma dupla perceção desta muito breve leitura: para quem ainda não descobriu a força deste prodígio, é um convite à descoberta; para nós que a conhecemos e amamos, é uma lembrança de que não estamos sós neste amor.
Maravilhoso na escrita, inspirador na mensagem e reconfortante no que nos mostra de nós, trata-se de um apelo à ação e também ao coração. E de uma visão que, por ser tão próxima e tão bela, fica na memória para sempre.

NOTA: Para conhecer a iniciativa na origem da publicação deste livrinho, espreitem este site: https://www.lereessencial.pt/LerEEssencial/Index

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Está Quase! (Maryann Cocca-Leffler)

Conseguir fazer algo de novo implica os seus desafios, principalmente quando somos pequenos e ainda estamos apenas a aprender a viver. Todos nos lembramos da sensação de querer fazer tudo, mas, citando a publicidade, "faltar um bocadinho assim". E é sobre isso que fala este pequeno, sobre todas as vezes em que "está quase" e o que é preciso fazer para passar do quase à realização.
Sendo muito obviamente um livro infantil, ao lê-lo de uma perspetiva adulta, é quase inevitável que a primeira coisa a sobressair seja o facto de a mensagem não se esgotar nos mais pequenos. Todos temos - ou tivemos, pelo menos - alguma aspiração, algum sonho a realizar. E todos conhecemos a fase do quase, em que queremos, acreditamos que conseguimos, mas falta sempre qualquer coisa e temos de descobrir o que é preciso fazer. É verdade, não é? E se, na infância, estas coisas eram mais simples, agora já não o são tanto. Mas este pequeno livrinho lembra-nos o essencial: paciência, prática e determinação.
Por mais que apele ao lado inocente dos leitores adultos, não deixa, ainda assim, de ser um livro para crianças. E, assim sendo, há certas caraterísticas que são essenciais e em que este livro não desilude. A começar, naturalmente, pelas ilustrações, cheias de cor e de expressividade, transbordantes de ternura e de emoção. É impossível não ver as emoções a transbordar da página, pois, se os gestos são muito simples, as expressões da personagem dizem tudo. E são também como que uma muito rápida viagem à infância, pois evocam grande parte das primeiras aprendizagens: escrever, fazer contas, aprender a andar de bicicleta, a fazer um puzzle e simplesmente crescer.
Quanto ao texto, é muito simples, até porque as ilustrações dizem quase tudo, mas complementa-as na perfeição. Além disso, entre a rima e o ritmo, é basicamente perfeito para ler em voz alta, o que significa que também pode funcionar como uma belíssima ferramenta de incentivo e iniciação à leitura.
Muito simples, mas muito terno e cheio de cor e de emoção, trata-se, pois, de um livro carregadinho de inocência e de ternura. Perfeito para os mais pequenos e também muito agradável para recordar a infância.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Verões Felizes 1 - Rumo ao Sul! | A Calheta

Nem todas as histórias são feitas de grandes dramas, de teias de intrigas e de violência, de conspirações, segredos e acontecimentos apocalípticos. Não, algumas histórias são feitas de vidas normais, das pequenas alegrias, do amor, da amizade, da família, do quotidiano de um ano inteiro de trabalho e do auge de cada ano - as férias! Esta é a história de uma família com todas as suas tribulações, mas também com um espírito de união e de afeto capaz de pôr de lado as dificuldades para partir à aventura. Rumo ao Sul... e à felicidade.
É impossível falar de uma história como esta sem começar por referir algo que, não sendo propriamente tangível, basicamente transborda das páginas: ternura. E ternura de todas as formas e tamanhos, desde a inocência das crianças à emoção de uma união sólida na perda, passando pela capacidade de ver tímidos raios de sol mesmo perante sucessivas derrotas. Ternura, sempre e em toda a parte, feita de pequenos gestos, de simples expressões e de inesperadas figuras. Ternura que surpreende, que cativa, que comove... E, oh, se comove.
Começa, pois, pela emoção a lista de caraterísticas notáveis deste livro. Mas não se fica por aí. Visualmente, temos uma expressividade deliciosa nos rostos das personagens (que, às vezes, quase parecem estar a falar diretamente connosco). No enredo, temos um equilíbrio perfeito entre os momentos de humor, a simplicidade das pequenas coisas numa vida que é, apesar de tudo, complexa, e a já referida ternura transbordante. E na construção das personagens, temos o contraste entre sonho e realidade, as personalidades singulares e a relação coesa e marcante que se vai revelando aos poucos.
Ainda um último ponto que importa destacar é que, ao reunir duas histórias num só volume, os contrastes tornam-se mais acentuados. Cada verão é único à sua maneira, embora existam também paralelismos evidentes entre ambos, o que resulta num cativante equilíbrio entre coesão e singularidade. Além disso, ao não haver uma ordem cronológica linear, cria-se também outra impressão curiosa, no contraste entre o que a mesma personagem era em diferentes momentos e também na forma como a mesma caraterística acaba por se manifestar em diferentes personagens.
História de coisas simples que são, no fundo, as mais importantes, eis, pois, um livro que nos lembra o que verdadeiramente importa, levando-nos, ao mesmo tempo, à aventura com uma curiosa, cativante e deliciosamente enternecedora família. Muito bom.

