sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Balanço de 2022

2022. O ano da correria da boa. Cheio de desafios, de atividade e de coisas em geral com que me ocupar. O que significa que a leitura foi mais reduzida que o habitual: 115 livros ao todo.
Ainda assim, não faltaram leituras marcantes, como não podia deixar de ser. E não podia deixar de se cumprir a tradição de partilhar os favoritos do ano. Assim, sem mais demoras, eis a lista:




Conhecem-nos? Leram? Gostaram? Contem-me tudo!

E, entretanto, sem propósitos específicos, mas com a vontade de sempre, fica a certeza: mais correria, menos correria, continuaremos a ver-nos por cá. Até para o ano!

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Saga - Volume Dez (Brian K. Vaughan e Fiona Staples)

Passaram anos desde que um acontecimento drástico mudou a vida de Hazel e da mãe, e foram muitas as decisões difíceis que tiveram de tomar para sobreviver. Agora, o caminho tornou-se ainda mais ambíguo, a luta pela sobrevivência exige precaução e desconfiança e os contactos feitos pelo caminho escondem também os seus próprios segredos. E Hazel vai crescendo, a vida vai continuando.. e a cada nova esperança sucede uma nova perda.
Após a conclusão devastadora do último volume, a que se seguiu um longo hiato, é impossível não começar por referir o poderosíssimo impacto emocional deste regresso. Esperanças que ficaram veem-se reduzidas a pó, o impacto das perdas é quase palpável e, mais uma vez, o caminho vai evoluindo entre oscilações de esperança e devastação - com particular destaque para o final, naturalmente, mas com uma presença vincada ao longo de todo o percurso.
O facto de também na história terem passado anos, tem também outro desenvolvimento interessante: traz consigo novas personagens, o crescimento de algumas já conhecidas e um trajeto mais concentrado do que noutros volumes. Há, pois, mais entradas em cena do que reencontros, com a história mais centrada em Hazel, mas sem perder de vista o contexto global. E há ainda uma presença secreta, maioritariamente invisível, mas subjacente a grande parte dos acontecimentos: Marko.
Mantêm-se, de resto, todas as qualidades dos livros anteriores: a expressividade dos rostos, a exuberância e a diversidade das personagens, a abundância de cor e de cenários singulares e um delicioso equilíbrio entre drama e ação, emoção transbordante e humor certeiro, inocência e desolação. Tudo convergindo para uma aventura viciante cujo potencial parece ainda bem longe de se esgotar.
Regresso demorado, mas fortíssimo, com a mesma vida abundante, a mesma intensidade irresistível e a mesma emoção devastadora, este décimo volume é Saga em toda a sua glória,  correspondendo integralmente às expetativas e prometendo ainda mais para o que virá.  Belíssimo, poderoso, memorável, é prodigioso, em suma. Como sempre.

sábado, 24 de dezembro de 2022

Feliz Natal


Não faltem neste dia a luz e a magia,
O amor, a esperança e o conforto das memórias,
Com as palavras que sempre são o nosso refúgio 
E a promessa de novas histórias ao virar da próxima página. 

Feliz Natal. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Bug - Livro 3 (Enki Bilal)

Cada vez mais assolado por mistérios, conflitos e ideologias em colisão, o mundo vai-se tornando cada vez mais caótico. E, no meio de tudo, mantém-se o elusivo Kameron Obb, cujo parasita interior lhe confere poderes singulares, pesadelos e febres e a cobiça de todos os grupos em conflito. É preciso encontrar respostas... e a liberdade possível. Mas cada passo de Obb traz novos problemas. E novas perguntas a precisar de resposta.
Parte do que mais fascina neste terceiro livro é também o que mais desconcerta: a forma como cada novo passo traz novas complexidades - ideológicas, políticas e principalmente biológicas. E importa desde já dizer que não é ainda aqui que se encontram todas as respostas. Muito pelo contrário: o mistério adensa-se, a teia torna-se mais intrincada e são infinitas as possibilidades que ficam em aberto para o que se seguirá.
Dito isto, continua a ser fascinante visitar este mundo em degradação, conhecer as suas forças discordantes e acompanhar o percurso de um protagonista tão poderoso quanto vulnerável, com quem todos querem fazer grandes coisas... mas a partir de uma posição de subjugação. Além disso, das inúmeras forças em conflito emergem múltiplas facetas da atualidade, sendo certo que algumas deixam sentimentos contraditórios na abordagem, mas nunca deixam de ter os seus pontos de interesse.
Finalmente, a nível visual, sobressaem dois pontos: a precisão do caos, que ganha especial vida nos cenários, mas também nas visões mais interiores do protagonista; e os jogos de sombras, que salientam não só a aura de mistério, mas também a promessa de decadência que parece envolver este futuro.
Enigmático, complexo e cheio de intensidade e mistério, trata-se, em suma, de um livro tão desconcertante quanto cativante. E deixa tudo em aberto, é certo, mas não deixa de ser mais uma bela etapa nesta fascinante aventura. Que vale bem a pena continuar a seguir. 

sábado, 10 de dezembro de 2022

Mar da Tranquilidade (Emily St. John Mandel)

Um jovem exilado da alta sociedade no início do século XX, que parte para se encontrar ou apenas existir. Um músico que fez sucesso graças, em parte, aos vídeos da irmã morta. Uma autora que escreveu sobre uma pandemia mortal pouco antes de ser também ceifada por uma pandemia. E um investigador que percorre o tempo em busca de explicações para uma anomalia que pode alterar perspetivas sobre a natureza da vida. Todos estes fios se entrelaçam e convergem para lembrar a mutável natureza da vida e as infinitas formas da desolação.
Embora seja, no essencial, uma história independente, uma das coisas que importa salientar sobre este livro é que terá certamente um impacto muito maior tendo lido anteriormente Estação Onze e O Hotel de Vidro, não só pelas personagens em comum, mas sobretudo pela viva sensação de que tudo pertence a uma mesma teia de histórias e de mundos.
Este impacto sai ainda mais realçado pelo facto de ser um livro relativamente breve, em que há tanto de marcante no que é dito como no apenas sugerido ou vislumbrado. É, aliás, interessante a forma como, com um aprofundar bastante menor dos elos pessoais, a autora consegue criar com igual mestria a sensação de melancolia e desolação que tão tangível é nos livros anteriores.
Há ainda outro contraste poderoso. Sendo embora um livro com muito a acontecer, e com uma voz relativamente concisa, o tom tem o seu lado introspetivo, um pouco como se cada pequena coisa apelasse a uma contemplação de algo maior: a vida, o tempo, a natureza humana, o futuro. E há ecos que se repercutem não tanto por acontecimentos específicos, mas mais por uma frase, uma imagem, uma impressão.
Mas há mistério. E respostas. E, a haver algo de expectável neste livro, é que o final jamais poderia ser limpo e linear. Não é, de facto. Deixa perguntas sem resposta. Mas, atendendo ao percurso, é mais do que natural que assim seja: é perfeitamente adequado.
Relativamente conciso, na escrita e nos desenvolvimentos, mas com um poderoso equilíbrio entre as suas múltiplas facetas e a visão que delas emerge, trata-se, em suma, de um livro marcante e memorável,  tanto no que diz como no que inspira. E é dessa matéria que são feitas as grandes leituras.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Madame Bovary (Daniel Bardet e Michel Janvier)

Criada num convento e depois transportada para um casamento em que o que julgava ser romance se tornou tédio, Emma Bovary aspira a algo mais além do quotidiano aborrecido. Mas o marido não tem ambições e, movida por um sonho vago, Emma deixa-se levar por paixões proibidas. Procura amor noutros braços, procura conquistá-los para sempre... sem saber que caminha a passos largos para a ruína.
Sendo uma adaptação de um romance muito mais extenso, é inevitável comparar a relativa concisão desta adaptação com o texto mais vasto que lhe serve de base. E é interessante notar que, embora muito mais sucinta e cingida ao essencial, esta história não perde nenhuma da intensidade, apesar de tudo evoluir de forma muito mais rápida.
Outro contraste interessante é, claro, o da parte visual, já que esta versão dá rostos às personagens e cenários às suas experiências. E dá sobretudo expressividade, principalmente no caso de Emma, em que as emoções que tanto causam e tanto movem surgem claramente refletidas nas suas feições.
Claro que, para quem tiver lido o original, a história já é conhecida, o que talvez atenue ligeiramente o impacto desta progressiva caminhada para a ruína. Ainda assim, reencontrar a história, nesta nova versão condensada e nova, salienta não só o percurso da protagonista, mas também a visão da moral e dos costumes que é também parte do seu âmago. E não falta material para reflexão ao longo de todo esse percurso - sobre os costumes da época e também sobre a natureza da sociedade em geral.
Tudo somado, fica, pois, a impressão de um reencontro novo com uma história já conhecida: conciso, mas intenso, cativante e expressivo. Vale a pena conhecer esta adaptação. 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