domingo, 24 de outubro de 2021

Ofício (João Rasteiro)

A poesia, tal como o amor, tem razões que a razão desconhece. E tem meandros, labirintos, profecias, evocações, visões sagradas e profanas, promessas, introspeções, abismos. Mente, alma, coração, corpo, mundo, vácuo, eternidade. Tem tudo em mil formas insuspeitas - e atinge o auge da sua força quando todas estas coisas e mais ganham vasta e abrange voz nas palavras de um só poeta. Vinte anos de poesia - é isso que abrange este Ofício. E são vinte anos vastíssimos.
Não é, por natureza, fácil descrever um livro de poesia, e mais difícil se torna quando o conjunto é tão vasto e as imagens que contém vivem mais de impressões e de evocações do que de algo de concretamente descritível. Há referências familiares, um ambiente tangível: bíblico, a espaços, shakespeariano, por vezes, e outras ainda algo que diverge de tudo e se torna próprio e singular. Mas há, acima de tudo, imagens que se transpõem para a mente e que não são uma forma designável, mas mais como uma evocação mental no interior.
Não é fácil de descrever, portanto, e também não lhe faltam complexidades. Na linguagem, na estrutura, nas sinuosas imagens projetadas. É, de certa forma, como entrar num labirinto, difícil de assimilar por vezes, mas fascinante em todas as suas facetas. E é sinuoso, de facto, mas também muito coeso. Há laços que se replicam através desta longa viagem e uma sensação de que, mesmo que variem as formas, as temáticas, as imagens, a voz é una e singular. E facilmente reconhecível.
Importa referir, por último, ainda um outro ponto singular: a forma como, mesmo nos seus momentos mais crípticos, as palavras parecem adquirir uma vida própria. Não no sentido em que fluem levemente, pois há demasiada densidade para isso, mas no sentido em que se entranham, em que se projetam para o pensamento, em que evocam algo maior nos seus rasgos de brilhantismo. E assim, mais do que uma corrente fluida, fica como que uma figura multifacetada, com um lado indefinível, mas estranhamente cativante.
Vinte anos de poesia abrangem múltiplas obras, muitos temas, inúmeras evocações. E, ainda assim, a imagem que fica é de um todo coeso e completo. De um todo que é mais do que a mera soma das suas partes e que, na sua infinita complexidade, é mais que digno de uma atenta descoberta.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

História de Portugal à la Carte (António Botto Quintans)

Feita de grandes explorações e de igualmente grandiosas batalhas, dos meandros da sucessão dinástica e de intrigas que levam a alterações no poder, a história de Portugal é vasta e repleta de episódios notáveis. Mas e se os tempos colidissem? Se figuras, acontecimentos e referências dos nossos dias fossem transpostos para o passado, exercendo aí a sua peculiar influência? Quem sabe? Mas o resultado bem poderia ser este: uma série de episódios peculiares, sem qualquer semelhança com a realidade, mas, ainda assim, estranhamente divertidos e cativantes.
O primeiro aspeto a chamar a atenção para este livro, e provavelmente também a sua grande força, é o facto de ser absolutamente inusitado. Figuras da atualidade a conviver com figuras históricas? Tem tudo para ser estranho. Desde a influência do Bollycao na fundação do reino à cooperação entre Jorge Jesus e Vasco da Gama (não, não é o clube de futebol), passando por toda uma série de elementos caricatos que vão surgindo nas diferentes histórias, tudo neste livro é inaudito. Mas o que torna tudo tão divertido é o equilíbrio entre surpresa e naturalidade: tudo é improvável, claro, mas lê-se como se não o fosse.
Outro ponto interessante é que todas estas reconstruções da história são relativamente breves, o que confere uma certa leveza à leitura. Além disso, não faltam referências fáceis de reconhecer, tanto na parte histórica, como na parte atual. E, sendo certo que as histórias são bastante simples, há algo de estranhamente delicioso em reconhecer as várias referências que vão surgindo quando menos se espera.
Ainda uma última nota para referir outro agradável equilíbrio: é que cada episódio é essencialmente independente, mas existem pequenas ligações - e não, não vêm da própria linha cronológica da história real - a criar uma sensação de coesão. Ora, essa sensação é particularmente agradável no meio deste conjunto de cenários caricatos, pois, mais do que a sucessão de dinastias, ou a mera inevitável passagem do tempo, coisas como o estalo que se torna referência durante gerações ou o regresso constante aos mesmos inesperados lugares fazem deste conjunto de histórias também uma história própria.
Breve e descontraído, caricato e cativante, eis, pois, um livro que parte da história para fazer... bem, histórias. Histórias simples, mas de leitura muito agradável, e em que não existe qualquer semelhança com a realidade. Nem mesmo por coincidência.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Festa de Anos Mortal (Sue Fortin)