O Acontecimento (Annie Ernaux)

Um acontecimento capaz de traçar o limite da despreocupação e despertar em pleno a vida adulta, uma mudança que inicia buscas e transformações. Uma gravidez indesejada de uma estudante decidida a abortar em tempos de clandestinidade e que recorda, ao fim de muito tempo, os passos orientadores deste acontecimento. Vida narrada em voz de romance, mas num registo intimamente pessoal.
Apesar da evidente brevidade deste livro, não se trata propriamente de uma leitura fácil de descrever. Sempre a deambular pela fronteira da realidade, mas com a visão por vezes ambígua da memória, não é  tanto uma história como a introspeção, embora girando em torno de um acontecimento. E é também uma história que podia ser de muitas, o que deixa também uma marca singular.
Também devido à brevidade, mas no próprio registo, há uma impressão de concisão nos factos que contrasta com a vastidão da matéria para reflexão. O próprio tema suscita questões e a forma pessoal, mas refletindo uma situação comum a muitas outras, evoca questões sociais e até sobre a natureza humana.
E, mais uma vez, tudo de forma muito sucinta, o que faz sobressair um outro ponto. A narrativa converge para um acontecimento e o ritmo das palavras reflete essa convergência, oscilando entre deambulares pelas palavras, explicações muito rápidas e momentos de pura intensidade  dramática.
Tudo somado, o que fica é a sensação de um livro pequeno, mas vasto, pessoal, mas aberto às questões e complexidades sociais, e com uma voz certeira e direta, mas que evoca na perfeição os meandros da memória. Conciso, mas com uma eficácia memorável, um livro que marca de diferentes formas. 

terça-feira, 18 de outubro de 2022

O Jardim Secreto (Mariah Marsden e Hanna Luechtefeld)

Enviada para viver na charneca com o tio após a morte dos pais, Mary sente-se muito só. Não tem amigos, aborrece-se e, naquela mansão de quartos trancados, também não tem nada para fazer. Mas tudo muda quando começa a conhecer as pessoas da casa… e a descobrir os seus segredos. Há portas escondidas e mistérios do outro lado de um muro. E uma tristeza que talvez Mary possa começar a curar.
Algo que importa começar por salientar é que, sendo embora uma adaptação, este livro facilmente pode ser lido sem qualquer conhecimento prévio da história. O percurso é completo, ainda que conciso quanto baste, e as imagens completam a brevidade dos diálogos, além de salientarem o ambiente em que as personagens se movem.
Outro ponto a destacar é o inevitável contraste entre ternura e irritações. No início, não é propriamente fácil gostar das personagens, com as suas birras e petulâncias, mas isso é algo que vai evoluindo com a progressão da história,  e abrindo caminho para uma ternura inocente e melancólica que não pode deixar de cativar. Também ajuda o facto de as personagens irem surgindo gradualmente na vida da protagonista, o que faz com que a sua mudança gradual de perceções se vá transferindo, aos poucos, também para o leitor.
Finalmente, importa mencionar a arte, simples quanto baste nos traços das personagens, mas repleta de pormenores interessantes nos cenários e de vida na natureza. Ou não fosse esta a história de um jardim secreto, cujas transformações são parte do âmago da aventura. E as informações no final do livro, que permitem uma compreensão mais clara da origem da história e também um reconhecimento mais profundo dos elementos - plantas e aves - que surgem ao longo do enredo.
Simples quanto baste, mas com uma cativante fusão de inocência e melancolia, trata-se, em suma, de uma leitura envolvente, cativante à vista e bastante memorável no seu conjunto. Breve, mas surpreendente, vale bem a pena descobrir este Jardim Secreto.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

A Espia do Oriente (Nuno Nepomuceno)

André Marques-Smith tinha uma vida dupla - mas não sabia até que ponto. E agora que a verdade veio à tona, grande parte do que julgava saber foi posto em causa. Ainda assim, a vida não para e a sua faceta mais secreta chama-o de volta ao ativo. Os documentos que tanto esforço lhe custaram a recuperar ainda não estão decifrados, e por isso a investigação deve continuar, até porque a sua vida pode depender disso. Mas quando isso implica trabalhar com uma mulher que despreza e em quem não confia... André não pode deixar de se interrogar se não estará a ser enganado outra vez.
Provavelmente a maior prova da intensidade deste livro é que, mesmo numa segunda leitura, em que as grandes revelações já são conhecidas, a história não perde absolutamente nenhum impacto. Das primeiras surpresas ao final devastador, tudo mantém exatamente a mesma força da primeira leitura, em fluidez, envolvência e, acima de tudo, emoção. 
Mas, claro, dizer que as qualidades se mantêm não diz quais são. E são muitas: a naturalidade da escrita, a capacidade incessante de surpreender, o equilíbrio entre emoção e humor e a força dos momentos mais dramáticos. 
E, além de tudo isto, sobressaem ainda dois pontos. O primeiro é o contraste equilibrado e cativante entre as múltiplas facetas da vida de André, oscilando entre a adrenalina da espionagem, as tribulações do trabalho e o quotidiano da vida familiar e dos amigos. O segundo está na base disto: a construção completa de personagens tão admiráveis como falíveis, tão eficientes como vulneráveis. Complexas. Imperfeitas. Humanas.
E se, de certo modo, este livro é também uma transição, no sentido em que deixa pontos em suspenso para o que falta contar, o que é certo é que não faltam desenvolvimentos marcantes, mais do que suficientes para tornar esta fase da aventura completa por direito próprio. E para deixar uma enorme vontade de ler o volume final - sim, mesmo já conhecendo a história.
Tudo somado, o que fica é a sensação de um reencontro marcante, cheio de intensidade, de surpresas e de ação, mas também de uma vulnerabilidade que nunca deixa de impressionar. E a ideia de que vale sempre a pena regressar aos lugares onde já fomos felizes quando as pessoas que nos cativam vivem por lá. Como é certamente esse o caso deste livro.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A Noite é um Jogo (Camilla Läckberg)

Anton, Liv, Max e Martina são melhores amigos desde que se lembram. Têm também uma vida de privilégio, como fica bem claro a partir da grande festa de passagem de ano que estão prestes a partilhar - só os quatro, porque é assim que preferem. Por detrás dos comportamentos infantis, das provocações e dos preconceitos, escondem-se, contudo, alguns segredos mais tenebrosos. E, à medida que a noite avança e as verdades começam a surgir, começa também gradualmente a formar-se um plano. Porque os seus maiores inimigos são os que estão mais próximos. E os quatro amigos não se importariam nada de se livrar deles.
É inevitável não começar por referir um aspeto bastante evidente deste livro, mas que define também os seus limites: é bastante breve. E, por ser bastante breve, o desenvolvimento do enredo e, sobretudo, das personagens, acaba por ser bastante conciso. Tudo gira em torno dos quatro amigos e dos seus traumas, e é aí que estão os momentos mais marcantes, ainda que também as maiores ambiguidades. Já quanto ao grande acontecimento no cerne de tudo: é breve. E tem o seu impacto, ainda assim, mas talvez pudesse ter sido explorado mais a fundo.
Dito isto, e apesar do registo bastante mais breve do que o habitual para a autora, não deixa de ser uma leitura cativante. E por várias razões. Primeiro, a escrita fluida e a oscilação entre diferentes pontos de vista criam uma envolvência pontuada por momentos de surpreendente tensão. Depois, o equilíbrio entre as diferentes personalidade significa que as relações não deixam de ter a sua complexidade, apesar da concisão. E, além disso, há várias surpresas ao longo do percurso que tornam inevitável a curiosidade em querer saber o que acontece a seguir.
Finalmente, sobressai um último ponto. É que, embora ambíguas (no mínimo) quanto à sua moralidade, as histórias dos quatro amigos não deixam de projetar uma reflexão interessante sobre certas facetas da sociedade: os vícios, a violência, os segredos, a infidelidade... enfim, as inúmeras coisas que se podem esconder atrás de portas fechadas. E o facto de as personagens não serem perfeitas projeta uma visão interessante: uma vítima não tem de ser perfeita para ser vítima.
Tudo se resume, portanto, a uma impressão bastante simples: a de uma história que podia certamente ter sido mais longa, mas que, mesmo na sua brevidade, não deixa de ter vários pontos de interesse. E de proporcionar bons momentos de leitura, independentemente do que fica sem resposta.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Terra (Eloy Moreno)

O homem mais rico do mundo - e um dos mais odiados - está gravemente doente e a morte é certa, mas não quer partir sem uma derradeira demonstração do seu poder. E fá-lo não só com um discurso arrasador ao seu vastíssimo público, mas deixando um último desafio aos filhos. Dedicou a vida a enriquecer a qualquer preço. Mas agora o caminho da verdade está próximo. E pode ser devastador. 
Provavelmente a maior qualidade deste livro está na evidente relevância dos temas, com as alterações climáticas em primeiro plano, mas abordando também questões como a dinâmica das redes sociais, a capacidade de influenciar da televisão e a desigualdade de circunstâncias gerada pela riqueza. Não falta, pois, matéria para reflexão e basta isso para que a leitura valha a pena. 
Outro ponto forte está na capacidade de transpor todas estas questões para uma narrativa fluida, cativante e até surpreendentemente leve. Os capítulos curtos e a oscilação entre momentos e perspetivas conferem ao enredo uma intensidade viciante, o que, somado à sucessão de surpresas, prende do início ao fim. 
Quanto à construção das personagens, fica uma ligeira ambiguidade, resultante não só de alguns pontos que ficam em aberto do passado, mas também do facto de nenhuma delas ser do género que desperta empatia absoluta. Sendo certo que faz sentido que assim seja, atendendo às circunstâncias da história e à mensagem subjacente. 
Intenso e viciante, suficientemente ambíguo para recordar as imperfeições da humanidade e carregadinho de matéria importante para ponderar, trata-se, pois, de um livro simultaneamente leve e profundo, complexo quando baste, mas surpreendentemente leve de se ler. E tudo isto converge, enfim, em algo muito simples: uma boa história e uma leitura marcante.