Carys, Zoe, Andrea e Joanne costumavam ser grandes amigas, mas as dificuldades dos últimos dois anos fizeram com que as relações se tornassem tensas. Assim, quando Joanne as convida para a festa de aniversário que preparou, um fim de semana cheio de aventura e de surpresas, as amigas sentem-se obrigadas a aceitar, na esperança de que a intenção seja restaurar a relação do passado. Só que as intenções são outras. Joanne guarda grandes ressentimentos e pretende confrontar as amigas. E não é a única com planos dramáticos para esse fim de semana...
Narrado maioritariamente na primeira pessoa, e com um enredo que é todo ele uma sucessão de mistérios e de reviravoltas, é na imprevisibilidade que está a grande força deste livro. Desde o início que é bastante óbvio que há planos tenebrosos em curso, mas essa é mesmo a única certeza ao longo de todo o enredo. Além disso, o desenrolar das circunstâncias e a abundância de segredos guardados pelas várias personagens fazem com que a suspeita seja uma constante, incidindo até sobre a própria narradora. O que significa que a leitura facilmente se torna viciante, pois é impossível não querer desvendar a verdade por trás desta teia de intrigas e de segredos.
É certo que a perspetiva de Carys implica algumas limitações, pois a sua visão pessoal significa que o que move as outras personagens acaba por ser visto apenas na medida do que ela sabe. Ainda assim, este menor desenvolvimento de alguns aspetos secundários acaba por ser compensado pela intensidade das surpresas e pelas muitas reviravoltas que se seguem a cada revelação. Além disso, Carys é deliberadamente pouco fiável enquanto narradora, o que significa que nada é o que parece... incluindo o que ela vai relatando.
A história vai, pois, crescendo em intensidade e abrindo caminho para um final vertiginoso. E também particularmente adequado, tendo em conta o desenvolvimento das personagens. É que é esta é uma história onde ninguém é propriamente inocente, e onde são inevitáveis os sentimentos ambíguos sobre as personagens e as suas escolhas passadas e presentes. Esta ambiguidade moral torna, porém, tudo mais intenso, pois onde todos têm segredos, todos podem estar dispostos a tudo para os esconder. E isso contribui para adensar o mistério.
Intenso, viciante e carregadinho de surpresas, eis, portanto, um livro que prende do início ao fim. Com um núcleo de personagens nem sempre fáceis de entender, mas com uma sucessão de intrigas e de ações que culmina num final poderoso e memorável, vale bem a pena descobrir esta história. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

A Criatura do Lago (Bruno Matos e Raquel Carrilho)

A Mizé está a precisar de sossego. E por isso decide ir passar uns dias com os seus amigos da Família Monstro. Só que, em Monstrópolis, nunca há dias aborrecidos e, sendo assim, é certo que tem à sua espera uma bela aventura. Tudo começa com uma visita a um primo da Mamã Ogre, que vive numa casa humilde junto ao lago. Mas essa casa humilde transformou-se na fortuna do proprietário, através da inesperada de um monstro cuja fama atravessa mundos: a Nak'ia... ou Nessie. E há muitos interessados nela, nem todos com boas intenções.
Parte do que torna estas histórias tão cativantes é a forma como, de forma simples e divertida, conseguem proporcionar sempre uma bela aventura sem perder de vista as mensagens e valores que se pretende realçar. Neste caso, temos vários, desde o medo da diferença à forma como traumas passados levam a generalizações erradas, sem esquecer, claro, a forma como a ganância leva a atos censuráveis, e também que as aparências iludem. Tudo isto está presente nesta história e é refletido da mais eficaz das formas: pelo exemplo. Ora, tendo em conta que se trata um livro infantil, esta forma de transmitir a mensagem é, evidentemente, a mais eficaz.
Mas a mensagem não é tudo. Importa olhar para a história e para a forma como é construída. Ao terceiro volume da série, há um conjunto de características que são, à partida, expectáveis: as ilustrações cheias de cor e de expressividade, a relativa brevidade de uma história a que, apesar disso, não falta ação nem coisas interessantes a acontecer, e um núcleo de personagens surpreendentemente fofas, dada a sua natureza. Mas há também elementos novos: novas personagens, novos desenvolvimentos e uma nova aventura para descobrir, o que significa que as histórias nunca se tornam repetitivas.
Importa, finalmente, referir que, apesar de ser uma história pensada para um público jovem, daí a relativa simplicidade, tem o cuidado de não se tornar demasiado simples. E isto aplica-se não só à história, mas também à escrita, havendo um claro incentivo ao desenvolvimento de um vocabulário maior. Além, claro, de alguns pormenores deliciosos, como a existência de uma personagem chamada Baaz Ofya.
Simples e divertido, com uma história cativante e uma mensagem forte, trata-se, em suma, de um livro perfeito para os mais novos, mas perfeitamente capaz de cativar também os que... já não o são. É sempre bom reencontrar esta curiosa família, e ir com ela à aventura.

sábado, 16 de outubro de 2021

Diário de Uma Miúda como Tu - Sem Dramas, Please! (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

Mais um aniversário, mais umas férias... e, como sempre, não faltam à Francisca coisas a que se dedicar. Desde a melhor festa de aniversário de sempre (bem, quase) ao campo de férias de teatro, passando pelas suas iniciativas em prol do ambiente, não lhe falta com que ocupar a cabeça. Além, claro, das amigas e das paixonetas. Mas há ainda um mistério a pairar. Andam a desaparecer coisas do teatro. Será um fantasma? Ou algo mais mundano?
Ao sétimo volume de uma série, e sobretudo de uma série em que o quotidiano desempenha um papel tão importante, não são propriamente de esperar grandes surpresas em termos de qualidades. Mas são precisamente as expetativas, e a forma como cada novo volume lhes corresponde sempre, um dos aspetos que tornam estes livros tão cativantes. Sempre simples, sempre divertidos e sempre com uma componente didática que flui com naturalidade por entre os ritmos do enredo, podem seguir essencialmente um percurso comum, mas nunca deixam de proporcionar uma leitura envolvente, não só por haver sempre algo de novo nas aventuras da protagonista, mas porque, chegados a este ponto, já é quase como se estivéssemos a vê-la crescer.
Sendo uma série juvenil, há caraterísticas que são quase inevitáveis, e que importa sempre salientar, desde a relativa simplicidade do texto e do enredo às ilustrações também simples, mas que se ajustam perfeitamente ao que imaginamos ser... bem, o diário de uma miúda. Vista da perspetiva adulta, sobressai ainda outro aspeto: a dos vários temas importantes que vão sendo abordados de forma bastante concisa, mas também muito certeira. E que não são, de todo, importantes apenas para os mais jovens.
Não deixa de ser a história de uma miúda de onze anos. O que significa que, além das preocupações globais, tem também as suas aspirações e dramas pessoais - como, aliás, é anunciado pelo próprio título. E este equilíbrio entre as duas facetas torna a personagem mais real, mais próxima. E se o faz da perspetiva de um adulto, fá-lo-á ainda mais, certamente, junto do público a que se destina.
Leve, divertido, educativo e cativante: assim se resume, basicamente, este novo diário da Francisca. Que continua igual a si mesma e igualmente digna de acompanhar nas suas sempre descontraídas e envolventes aventuras.