Revelação de capa: A Espia do Oriente



UM ATENTADO IMINENTE. UM SEGREDO ENTERRADO NO PASSADO. UM HOMEM E UMA MULHER QUE SE ODEIAM, FORÇADOS A TRABALHAR JUNTOS.
A gozar de uma licença de serviço por motivos de saúde, o diretor do Gabinete de Informação e Imprensa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, um espião ocasional, é chamado de regresso ao ativo. Um cientista foi raptado e um atentado afigura-se no horizonte, ameaçando o equilíbrio político da Europa.
Porém, quando uma mulher enigmática, cujo nome e passado são mantidos em segredo, se oferece para trabalhar com o espião português, o mistério adensa-se. Ela tem no seu historial vários furtos e homicídios, mas será ele capaz de resistir à tentação da sua beleza exótica e invulgar?
Entre cenários tão variados quanto cosmopolitas de locais como Courchevel, Budapeste, Dubai e Lisboa, A Espia do Oriente é um thriller psicológico de leitura compulsiva, que nos transporta para uma teia complexa de mentiras, traições e reviravoltas inesperadas, como só Nuno Nepomuceno consegue criar. 

sábado, 10 de setembro de 2022

Senciente (Jeff Lemire e Gabriel Walta)

A vida na Terra parece estar próxima do fim, e é por isso que a esperança da humanidade está no envio do maior número possível de naves para a colónia, a fim de reconstruir a vida noutro local. Mas há um grupo de separatistas que acredita que a liberdade só pode ser conseguida cortando todas as ligações com a Terra. E é assim que se justifica o ataque que mata todos os adultos da U.S.S. Montgomery, mas que está longe de ser um sucesso total. É que, antes de morrer, uma das tripulantes conseguiu alterar os protocolos da inteligência artificial da nave, Valarie, e assim salvar as crianças. Agora, cabe a estas completar a missão e encontrar o caminho para a colónia... apesar dos perigos que continuam à espreita.
Parte do que torna esta história tão cativante é que, apesar do seu cenário futurista, dos elementos completamente distintos e da inevitável brutalidade de certos aspetos, a alma e a essência deste percurso está em algo de muito próximo e conhecido: os laços de afeto e as relações familiares - de sangue e não só. A ligação entre as crianças e Valarie é particularmente enternecedora, mas há todo um espectro emocional nesta aventura que gera emoções fortes. A capacidade de emocionar é, aliás, a maior força deste livro, ainda que haja vários outros aspetos cativantes nesta história.
Outro aspeto particularmente poderoso prende-se, aliás, com este contraste entre ternura e brutalidade, que é particularmente visível no aspeto visual. Algumas das mortes são bastante gráficas e o facto de os sobreviventes serem crianças gera necessariamente uma sensação de inocência perdida que transparece das expressões. Ainda assim, não é só o choque que transparece. Há uma expressividade bastante tangível nas personagens, sobretudo em Lil e em Isaac, que faz com que as emoções estejam sempre à flor da pele, mesmo nos momentos em que é a ação a dominar o enredo.
E, por falar em ação, importa salientar que, embora as emoções pareçam dominar, ação é coisa que não falta neste livro. Há momentos de grande intensidade desde as primeiras às últimas páginas e várias surpresas ao longo do caminho a manter sempre viva a curiosidade em saber o que se seguirá. Além disso, dado o rumo da história, é inevitável que não possa haver conclusões perfeitas. Mas, no seu equilíbrio de perda e sobrevivência, de perplexidade e superação, tudo converge para um final perfeitamente adequado ao caminho percorrido por estas personagens.
Intensidade, ação, expressividade e muita, muita emoção: são estes os elementos que tornam esta aventura tão memorável. Uma viagem a um futuro diferente, igualmente suscetível à crueldade e ao erro, mas onde o amor e a ternura permanecem imutáveis. Muito bom.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O Ovo Bom (Jory John e Pete Oswald)

Era uma vez um ovo bom. Muito, muito bom. Tão bom que se sentia na obrigação de garantir que os outros ovos da sua caixa eram igualmente bons. Só que, bem... não eram. E um dia, o esforço desmedido de os tentar mudar a todos, sem olhar para si mesmo, começou a cobrar o seu preço. E ao sentir que estava literalmente à beira de quebrar, o ovo bom tomou uma decisão difícil. Difícil... mas possivelmente necessária.
Parte do encanto destes livros - tanto este como o anterior A Semente Má - está na capacidade impressionante de transmitir mensagens importantes de forma muito concisa, mas também muito certeira. Se virmos bem, e ainda que, à primeira vista, a premissa pareça ser diametralmente oposta, os dois livros têm até uma base comum: a ideia de equilíbrio. De certa forma, aqui os papéis invertem-se. É ao querer ser perfeitamente bom que o ovo se esquece de si mesmo e começa a perder a serenidade e o equilíbrio interior. Mas a reflexão é comum, no fundo. Podemos sempre melhorar e corrigirmo-nos. Mas não temos de ser perfeitos sempre e em tudo - até porque ninguém o é.
Ora, tendo esta mensagem em mente, extrai-se uma conclusão: que, sendo embora um livro infantil, a mensagem deste livro é importante para todos. E é particularmente curioso notar que, na sua imensa simplicidade, essa mensagem passa, mesmo aos olhos de um leitor adulto. Há como que uma certa ternura que se sobrepõe às improbabilidades, ao olhar que procura uma história mais complexa ou realista, e que realça o essencial. Há matéria para reflexão nesta muito breve história, e isso independentemente da idade de quem a lê.
Finalmente, importa salientar as ilustrações, divertidas, coloridas e sobretudo muito expressivas. Ora isto é particularmente notável tendo em conta que as personagens são ovos. Mas a verdade é que não são uns ovos quaisquer. São ovos com uma vida muito agitada - e isso reflete-se nas expressões e nos gestos.
Simples, breve, terno e cativante - além de transbordante de cor e com uma mensagem fundamental e muito bem abordada. Assim é este pequeno e encantador livrinho sobre bondade e imperfeição. E não, não só nos ovos. De todo.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Edgar P. Jacobs - O Sonhador de Apocalipses (François Rivière e Philippe Wurm)

Fascinado pela arte antiga, e sobretudo pelo Egito, com uma veia lírica e uma voz de barítono, grandes sonhos e interesses variados, seriam Blake e Mortimer a guiar grande parte do ritmo das suas criações. Mas, sendo certo que a vida se entrelaça na obra, nenhuma vida é apenas a sua obra. Há também as relações, as aspirações, os erros, os sucessos e os desencantos. E é uma vida toda, refletida na soma das partes, que serve de base a esta singular biografia.
Escusado será dizer, tendo em conta o livro de que se trata, que a grande força desta leitura está no retrato que traça da vida do seu protagonista. E força por duas razões: por ser completa, explorando as muitas facetas do seu percurso, ainda que, nalguns casos, em episódios mais breves, e por ser cativante, dando vida à "personagem" mesmo ao revelá-la aos olhos de alguém para quem será, possivelmente, desconhecida. Podemos chegar a esta leitura sem saber grande coisa sobre Edgar P. Jacobs, podemos até reconhecer apenas o nome. Ao fim do livro, esse conhecimento aprofundou-se consideravelmente.
Outro aspeto particularmente marcante é a exploração do mundo da arte em geral e da banda desenhada em particular, com uma visão bastante pormenorizada de como é construída a arte. Pode até chegar a ser um pouco desconcertante aos olhos de um leigo na matéria - como é, mais do que certamente, o meu caso - mas é também um foco de aprendizagem. Também aqui, podemos não saber nada sobre traços, perspetivas, cores e por aí adiante... Chegaremos certamente ao fim a saber um pouco mais.
E claro, como não poderia deixar de ser num livro como este, sobressai... a arte. O percurso pode até suscitar perplexidade, nomeadamente nas facetas menos conhecidas, mas mesmo nos momentos mais desconcertantes, há sempre o deslumbramento dos cenários e os ecos simbólicos que vão surgindo - egípcios, sobretudo, como seria de esperar. Mas não só.
Finalmente, importa salientar um aspeto especialmente marcante, que é o facto de, além de ser a biografia de um artista, ser principalmente a biografia de um homem, o que significa que há mais do que espaço para reflexões, vulnerabilidades e até alguns inesperados rasgos de emotividade.
Pode ser base de aprendizagem, matéria para reflexão, descoberta do mundo da arte e da vida de uma figura singular. Mas é, acima de tudo, uma história: uma história real, povoada por gente real, e que ganha vida e cor nestas páginas, mesmo para quem pouco mais conhecia do que os nomes. Basta isso para que valha a pena? Absolutamente.