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

Umbigo do Mundo, Vol. 1 - Alma Mãe (Penim Loureiro e Carlos Silva)

O mundo transformou-se. Ignorados os avisos da natureza, instalou-se a deterioração e a decadência. Mantém-se, ainda que com uma estrutura mais vincada, a divisão entre norte e sul e o fosso entre ricos e pobres, mas elevado agora a um nível de vida ou morte. E é neste mundo de poder e de ruínas que a misteriosa Alma se move. Ninguém sabe muito bem as suas origens, mas tudo indica que é mais velha do que aparenta. E o que começa por ser apenas um roubo desperta interesses perigosos para a sua singularidade. E o perigo torna-se mais vasto... e mais próximo.
Mais do que a história propriamente dita, ainda que também ela tenha muito de interessante, o primeiro ponto a captar a atenção neste livro é visual. Visual e omnipresente, pois uma das grandes forças está nos cenários, na construção de um mundo feito de singularidades, mas também de paralelismos, e onde é fácil intuir muitas referências, desde um espírito como que greco-romano a elementos aparentemente templários. É curioso, aliás, que sejam os cenários que mais ficam na retina, tendo em conta que também não faltam movimento e expressividade na ação. E, que entre os grandes momentos de ação e as pequenas pérolas emotivas, seja a paisagem aquilo que mais sobressai.
Olhando agora para o enredo, há sobretudo dois aspetos a destacar, importando, ainda assim, referir primeiro um outro: que, sendo um primeiro volume, ficam necessariamente perguntas sem resposta. Muitas perguntas. Perguntas que fazem sentido, não só em termos de continuidade, pois a história termina num ponto de abertura para múltiplas possibilidades, mas também de passado. É que a linha temporal parece ser tudo menos linear - o que significa que estas perguntas sem reposta sobre passado e futuro prometem muito de bom para o que se seguirá.
Passando, então, aos dois aspetos que sobressaem. Um deles é, obviamente, a construção do mundo e das suas regras, já refletido na vasta paisagem visual, mas também muito presente na construção das diferentes forças em movimento, e na forma como refletem com aterradora precisão certas facetas do nosso próprio mundo. O outro é o equilíbrio entre ação e emoção que, numa história que é apenas o início, e onde muito fica em suspenso, gera um interesse quase imediato pelas personagens e pelo que lhes acontece.
Altamente promissor e também muito cativante: assim se pode descrever, pois, este primeiro contacto com o Umbigo do Mundo. Uma viagem visualmente fascinante, mas também cheia de intensidade e de expressão. Recomenda-se, em suma. E mal posso esperar para ver o que vem a seguir.



terça-feira, 12 de outubro de 2021

O Hotel de Vidro (Emily St. John Mandel)

Vincent sempre viveu, de certo modo, à deriva, assombrada pelo desaparecimento inexplicável da mãe, pelos comportamentos do meio-irmão, pelas dúvidas sobre o que fazer consigo mesma. Mas a vida vai passando e, apesar de todas as sombras, vai encontrando os seus passos, o seu caminho, o seu lugar. E um dia, enquanto trabalha no bar de um hotel no meio do nada, a sua vida cruza-se com a de Jonathan Alkaitis, dono do hotel e uma grande figura do mundo financeiro. Começa assim uma nova mudança de vida e a entrada fulgurante no país do dinheiro. Mas Alkaitis tem os seus próprios segredos e a teia que construiu reúne muitas vidas - e consequências capazes de as abalar a todas.
Uma das primeiras e mais marcantes impressões da leitura deste livro é o reforçar de uma perceção comum ao anterior Estação Onze: a extraordinária capacidade que a autora tem de construir histórias complexas, de entrelaçar múltiplas vidas através de longos e conturbados períodos de tempo e de construir com elas poderosos contrastes, seja qual for o cenário ou o tipo de perturbações envolvidas. Em termos de enredo geral, dificilmente poderiam ser mais diferentes, mas têm em comum esta voz singular, que dá a cada personagem e a cada desenvolvimento o equilíbrio perfeito entre complexidade e naturalidade, entre a esperança das aspirações e a imensa desolação da realidade.
O enredo oscila entre diferentes períodos de tempo, com avanços e recuos na linha temporal, mas feitos sempre com uma tão grande naturalidade que nunca é difícil acompanhar o ritmo. Oscila também entre diferentes personagens, ao ponto de ser difícil, por vezes, associar o protagonismo a uma só, pois todas têm vidas completas, histórias fascinantes e percursos carregadinhos de momentos memoráveis. E tudo vai convergindo, à medida que as relações se tornam mais claras, num crescendo de intensidade, feito de grandes surpresas e de pequenas revelações, de tragédias anunciadas e de outras que sempre estiveram lá, na sombra, à espera de se fazerem notar.
Ainda seguindo nesta senda, importa salientar o que é, provavelmente, o aspeto mais poderoso de uma história toda ela impressionante: a forma como as linhas da moralidade se cruzam, sem nunca se esbater por completo, mas criando sentimentos contraditórios que tornam tudo ainda mais notável. A figura mais impressionante neste sentido é, como seria de prever, a de Jonathan Alkaitis, dadas as repercussões das suas atividades. Mas é algo que está presente em todos, desde Paul à própria Vincent: uma relativa ambiguidade que não dilui por completo a linha que separa o certo do errado, mas que permite sentimentos de empatia, de proximidade e até de um certo apego, mesmo por aqueles que, sob qualquer perspetiva lógica, só poderiam ser classificados como vilões.
O enredo é soberbo. As personagens são fascinantes. E a escrita é simplesmente sublime na precisão com que desperta emoções e sustém com avassaladora naturalidade uma complexa teia de equilíbrios e de ações. Tudo neste livro é memorável. Tudo é brilhante. Magnífico.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

A Mulher de Vestido Vermelho que Dança na Praia (Pedro Rui Sousa)

Vivem-se tempos de mudança e de luta na cidade de Hong Kong, mas, para o protagonista desta história, as lutas e os conflitos são outros, mais pessoais, mais internos. Entre sucessivos encontros amorosos sem grande futuro, projetos de escrita meio dispersos e uma vida de viagens mais ou menos impulsivas, procura uma forma de lidar com dois sentimentos contraditórios que o atormentam: o peso da solidão e o medo da intimidade. O caminho, porém, é tudo menos linear, até porque nem tudo tem respostas na vida. E, aos poucos, vai-se encontrado na procura da mulher que procura. Nem sempre gostando do que vê, mas aspirando a tentar ser quem é.
É nos contrastes da escrita, e no estranho equilíbrio entre uma introspeção poética e uma visão por vezes brutal da realidade, que está a grande força deste livro. Os capítulos curtos tornam mais fluida a sucessão de introspeções. O choque entre espiritual e carnal ganha forma num contraste tão poderoso que é quase avassalador que todos esses momentos possam pertencer a uma única vida. E não faltam frases a ficar no pensamento e ecos de uma vaga identificação, mesmo quando o percurso do protagonista se revela no seu mais pessoal e intransmissível.
Esta proximidade suscitada pelas palavras torna-se ainda mais interessante se tivermos em conta o labirinto de sentimentos ambíguos que o percurso do protagonista parece despertar. Não é propriamente o tipo de vida - e de personalidade - que desperte uma empatia incondicional, até porque parte da sua história é feita de decisões questionáveis. Mas é algo curioso a forma como é possível não simpatizar muito com a personagem e ainda assim compreender o que a move. E reconhecer no seu percurso algo maior do que ela e que suplanta até os tais sentimentos ambíguos.
Tendo em conta todos estes contrastes, que vão das ambiguidades do protagonista a um certo percurso de possível crescimento espiritual, não é de surpreender que o final deixe também muito em aberto. Fica, é certo, uma ligeira curiosidade insatisfeita, tendo em conta a ideia de busca que paira sobre toda a história. Mas fez sentido que tudo acabe como acaba, deixando uma sensação de que nem tudo tem respostas conclusivas (como na vida) e de que há sempre mais caminho para lá da meta (também como na vida).
Poético, mas com uma naturalidade fluida. Ambíguo, mas marcante nos seus contrastes. Introspetivo, mas com uma visão maior para lá do pessoal. Assim é este livro de solidão e de amor(es), feito de iguais medidas de carne e espírito, e muito interessante em todas as suas facetas. Uma boa surpresa, em suma.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Os Crimes do ABC (Frédéric Brémaud e Alberto Zanon)