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Santa Família (Eider Rodríguez e Julen Ribas)

A vida é feita de objetivos e de rotinas. Sonha-se com uma família, com uma profissão, com um expandir de horizontes, com deixar descendência. Mas sonha-se... ou é a sociedade que impõe essas expetativas? No caso desta família, tudo se constrói em equilíbrio entre o desafiar de convenções e o mergulhar nessas mesmas convenções. As aspirações iniciais dão lugar a uma profissão mais realista, o amor conduz ao casamento e a uma filha, e eis que se instala a rotina. Até que Nora, a filha do casal, se revela como mais do que uma adolescente normal. E então tudo começa a mudar e a evoluir. Ou a regressar às origens?
Uma das principais forças deste livro é, curiosamente, também o aspeto que gera mais sentimentos ambíguos: a imperfeição. Toda a história gira em torno dela: vidas imperfeitas, personalidades imperfeitas, sonhos imperfeitos, relações imperfeitas. E, porque tudo é imperfeito, não há propriamente uma proximidade total e absoluta com nenhuma das personagens, até porque os equilíbrios das relações tendem a realçar também mais as imperfeições delas. Mas, sendo certo que não são propriamente personagem admiráveis, a verdade é que esta ambiguidade as torna também mais reais: as dificuldades, as rotinas, os atritos e as fricções entre personagens tornam-se mais reais pelo facto de ninguém ser perfeito. Como na vida. E assim, mesmo quando a faceta inesperada da história ganha forma, é a humanidade das personagens que se destaca - nas qualidades e nos defeitos.
Esta imperfeição das personagens repercute-se também num aspeto visual que parece procurar refletir, acima de tudo, gentes e hábitos reais. Sim, salvo as devidas exceções de certas revelações da história, que criam também um contraste visual interessante (mas que importa manter em aberto). Mas a imagem geral que se forma é a de pessoas comuns num cenário razoavelmente normal - e isso é tão notório a partir do enredo como dos cenários e das expressões.
Finalmente, importa referir outra ambiguidade. Não se trata propriamente de uma história de grandes acontecimentos (ou, pelo menos, vistos de uma perspetiva exterior à desta família). E assim, salvo as já referidas revelações inesperadas, também não são os grandes momentos a ter o maior impacto. São as reflexões que emergem desta história: sobre a vida, sobre o crescimento, sobre a independência, sobre a rotina... Sobre todas as imperfeições que definem a existência humana.
História de uma vida familiar aparentemente comum nas suas imperfeições, mas com laivos de surpresa e muita matéria para reflexão, eis, pois, um livro que pode deixar alguns sentimentos ambíguos, mas que não deixa de refletir com impacto a estranha vulnerabilidade do ser humano. E isso basta. Sem dúvida.

sábado, 27 de agosto de 2022

Caligrafia (Alexandre Assine)

Paisagens resumidas a meia dúzia de palavras e histórias traçadas com a mesma devastadora concisão. Contemplações que oscilam entre a nostalgia e a afeição e confissões rasgadas de uma assumida e estranha crueldade. Fragmentos que se conjugam em cadernos mais vastos, poemas que se encadeiam sem verdadeiramente se unirem e uma voz que nunca se torna verdadeiramente definível. Mas que fascina, ainda assim.
Não é fácil definir este livro. Se a poesia já tem, por si só, o seu habitual núcleo de singularidades, a deste livro eleva-as à mais alta potência. Não é fácil falar de conteúdo, quando o que fica do conteúdo são imagens projetadas diretamente para o pensamento, que fluem com uma naturalidade quase intangível, que ganham vida durante a leitura, mas que são demasiado breves - apesar de muito memoráveis - para descrever. E quanto à estrutura, é tão diversa que é mesmo essa a única característica que se pode salientar. Não há forma ou regra que não seja explorada e moldada segundo uma imagem distinta.
Ora, ante um livro tão difícil de descrever, o que se pode salientar sobre ele? Bem, talvez os contrastes. Entre esta intangibilidade e a forma como nunca deixa de cativar ao longo da leitura, desde logo. Entre a brevidade extrema e a complexidade das imagens traçadas. Entre fios de proximidade e outros de uma contemplação distante, quase indiferente. E entre formas que fluem sem nunca se cingirem estritamente à sua definição.
É um livro breve e de poemas breves, fugaz ao ponto do indefinível. E, ainda assim, deixa as suas marcas. Importa, por isso, salientar um último ponto, o da singularidade. É certo que assume, por vezes, estruturas familiares, mas faz moldando-as numa forma diferente. E isso é simultaneamente desconcertante e fascinante.
Breve e indescritível, onírico e enigmático, eis, pois, um livro difícil de explicar, mas que, na sua inefabilidade, não deixa de se entranhar no pensamento. E basta este estranho equilíbrio - esta naturalidade indefinível - para fazer com que valha a pena viajar por estes poemas.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Moonshine, Vol. 5 - Bebida de Guerra (Brian Azzarello e Eduardo Risso)

Lou Pirlo está de volta a Nova Iorque, acompanhado pelos seus cada vez mais numerosos fantasmas e decidido a pôr finalmente termo a todos os males que, voluntária e involuntariamente causou. A Lei Seca está a poucos dias do fim e fará com que tudo mude para todos. Mas as guerras, essas, não desapareceram e terão de se intensificar antes do fim. É por isso que Lou tem um plano para resolver, dentro do possível, o caos que o rodeou. Mesmo sabendo que, para o fazer, terá de arrastar conflitos passados para o presente e de aceitar que é bem provável que não chegue vivo ao fim de tudo.
Tendo em conta o percurso que nos conduziu até aqui, há certas coisas que eram, à partida, expectáveis para este volume final. A rapidez dos desenvolvimentos é uma delas, e eleva-se aqui a um ritmo ainda mais intenso, em que tudo se transforma de uma página para a outra e chega a ser difícil acompanhar as mudanças da teia de relações. Faz sentido que este ritmo atinja aqui uma espécie de apogeu, pois é aqui que tudo se encerra. E, sendo certo que fica, por vezes, a sensação de um avanço ligeiramente apressado, a verdade é que este ritmo alucinante acaba também por enfatizar as reviravoltas e por preparar terreno para a devastadora intensidade do final.
Outro aspeto bastante evidente é que, tendo em vista todo o passado, nunca se poderia esperar um final limpo e harmonioso. É tudo menos isso. Mas não deixa de ser um final extremamente adequado: todos os fios do passado convergem para esta conclusão, proporcionando momentos de enorme impacto, grandes surpresas, alguns inesperados rasgos de emoção e uma resolução final que pode não ser a mais desejada, mas é a que faz mais sentido. Tendo em conta a personagem... e os seus fantasmas.
Visualmente, sobressaem os habituais contrastes de luz e de sombra, o equilíbrio entre o belo e o monstruoso e um elemento que se torna mais vincado neste volume final: a expressividade retorcida das personagens, e particularmente de Lou, que reflete não só a sua natureza dual, mas o lado atormentado que só aqui se torna verdadeiramente claro. O equilíbrio entre arte e enredo sempre foi claro, mas aqui torna-se ainda mais evidente. E particularmente intenso nas últimas páginas.
Intenso, furiosamente rápido e com um equilíbrio eficaz entre mundano e sobrenatural, entre violência e redenção... e, claro, entre vida e morte... trata-se, em suma, de uma conclusão à altura para uma série muito cativante. E que nem sempre será fácil de entender nas suas singularidades... mas que vale bem a pena conhecer.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Talvez Devesses Falar com Alguém (Lori Gottlieb)