Hercule Poirot tem uma certa reputação no que toca a resolver crimes bizarros, o que significa que o seu nome é sobejamente conhecido. Assim, quando recebe uma carta anónima a anunciar um crime e a desafiá-lo a resolver o mistério, a interpretação inicial, tanto de Poirot como da polícia, é de que se trata de um lunático qualquer à procura de fama. Mas eis que o crime acontece mesmo - e é apenas o primeiro. Então, todos começam a levar o caso a sério... e Poirot vê-se novamente obrigado a pôr as suas celulazinhas cinzentas a funcionar.
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é comum às várias adaptações até agora: que, quer seja o primeiro contacto com a história ou quer se conheça já toda a intriga - e, inevitavelmente, nesse caso, a identidade do assassino - a leitura é igualmente cativante. Este caso foi, para mim, um primeiro contacto, o que significa um desconhecimento total sobre a identidade do criminoso. E, deste ponto de vista, a fidelidade ao original é um elemento desconhecido, mas uma coisa é certa: o mistério mantém-se mesmo até ao fim.
Olhemos então para a história da perspetiva de quem acaba de a descobrir pela primeira vez. E, desta perspetiva, sobressaem dois aspetos: a intensidade do mistério, com a tensão da corrida contra o tempo, as falsas pistas e a sensação de impotência que, a espaços, quase parece transbordar das páginas; e o equilíbrio entre diálogo e imagem, em que a expressividade das personagens parece dar tantas pistas para o caso como os indícios que vão sendo revelados. Além disso, este mesmo equilíbrio tem um impacto particularmente marcante se olharmos para a figura do misterioso ABC, pois a sua posição singular parece ganhar mais vida nas expressões que lhe são conferidas.
Em jeito de conclusão, e olhando novamente para o conjunto das diferentes adaptações, fica ainda uma última impressão curiosa: a de que, em cada livro, o traço sugere personagens um pouco diferentes (mesmo quando os protagonistas são os mesmos), mas uma aura facilmente reconhecível. As feições e os cenários podem assumir diferentes formas, mas a alma que lhe serve de base é a mesma. E é perfeitamente percetível.
Intrigante, intenso e expressivo: assim é, em suma, este desafio às celulazinhas cinzentas de um dos detetives mais famosos do mundo. E, com as suas expressões eloquentes, o contraste entre ambientes e a capacidade de gerar proximidade em poucas palavras (ou imagens), é também uma leitura memorável em todos os aspetos.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

A Voz do Silêncio (Helena P. Blavatsky)

O caminho da vida pode assumir muitas formas. Visto da perspetiva espiritual, pode surgir também representado por muitos símbolos. E as tradições, lendas e figuras da sabedoria oriental podem ser vagamente familiares, mas a base subjacente é muito mais vasta do que, à primeira vista, pode parecer. Este pequeno livro traça as bases do caminho da sabedoria segundo algumas dessas tradições. E fá-lo com uma certa poesia, que pode começar por parecer desconcertante, mas que se entranha, de forma quase inconsciente, no pensamento.
Uma das impressões mais marcantes deste livro é o contraste entre a brevidade das suas cerca de setenta páginas e a complexidade global. Da linguagem aos conceitos, passando, naturalmente, pela vasta tradição que lhe está subjacente, este é um livro que parece ser muito maior do que a sua dimensão física. E, lido sem grandes conhecimentos prévios sobre o assunto, a impressão inicial pode, pois, ser de uma certa perplexidade ante um tão vasto mundo contido em tão poucas páginas.
Passado o desconcerto inicial, surge o fascínio. A escrita tem uma cadência singular, que quase parece evocar a aura de um rito iniciático. Os muitos elementos novos despertam a vontade de saber mais, de ler mais sobre o tema. E o contraste entre a abundância de nomes e símbolos e a facilidade com que se reconhecem neles aspetos da realidade é particularmente cativante.
Tem, naturalmente, uma certa ambiguidade, até porque se há algo que não pretende fazer é apontar caminhos fáceis. Mas, mais do que desorientação, e apesar da já referida perplexidade inicial, o que fica é uma vontade de aprofundar conhecimentos, não só da perspetiva dos caminhos apresentados, mas da tradição maior em que eles se enquadram.
Breve e surpreendentemente fluido, dada a complexidade e a abundância de elementos presentes, trata-se, pois, de um livro cativante, poético e que funciona também como uma espécie de porta para as portas que pretende apresentar. Fica na memória, em suma. Pela voz e pelo conteúdo.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Criminal - Livro Cinco (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Verão de 1988. Teeg Lawless está de volta a casa após uma libertação algo conturbada da prisão. E o primeiro passo é resolver os problemas que o filho lhe arranjou, planeando um assalto que lhe permita recuperar o dinheiro da fiança. Mas esse verão está destinado a ser mais do que apenas mais uma sucessão de dias normais numa vida de crime. Pela primeira vez, Teeg descobriu o amor. Só que não é o tipo de amor que torna as pessoas melhores, é o tipo de amor que as torna mais arrojadas. Capazes de tudo para conquistar a vida por que anseiam. E, enquanto o plano vai ganhando vida, também o filho de Teeg começa a formar o seu caminho. Igualmente conturbado, igualmente dúbio. Igualmente aberto para a tragédia.
Parte do que torna esta série tão interessante, e algo que se mantém vivo desde o primeiro volume, é a capacidade de gera empatia por personagens que são... bem, criminosos. Grande parte das figuras que povoam esta série têm algum tipo de ato duvidoso no seu passado, e a grande maioria mantém exatamente o mesmo rumo no presente. O que impressiona é, por isso, a forma como esse modo de vida é explorado, em histórias que não são - nem pretendem ser - de redenção, mas que exploram as facetas de um mundo de violência e ganância que pode parecer, da perspetiva de algumas personagens, sedutor, mas cuja verdadeira essência é a impossibilidade de lhe escapar.
Este volume específico leva esta perspetiva a uma nova profundidade, ao contar uma história mais longa e em que os laços entre personagens são explorados mais a fundo, com o passado de várias delas a ganhar uma forma mais nítida. Teeg Lawless é aqui uma presença mais óbvia, com um percurso mais aprofundado, e o mesmo acontece com Ricky, um dos filhos. Além de um maior envolvimento emocional, toda esta história reflete a inevitabilidade da vida das personagens, pois coloca as duas gerações em contraste, revelando os laços disfuncionais que os unem e como o caminho de uns é quase hereditariamente transmitido aos outros.
Mantêm-se essencialmente as mesmas caraterísticas dos volumes anteriores, ainda que exploradas de forma mais extensa: a ambiguidade moral, o equilíbrio entre violência e desolação, a brutalidade de um mundo onde simplesmente não há inocentes e a forma como palavra e imagem realçam de forma igualmente poderosa estas mesmas caraterísticas. Não faltam diálogos notáveis e expressões inesquecíveis. E é também isso que torna a leitura tão empolgante - mesmo nas partes em que não é fácil gostar das personagens.
Feito em partes iguais de crueldade e emoção, eis, pois, um livro que corresponde na perfeição ao que se espera desta série: intenso, surpreendente, moral e emocionalmente ambíguo e sempre impossível de largar. Não desilude, em suma. Mas isso era mesmo a única coisa que já era de esperar.

sábado, 2 de outubro de 2021

Hinton Hollow Death Trip (Will Carver)

Hinton Hollow é o tipo de pequena povoação onde toda a gente se conhece. Há um forte espírito de comunidade e as pessoas partilham dos mesmos valores, esperanças e ideais. Ou será que não? Tudo parece tranquilo, mas a chegada do filho pródigo implica a aparição de uma presença diferente. Há uma tempestade a formar-se. O mal está a espreita – da mais literal das formas. E, quando a morte começa a alastrar e segredos sombrios começam a vir à tona, os mais vulneráveis transformam-se em vítimas… e ninguém está a salvo do mal dentro de cada um.
Existem, de longe, demasiadas qualidades neste livro para as descrever a todas, sobretudo porque algumas delas não podem ser referidas sem estragar algumas surpresas. Narrada pelo próprio Mal – sim, com maiúscula – esta história mistura tantos elementos diferentes, e com um tão delicado equilíbrio, que é simplesmente impossível encaixá-la num único género. A profissão do protagonista e os múltiplos homicídios ao longo da história definem-na como uma espécie de policial, mas diferente de todos os outros, incluindo os volumes anteriores desta série. O elemento sobrenatural – já disse que a história é contada pelo Mal? – confere-lhe uma aura de horror, mas o verdadeiro horror está longe de vir do sobrenatural e as repercussões e ramificações dos diferentes tipos de mal presentes neste livro são simplesmente avassaladoras.
É também uma história de equilíbrio, o que significa que os contrastes e equilíbrios ao longo do livro se tornam ainda mais impressionantes. O equilíbrio entre bem e mal, obviamente, mas também entre local e forasteiro, criança e adulto, honesto e mentiroso. Entre o que julgamos que sabemos e a verdade plena e inabalável. Nada é o que parece nesta história. Nem ninguém. Cada novo desenvolvimento é uma surpresa avassaladora. E nada é a preto e branco, o que talvez possa ser surpreendente numa história sobre o mal. Tudo é complexo, ambíguo, intrincado. Como a própria vida.
E há ainda uma outra qualidade particularmente impressionante: a voz. A ideia de dar uma voz e uma personalidade ao Mal é, por si só, algo de brilhante. Mas dar-lhe uma voz tão fascinante e viciante, e um tal dom para contar histórias, é absolutamente glorioso. Os heróis tornam-se vítimas, as vítimas tornam-se vilões, a inocência dá lugar às trevas – e tudo isso acontece através desta voz. Tão próxima que quase podemos tocar-lhe. Vê-la. Senti-la a falar nas nossas próprias cabeças.
Uma voz singular, um fascinante conjunto de personagens e uma história avassaladora, indescritível, inesquecível. Assim é esta estranha viagem a Hinton Hollow e às mentes dos seus habitantes. Brilhante, assustadora, incrível. Gloriosa.