Terapia. Haverá quem pense que não passa de um desabafo glorificado, ou de algo que não serve para muito mais do que procurar conselhos. Outros vê-la-ão como um remédio rápido, uma procura de respostas imediatas para os problemas da vida. E outros haverá ainda que nem querem ouvir falar em tal coisa. Mas como é? Como funciona? E mais, quem é a pessoa do outro lado? Este é um livro sobre terapia que não é só sobre terapia. É a história de uma terapeuta, das suas pessoas mais próximas, dos seus pacientes... e, sim, do seu terapeuta também. E há algo de fascinante em como tudo isto se entrelaça.
Algo que importa referir acerca deste livro é que, apesar de ser longo, e de merecer ser apreciado com calma, não é um livro pesado nem dramático. Há uma leveza na forma como a autora escreve que dá vida a cada episódio e a cada reflexão, sem lhe retirar intensidade ou impacto - e, sim, há momentos de justificado dramatismo - mas com uma serenidade que transborda. E assim, é um livro que se lê com fluidez, mas que merece ser lido com atenção plena. Até porque não faltam frases memoráveis, daquelas que se entranham no pensamento, a surgir quando menos se espera.
É também, inevitavelmente, um livro com muito material para reflexão. A própria natureza do tema exige que assim seja. Mas também neste aspeto a voz da autora faz com que tudo flua com naturalidade. Seremos levados à introspeção, mas sempre de forma simples, sem análises demasiado complexas ou rebuscadas, mas olhando para a vida - para as deste livro e para a nossa - e tirando daí as necessárias conclusões. É quase como se o livro falasse ao pensamento, como se as ideias se tornassem parte de nós. Como se fossem, à sua maneira, também uma espécie de terapia.
Ainda um último ponto a destacar vem, naturalmente, das histórias. Não é um livro de ficção, mas tem momentos em que se lê como se fosse, porque as histórias destas pessoas têm a envolvência de um romance. E saber que são reais aumenta a intensidade, a proximidade e a força. É quase como se tornassem conhecidas. E é curioso como, tendo em conta que, para a maioria destas pessoas, a história não acaba no que é contado neste livro, a forma que estas histórias assumem no livro permite uma conclusão satisfatória.
Lê-se com leveza, mas persiste. Não é um guia nem um livro de autoajuda, mas não deixa de esconder pérolas de sabedoria no seu interior. E é uma história pessoal, mas que nos reflete, e que por isso se entranha, cativa e apela à reflexão. É longo e merece ser lido com calma. E, acima de tudo, merece muito ser lido.

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Nevada, Vol. 1 - A Estrela Solitária (Fred Duval, Jean-Pierre Pécau e Colin Wilson)

Nevada Marquez tem uma vida singular. O seu trabalho consiste em fazer os trabalhos que ninguém quer fazer para a indústria de Hollywood, e nomeadamente para uma mulher com a qual parece ter um passado em comum. E muitas vezes, esse trabalho sujo consiste em recuperar fugitivos ou tirar celebridades de sarilhos que julgavam que podiam evitar sozinhos. É o caso da Estrela Solitária, um ator que, em plenas filmagens, decidiu sair do país para uma escapadela alcoólica e está agora dividido entre uma escolha impossível: um casamento forçado ou um duelo. A não ser... que Nevada chegue lá primeiro.
Tendo em conta a premissa desta história, de uma vida dividida entre dois mundos e com bastantes mistérios a pairar sobre o passado, é inevitável, de certa forma, não sentir que este primeiro volume é demasiado breve. Ao conjugar as missões do protagonista com o pouco que vai sendo revelado sobre a sua vida prévia, o fim chega com mais perguntas do que respostas, ainda que a missão central fique resolvida. E assim, sendo certo que o equilíbrio entre as duas partes - pessoal e profissional, por assim dizer - é satisfatório quanto baste, fica muito em aberto no final deste primeiro volume. E a sensação de que certas relações pudessem ter sido já bastante mais aprofundadas.
Se a história parece, por vezes, demasiado concisa, já a parte visual tem um equilíbrio especialmente eficaz. A história vive entre dois mundos: um ambiente de western e o mundo de Hollywood. E esta divisão é palpável na arte, com as cores a estabelecer uma diferença clara e os cenários, repletos ou quase desertos, a reforçarem esse contraste. Além disso, o equilíbrio de luz e sombra acaba por refletir também as próprias personagens: as expressões ambíguas de Nevada (e não só, mas principalmente de Nevada) adensam o mistério do muito que há ainda por dizer.
E sim, fica curiosidade insatisfeita, obviamente. Mas importa lembrar que este é apenas o primeiro volume da série e que a curiosidade que fica não é do tipo que faz desistir, mas de que deixa uma vontade intensa de saber o que se segue o mais rápido possível. Sendo certo que a história da Estrela Solitária parece ter ficado resolvida. Já a de Nevada... longe disso.
Breve e enigmático, talvez ao ponto do excesso, mas visualmente muito cativante e com um conjunto de contrastes - tanto visuais, como de enredo - particularmente interessante, o que fica é, pois, a impressão de um início conciso, mas mais do que suficiente para intrigar. E para querer descobrir o que se segue, naturalmente.

domingo, 14 de agosto de 2022

O Apelo (Janice Hallett)

Duas estudantes de direito recebem do seu mentor um conjunto de correspondência alegadamente associado a um possível caso. E nada mais. Nem um contexto prévio, nem qualquer ligação aos possíveis crimes envolvidos ou a mais ínfima informação sobre os envolvidos. Porquê? Porque Roderick Tanner acredita que é essa a melhor forma de gerar uma nova perspetiva sobre o caso - e talvez descobrir o que falta para repor a verdade. É neste cenário que a história começa a desenrolar-se, com a correspondência a revelar relações, personalidades, sombras de tragédia e de mistério. Há um grupo de teatro, uma criança gravemente doente e uma angariação de fundos para um tratamento experimental. E há também muitas mentiras. Tantas que a revelação da verdade pode ser fatal.
Parte do que torna este livro tão viciante - e oh, se é viciante - é a sua estrutura singular. Todo ele é composto por documentos: transcrições de interrogatórios, trocas de mensagens, listas, um ou outro bilhete e muitos, muitos e-mails. E nada mais. É a partir desta abundante correspondência que a história e os seus enigmas vão sendo revelados, que as reviravoltas ganham forma, que as múltiplas facetas das personagens se manifestam. E acompanhar esta teia irresistivelmente complexa facilmente se torna absurdamente viciante.
Outro aspeto particularmente forte prende-se com o equilíbrio entre a leveza da leitura, resultante em grande medida do registo epistolar, e a abundância de temas pesados que a envolvem. Sim, o cerne da história pode estar na descoberta do responsável por um crime, mas há muito mais para além disso. Há o espírito de comunidade, explorado na mobilização em auxílio de uma criança doente, e a forma como esse espírito pode assumir contornos mais ambíguos, na forma de encobrimentos e de rumores. Há o motivo que levou uma das personagens a regressar de África, com um tema particularmente pesado associado a algumas das suas revelações. Há questões de doença mental, visões sobre o funcionamento da justiça e um tipo de intriga que mexe inevitavelmente com as emoções, pois gira em torno da confiança das pessoas. E assim, a história é leve, mas não simples, e tem mais complexidades além do seu mistério central.
Mas, claro, é um mistério. E quanto a esse aspeto, sobressaem duas coisas: a sucessão alucinante de reviravoltas que vai ganhando forma ao longo da correspondência. E as revelações finais, que, além de inesperadas, ganham uma intensidade maior devido à sensação de proximidade anteriormente gerada em relação às personagens. Tal como na vida real, também aqui julgamos conhecer as pessoas. Mas nunca por completo. Nunca.
Viciante, intenso e carregadinho de surpresas, este é um livro em que tudo é singular, desde a estrutura às personagens, sem esquecer a sucessão de revelações. E é isso que o torna tão memorável: que tudo encaixa nos sítios certos, nas medidas certas, para dar forma a uma viagem absolutamente imprevisível. Muito, muito bom.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Assombro (Richard Powers)

Na sua profissão de astrobiólogo, Theo Byrne está habituado a formular teorias complexas sobre a possibilidade de existir vida noutros planetas. Mas os problemas que o assombram estão bem mais perto do que isso. Viúvo e a ter de lidar com a sua própria perda, Theo tem também de encontrar uma forma de lidar com o filho. Robin, de nove anos, é uma criança diferente, que vê o mundo como mais ninguém vê, mas que tem também grandes dificuldades em controlar as suas emoções. E, após alguns incidentes, Theo está a ser pressionado a deixar que o seu filho seja medicado, mas ele quer encontrar uma alternativa. Será possível encontrar uma forma de domar a mente brilhante de Robin sem apagar quem ele é? E valerá a pena experimentar algo sem resultados provados, mas que os pode levar a ambos para mais perto do que amam? Uma coisa é certa: Theo não tem muito a perder. E talvez Robin tenha tudo a ganhar.
Tudo neste livro é absurdamente prodigioso - basta isto para o descrever, na verdade. Da escrita à estrutura, passando pelos desenvolvimentos da própria história e pelos paralelismos evidentes - e certamente aterradores - com a nossa realidade, sem esquecer a profundíssima emoção que transborda até dos mais inesperados momentos, tudo neste livro é simplesmente prodigioso. Beleza pura. Emoção pura. E pura devastação.
E, tendo isto em conta, talvez seja bom salientar que Assombro é basicamente o título perfeito para esta história, porque, se olharmos bem, toda ela gira em torno dos vários motivos que a vida nos dá para o espanto. A mistura de inocência, brilhantismo e dor de Robin lembra-nos que há perdas que não se ultrapassam, que todos travamos as nossas batalhas interiores, que ser diferente não é ser inconsciente e que tudo na vida tem um preço. A posição devastadora de Theo lembra-nos as alturas na vida em que nos sentimos impotentes, o desconcerto ante aquilo de que o mundo é capaz e o assombro ante a beleza inesperada das coisas mais simples. E o caminho percorrido por ambos... bem, esse leva-nos de assombro em assombro, nas palavras, nas memórias, no confronto com o absurdo do mundo e no infinito inefável da imaginação.
E a própria escrita realça tudo isto, com o seu equilíbrio entre episódios curtos, mas de uma complexidade profunda, com a sua voz singular, mas absurdamente certeira, com a profusão de frases memoráveis que brotam de onde menos se espera e com a forma como cada presença e cada pensamento parecem repercutir um mundo mais próximo do nosso do que parece confortável.
Termino com uma repetição, porque tudo neste livro é realmente prodigioso. Prodigioso e devastador na sua intensidade emocional e na forma como conjuga beleza e angústia, esperança e desespero, assombro ante o esplendor da vida e assombro ante a capacidade para a crueldade do ser humano. Tudo é brilhante neste livro. Tudo é inesquecível.

domingo, 7 de agosto de 2022

A Semente Má (Jory John e Pete Oswald)

Era uma vez uma semente má. Muito má. E, por onde quer que passasse, todos a reconheciam como tal. Porquê? Bem, porque fazia muitas maldades. Mas o que ninguém perguntava - nem a própria semente - era porquê. Porque era a semente má tão má? Bem, o passado tinha-lhe feito coisas que a transformaram. Mas o que mudou para pior também pode mudar para melhor. E, às vezes, basta uma oportunidade para começar.
Um dos aspetos mais impressionantes deste pequeno livro é a forma como as questões que suscita têm tanta importância para o seu público-alvo como para os leitores de todas as idades seguintes. Bem e mal nem sempre são facilmente distinguíveis. Muitas vezes, as más ações - e sim, estas podem ser fáceis de reconhecer - têm motivos mais complexos do que o ser mau apenas porque sim. Os traumas do passado deixam marcas e repercutem-se nas atitudes. E há sempre a possibilidade de mudar: basta uma oportunidade e quere fazê-lo.
E tudo isto está presente nas quarenta páginas deste livro? Sim, e com uma precisão muitíssimo certeira. A história da semente má é muito simples e breve, como seria, aliás, de esperar, tendo em conta o género do livro, mas tem tudo nas medidas certas. Uma mensagem forte, uma história cativante, um equilíbrio perfeito entre leveza e emoção e muita vida a transbordar das páginas.
E, claro, muita dessa vida vem também do aspeto visual, num livro em que as ilustrações são particularmente deliciosas e têm uma expressividade que fica na memória, principalmente tendo em conta a natureza das personagens. Sim, porque a semente má é... bem, uma semente, mas é também uma semente muito expressiva.
Mensagem, ilustrações e história: tudo neste livro converge para um equilíbrio particularmente eficaz. E que transcende o âmbito de um livro infantil, pois dá-nos a todos, crianças e adultos, muito material para reflexão sobre o que somos e o que queremos ser na vida. Muito bom.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

A Vingança do Conde Skarbek (Yves Sente e Grzegorz Rosinski)

A chegada de um conde polaco a Paris começa por despertar curiosidade na sociedade, em parte devido ao seu aspeto misterioso e estranho. Mas quando se espalha a notícia de que o homem tem um interesse particular por um pintor que morreu prematuramente e cujos quadros ficaram nas mãos de um homem sem escrúpulos, a curiosidade torna-se apreensão. E o conde Skarbek não tarda a justificar esses receios. Movendo cordelinhos no sítio certo, desencadeia um processo contra o seu arqui-inimigo. Mas o processo que devia ser a revelação da verdade - e a apoteose de uma vingança magistral - é apenas o início do desfazer de uma longa e complexa teia de mentiras.
A ideia de um conde misterioso com um ajuste de contas a executar devido a injustiças passadas soa vagamente familiar - pelo menos para quem conhecer a obra de Alexandre Dumas. E, antes de mais, importa realçar que esse paralelismo é premeditado. Como bem demonstram certos desenvolvimentos da fase final que não convém aqui descrever. Mas este paralelismo merece destaque. Porquê? Porque quem gostou do outro conde, também vai certamente apreciar a história deste.
Mas olhemos então para a história de Skarbek. E, neste livro, é inevitável destacar dois aspetos, um na arte e outro na história. Na arte, o que sobressai acima de tudo é o equilíbrio perfeito entre luz e sombra. Há cenários vastos e visões de pormenor, há confrontos de multidões, grandes duelos e momentos de uma vaga introspeção, além, claro, das repercussões de um contexto histórico cuidadosamente refletido nas imagens. Mas, em tudo isto, há contrastes poderosos, traços que se destacam da sombra e luzes que tudo invadem, equilíbrios entre o visto e o insinuado. E isso torna tudo - os cenários, as expressões, as figuras - particularmente marcante.
Quanto à história, sobressai obviamente a sucessão de surpresas. Num enredo que gira todo ele em torno de vinganças e de regressos imprevistos, e de uma mentira tornada verdade e que é imperioso desmentir, é impressionante a quantidade de vezes que este livro nos leva a pensar que já sabemos tudo para depois nos revelar uma nova possibilidade. E sim, isto acontece mesmo até ao final, uma conclusão intensa e suficientemente ambígua (do ponto de visto emocional, não no enredo) para deixar como que um sentimento de pertença para trás.
Visualmente brilhante e com uma história surpreendente em todas as suas facetas, este é um livro que fascina desde a primeira à última página: pelos diálogos, pela visão e sobretudo pela intensidade da história. E, para quem gostou de conhecer um tal conde de Monte Cristo... bem, será certamente recomendável conhecer também o conde Skarbek.

sábado, 30 de julho de 2022

Este Livro é Cinzento (Lindsay Ward)

O cinzento está farto de ser excluído. Só porque não faz parte do arco-íris, isso não significa que tenha de ser visto como aborrecido, mas o que é certo é que as outras cores estão sempre a deixá-lo de fora. Por isso, decidiu escrever um livro. Um livro cinzento, para provar que a sua cor também serve para contar uma história. Só que as outras cores não estão lá muito satisfeitas com isso. E, quando se começam a intrometer no projeto do cinzento, ele começa a sentir-se novamente desprezado... e à beira de uma explosão.
É inevitável que seja a mensagem a sobressair neste livro: temos uma cor que é excluída porque os outros a veem como diferente e, por isso, a deixam de parte ou entendem como negativa. Parece familiar, certo? Mas é interessante como este livro cinzento pode servir de base para múltiplas abordagens: desde logo, a questão de que não há cores menores aproxima-se de um tema muito pertinente na atualidade. Mas as diferentes cores servem também de ponto de partida para uma visão mais estrita - a aplicação das diferentes cores, primárias, secundárias e por aí adiante, ao mundo da arte - e também para uma visão mais ampla, a de que nenhum tipo de exclusão faz sentido. E assim, mais uma vez, é a mensagem que sobressai: em múltiplas facetas, todas elas relevantes.
Quanto à história, é naturalmente muito simples, como seria de esperar, mas também surpreendente. Até porque, de certa forma, acabamos por ter duas histórias: a do cinzento e a que o cinzento quer contar. E embora sejam ambas muito breves, têm ambas os seus momentos singulares e divertidos e um toque de ternura bastante eficaz.
Naturalmente breve, mas bonito e relevante, trata-se, pois, de uma história cheia de matizes - sim, de cinzento e não só - e com uma mensagem muito forte. Capaz de servir de ponto de partida para questões complexas e para transmitir mensagens de igualdade, diversidade e amizade.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Armazém Central: As mulheres | Notre-Dame-des-Lacs (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp )

Passou um ano, e ninguém poderia ter imagino que a tranquila Notre-Dame-des-Lacs ia sofrer tantas mudanças em tão pouco tempo - no espaço, nos costumes e até na mentalidade. E as mudanças ainda não acabaram. Agora, com um novo inverno à porta, e tendo os homens voltado a partir, as mulheres veem-se a braços com novas questões. A alegria das mais novas despertou em todas as outras uma mistura de nostalgia e de dúvida capaz de as levar a novos caminhos. Marie está grávida, não sabe quem é o pai... e, ainda assim, espera aceitação, porque a vida é sua e de mais ninguém. Já o padre, em plena crise de fé, tem muito mais para dar do que apenas apoio espiritual. E a aldeia vai mudando. As pessoas vão mudando. E o mundo... o mundo cresce.
Sendo este o último volume da série, é naturalmente de esperar que seja também o das resoluções finais, aquele em que tudo converge e em que o pano desce sobre uma história encerrada. Bem, mas se nos lembrarmos dos volumes anteriores, também sabemos que esta não é uma história que viva apenas de grandes momentos. É, aliás, nas pequenas coisas que está a sua alma. E assim, este volume final confronta-nos com uma certa ambiguidade, em que há resoluções perfeitas e outras que ficam pela sugestão, em que há soluções que parecem, talvez, demasiado simples, mas em que tudo se ajusta à serenidade global. E assim, pode não ser um final estrondoso, mas é um final enternecedor, e reforçado ainda mais pelo delicioso álbum de fotografias no final... que dá um bocadinho da história depois da história.
Importa também referir, naturalmente, que se mantêm todas as qualidades que vinham de trás, com destaque para a ternura e para a expressividade. Toda esta série é visualmente belíssima, mas é na expressividade - e numa expressividade que não se cinge às personagens humanas - que está o fulcro de maior intensidade, independentemente das belas paisagens e do movimento transbordante da dança (que também dão ampla vida a estes livros). Mas é a expressividade, acima de tudo, porque é a expressividade que reflete a ternura. E é a ternura avassaladora desta história que a mantém sempre memorável - mesmo quando os conflitos geram tensões desagradáveis, mesmo quando há decisões difíceis de assimilar, mesmo quando a perda se abate. Há ternura e união e comunidade... e isso é maravilhoso.
Não será, talvez, o livro mais marcante da série, sobretudo devido às já referidas ambiguidades. Mas não deixa de estar à altura da longa viagem e de ser um final perfeitamente adequado. Porquê? Porque, entre o que resolve, o que sugere... o que quase nem insinua... deixa um reflexo perfeito da vida como ela é no mundo real. Nem tudo tem respostas. Nem tudo tem soluções perfeitas. E a vida é feita de pequenas coisas, em Notre-Dame-des-Lacs como noutro sítio qualquer.
É essa a maior beleza desta série - a de como reflete realidades e, ao mesmo tempo, aspirações mais nobres. A de como traça os conflitos do dia a dia e lembra, ao mesmo tempo, o que realmente importa. A de como nos mostra gente perfeitamente normal... e nos faz sonhar com a união dessas pessoas. Vale a pena fazer esta viagem? Vale muito a pena. Só é mesmo pena que fique por aqui.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Moonshine, Vol. 4 - Embarrilado (Brian Azzarello e Eduardo Risso)

Incapaz de controlar aquilo em que se transformou, exceto com recurso ao álcool, Lou Pirlo afoga as suas tristezas num bairro de lata em Cleveland, sem imaginar que aquilo que deixou para trás continua por perto. É que, além da sua nova natureza e dos fantasmas que o acompanhou, também a sua antiga vida de mafioso persiste em assombrá-lo. Entretanto, há um assassino em série à solta - e Lou não tem bem a certeza de que não possa ser ele. Mas, quando o seu caminho se cruza com o de um velho conhecido, novas questões começam a emergir...
Parte do que torna esta série tão intensa - e também parte do que deixa, por vezes, deixa alguma curiosidade insatisfeita - é a velocidade alucinante com que tudo progride. Há sempre algo a acontecer, novas surpresas a emergir, e não há verdadeiramente descanso para nenhuma das personagens. Neste volume, a história divide-se entre os planos de vingança de Tempest e a... bem, falta de planos de Lou. Mas que Lou Pirlo tenha falta de planos não significa que a vida não tenha planos para ele. E a evolução frenética deste volume, com o poderoso crescendo de intensidade da fase final, é prova disso.
Outro ponto interessante é o persistente entrelaçado de crime e horror, que espalha enigmas por ambas as facetas ao mesmo tempo que levanta novas perguntas para cada resposta dada. Lou continua tão perdido em relação àquilo que é como quando a mudança aconteceu. E, ainda assim, a história vai muito além das suas disputas interiores. Fica, aliás, uma certa curiosidade em conhecer um pouco mais desta faceta, pois o cenário global acaba por fazer com que passe, por vezes, para segundo plano. Ainda assim, quando se manifesta, fá-lo com a máxima intensidade... e nos momentos mais delicados.
Finalmente, importa referir o que é, provavelmente, o traço visual mais marcante: os contrastes de cores e de expressões. É como se o cenário se ajustasse aos ritmos da ação e dos estados de espírito, com a luz dos dias e a escuridão das noites a acompanhar as diferentes vertentes da história. Há, aliás, um contraste particularmente interessante: o de uma decisão de uma das personagens que não é realmente mostrada na sua execução, mas que transparece das expressões de outras personagens.
Deixa a ligeira impressão de que poderia ser uma história um pouco mais longa. Mas não lhe faltam, ainda assim, qualidades: intensidade, ritmo, expressividade e mistério. E basta isso - aliás, é mais do que suficiente - para que valha sempre a pena regressar a esta série. Onde o mistério persiste no natural e no sobrenatural.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

As Musas (Alex Michaelides)

Para Mariana, regressar a Cambridge só pode ser penoso, pois tudo lhe recorda o amor que perdeu. Mas não tem propriamente alternativa, pois a melhor amiga da sobrinha foi assassinada e pede-lhe que a vá apoiar. E assim que chega, não tem tanto tempo como julgava para lidar com as memórias. O caso é desconcertante, a morte foi brutal e há um óbvio suspeito que todos parecem ignorar. Mariana está convencida de que Edward Fosca, um professor com um óbvio grupo de favoritas, foi o assassino, apesar de ter um álibi para o momento do crime. E, já que ninguém lhe dá ouvidos, terá de ser Mariana a investigar. Mas nada naquela situação é normal. Há contornos rituais e ligações secretas que não podem deixar de desconcertar Mariana. E a morte da amiga de Zoe é, afinal, apenas o início...
Com capítulos curtos e uma história carregada de enigmas, este é um livro que facilmente se torna viciante, não só pela força do mistério, mas pela forma como a teia se vai entrelaçando no passado da protagonista. Na verdade, são tantos os fios enredados que há certos aspetos que acabam por passar para segundo plano com o evoluir do enredo, deixando, a espaços, uma ligeira curiosidade insatisfeita. Mas, mais do que as perguntas sem resposta, o que sobressai é, acima de tudo a intensidade. E é a intensidade que prende, da primeira à última página.
Também a construção das personagens tem vários aspetos a destacar, sobretudo na fase final, com as grandes reviravoltas, mas também com a evolução que vai abrindo caminho para essas surpresas. A relação de Mariana e Sebastian, as sombras do passado que se vão insinuando, confere à história um tom de melancolia que torna os desenvolvimentos finais mais chocantes. Já o percurso dos homens da história - Henry, Fosca, Fred, Morris - faz com que, apesar das convicções de Mariana, haja múltiplos suspeitos viáveis e gera momentos de tensão particularmente fortes e também rasgos de inocência surpreendentemente ternos.
Finalmente, e um pouco à semelhança do livro anterior do autor (com o qual, já agora, existem relações discretas, mas claras), importa salientar os laços com o mundo clássico, agora com os mistérios de Elêusis, a tragédia grega e a deusa Perséfone. São elementos que acrescentam complexidade ao livro, além de adensarem o mistério. E que, embora também desenvolvidos de forma discreta, são também um especial ponto de interesse pela relação que têm com o percurso da protagonista.
Ligeiramente apressado, por vezes, mas muito intenso e cativante, trata-se, em suma, de um livro viciante, carregado de mistério e de melancolia e capaz de surpreender em todas as suas facetas. Vale bem a pena, portanto.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

...como que lisboandando (Fernando Machado Antunes)

As cidades têm vida. Têm a vida das ruas por onde as pessoas deambulam, dos monumentos que a contemplam dos séculos, das árvores que lhes dão cor, dos dias e das noites que as banham. Têm também a vida das pessoas que nelas habitam, que por elas passam, que por aí se perdem e encontram e descobrem novas formas de ser. É dessas vidas de Lisboa - as da cidade e as das gentes - que esta poesia é feita.
Ao percorrer as páginas deste livro, existem facetas que se destacam em forma e em conteúdo. Em forma, a cadência, a rima, o entrelaçar dos vários poemas numa estrutura coesa e a forma como tudo isto flui com naturalidade. Em conteúdo, as imagens inesperadas, a mistura de emoção, contemplação e paisagem e a surpreendente proximidade emocional de uma poesia que é, apesar de tudo, relativamente descritiva.
Mas o que sobressai realmente... bem, é a forma como ambas as facetas se entrelaçam e a estranha e fascinante imagem que projetam. Não é preciso conhecer bem Lisboa para entrar nesta leitura e ficar com a sensação de que se deambula pelas suas ruas, pelas suas tradições, pelas suas vidas. Há como que uma presença nas próprias palavras que é tangível em si mesma. E não é preciso conhecer as gentes que a povoam - neste livro, entenda-se - para sentir o mesmo fascínio, ainda que nem sempre se compreendam as especificidades da escolha, a forma de vida escolhida.
E a este entrelaçado juntam-se contrastes e ambiguidades. Como uma viagem pelo desconhecido, há surpresas que marcam e outras que desconcertam, há palavras que aproximam e outras que afastam, há rasgos que ficam na memória e outros que deixam apenas uma vaga perplexidade. É como se todas as facetas convergissem num todo complexo, onde há momentos mais e menos marcantes, mas onde tudo pertence.
Um ritmo próprio, uma voz eficaz e, acima de tudo, uma contemplação de que o afeto pelo tema sobressai com a máxima clareza. Eis a raiz deste pequeno livro de poemas sobre uma cidade que é também pessoas. E, acima de tudo, vida.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Mausart (Thierry Joor e Gradimir Smudja)

Wolfgang Amadeus Mausart é um ratinho que vive no piano do compositor da corte austríaca com a sua família. Leva uma vida discreta, a compor melodias na sua cabeça. Mas tudo muda no dia em que, na ausência de Salieri, decide experimentar o piano, ao alcance dos ouvidos da rainha, que imediatamente exige que Salieri lhe interprete aquela melodia. Só que... Salieri não a sabe. E, se ele não a sabe, alguém terá de a tocar. Senão...
É fácil apontar a grande força deste livro. Basta olhar para capa para ficar uma ideia de que o aspeto visual será deslumbrante. E é-o, de facto. Dos cenários ricamente detalhados à construção meticulosa de um leque vastíssimo de personagens, passando pela forma como a música parece transbordar das páginas, há uma beleza absurda ao longo de todo este livro. E é impossível não sentir um certo fascínio pela forma como esta versão animal da corte, com a sua diversidade e as suas regras singulares, ganha intensa vida através da cor, do traço e da expressão.
Da história propriamente dita, ficam sensações um pouco mais ambíguas, essencialmente devido à relativa brevidade. É que há tanto para explorar e descobrir na arte que acaba por ficar a sensação de que tudo acontece de forma um pouco apressada. Ainda assim, também aqui não faltam forças, desde o reflexo da paixão pela música aos momentos de tensão e de ternura e a uma certa inocência que facilmente desperta sorrisos.
Ainda um último ponto notável resulta da capacidade de emocionar, mesmo numa história tão concisa. Momentos de medo e momentos de alegria, rasgos de esperança e até de uma certa redenção, convivem tranquilamente neste mundo carregado de música, em que as vidas podem ser simples, mas os valores são universais. E há algo de interessante no crescimento das personagens: Mausart é sempre Mausart, mas a sua intervenção oportuna abre para o revelar de novas facetas noutras personagens. E também isso tem o seu quê de fascinante.
Conciso na história, mas vastíssimo na arte, lê-se num instante, mas convida a uma contemplação mais demorada. E, assim, nesta ambiguidade entre o que é simples e o que é imenso, acaba por ficar na memória de todas as maneiras. E pela melhor das razões.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Os Choco-Boys (Ralf König)

Acabado de chegar a Straight Gulch, Lucky Luke procura um trabalho tranquilo que lhe possa servir quase que de descanso. E tomar conta de cinco vacas suíças que precisam de repouso parece tranquilo quanto baste. O problema é que há certas tensões por aquelas paragens, uma história de amor por resolver e as gentes daquela terra precisam de aprender uma lição sobre aceitação da diferença. E, como se não bastasse, onde vai Lucky Luke, aparecem também os seus fãs e os seus inimigos.
É inevitável não começar por salientar o tema flagrante deste livro e a sua importância: diversidade e aceitação. A história de amor entre dois cowboys, não muito bem vista por... bem, quase todos... serve de ponto de partida para uma bela e importante lição, e é impossível não destacar isso como um dos pontos fortes deste livro. Há uma certa ternura que surpreende, tendo em conta o registo global e a própria história, é isso é algo de especialmente memorável.
Mas... nem só de amor vive esta história. Vive de chocolate suíço, de caçadores de autógrafos, da aparição de velhos aliados e inimigos e de um equilíbrio entre tensão e simplicidade. É Lucky Luke a ser Lucky Luke, o que significa que há sempre surpresas, episódios caricatos e um percurso razoavelmente conciso, mas cheio de momentos divertidos. Inesperado quanto baste, mas reconfortantemente familiar... e carregadinho de leveza para tirar a cabeça do mundo real.
Visualmente falando, importa destacar, mais uma vez, o contraste com os outros volumes desta coleção. Cada artista tem um estilo muito próprio, e as diferenças são claras, neste caso com as suas figuras mais redondinhas e expressões mais... desconcertadas. Ainda assim, também aqui sobressai o tal equilíbrio entre diferença e familiaridade, em que cada livro é uma entidade própria e, ao mesmo tempo, parte de um todo maior.
Simples, cativante e muito divertido, quase parece que chega ao fim demasiado depressa. Mas, apesar disso, a impressão que fica é a de uma história com as medidas certas de aventura, humor e surpreendente ternura. Uma bela viagem, em suma.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Querido Monstro (Dita Zipfel e Mateo Dineen)

O medo faz parte da vida. E quando somos pequenos, as pequenas coisas podem tornar-se grandes medos. Mas... nem sempre. Que o diga o monstro deste livro que, apesar de se ter instalado debaixo da cama de uma criança, não consegue assustá-la por mais que se esforce... E não falta criatividade nas suas tentativas.
O ponto mais surpreendente desta pequena história vem, naturalmente, da perspetiva que assume. Afinal, a ideia do monstro debaixo da cama não é propriamente nova, mas ver as coisas da perspetiva do monstro? Já é algo diferente. Além disso, o medo e a procura de formas de lidar com ele são algo de perfeitamente natural. Mas o que resulta desta visão é algo de mais simples, mas também bastante certeiro: opor ao medo a serenidade.
Outro elemento importante prende-se, naturalmente, com o aspeto visual. Sendo um livro para crianças, as imagens dizem tanto como as palavras. Neste caso, sobressaem dois pontos: a carta, que constrói uma imagem do monstro mais vulnerável e falível (tem, aliás, o seu próprio lado infantil, o que cria paralelismos interessantes com a imaginação do seu impassível rapaz); e o contraste entre os deliberados desenhos rabiscados desta carta e as ilustrações mais vivas e complexas que a complementam, dando uma visão mais clara de quem é este monstro frustrado com a sua vida profissional.
É, naturalmente, uma história breve, e bastante simples. Não há grandes reviravoltas nem grandes desenvolvimentos. Ainda assim, há uma exceção peculiar. Dada a forma como a história é escrita, quase que se antecipa um certo final... e depois as coisas seguem um rumo que não é bem o esperado, numa conclusão menos linear, mas mais forte, para esta carta de aparente despedida.
Simples, cativante e com o seu quê de enternecedor, trata-se, em suma, de um belo ponto de partida para uma primeira reflexão sobre o medo. E para uma perspetiva diferente dos monstros debaixo da cama da nossa própria imaginação.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Amor de Pechisbeque (Pedro Rodrigues)

O fim de uma relação pode ser o início de um novo caminho, mas não é por isso que deixa de doer. Que o diga o escritor, que, apesar do conforto dos amigos, tem de lidar não só com o bloqueio criativo, mas com tudo o que não estava preparado para perder. No início, julga que uma nova relação pode ser a solução para todos os seus problemas. Mas precisa de se descobrir primeiro. Até porque às vezes o passado volta.
Sendo uma história relativamente breve, e centrada sobretudo no quotidiano, um dos aspetos mais surpreendentes é necessariamente o equilíbrio de contrastes. Ambientes boémios e melancólicos, vícios privados e epifanias quase espirituais, sonhos idílicos e realidades imperfeitas. Muito do que aqui acontece prende-se com os sentimentos do protagonista, mas há um mundo à volta, e estes contrastes enfatizam-no.
Outro aspeto curioso vem da visão simples, mas bastante certeira, por vezes, do mundo digital. É fácil reconhecer partes do que o autor descreve e, podendo embora haver discordância com algumas perceções do protagonista, não deixa de ser uma boa base de reflexão para algo complexo no meio de uma história simples.
Finalmente, importa salientar que, numa história de fins e de inícios em que o quotidiano reina, o facto de as personagens serem imperfeitas as torna mais reais. E que, ainda que fique uma ligeira curiosidade insatisfeita ante o final relativamente aberto, a verdade é que faz sentido a forma como tudo termina.
Simples, leve, mas com as medidas certas de poesia e de emoção, é um livro atual na perspetiva exterior... e surpreendente na proximidade interior. E uma boa história, pois claro.