sábado, 29 de maio de 2021

O Dilema (B. A. Paris)

Livia passou grande parte da sua vida adulta a planear a festa do seu quadragésimo aniversário. Não tendo tido o grande casamento que sonhava, quer compensar, de alguma forma, essa ausência dando uma grande festa para todas as pessoas importantes da sua vida. Só que há sombras a pairar sobre o seu grande dia. Os últimos meses trouxeram-lhe uma série de descobertas dolorosas e um segredo que tem vindo a adiar contar ao marido, pois sabe que mudará para sempre a vida de ambos. Só que também Adam acaba de ficar com um segredo terrível nas mãos. A filha, que estava a estudar em Hong Kong, tinha planeado aparecer de surpresa na festa da mãe e Adam era o único a saber. Mas o plano acaba de correr dramaticamente mal e também Adam tem de dizer a verdade a Livia. Mas como? E quando? As horas vão passando e os silêncios adensam-se. E, depois de tanto silêncio, poderá a relação de ambos subsistir?
Uma das primeiras coisas a destacar sobre este livro é que, apesar de toda a história gerar em torno de segredos e mentiras, foge em quase todos os aspetos ao mistério convencional. Tanto Livia como Adam, cujas perspetivas acompanhamos ao longo de toda a história, têm segredos guardados e verdades que, quando vierem à tona, causarão surpresa e perturbação. Mas, mais do que um grande mistério, é em torno da vida deste casal e das consequências que estes grandes segredos terão para ambos que todo o enredo gravita. E, assim, embora viciante como um policial e surpreendente a cada novo capítulo, é uma história mais pessoal e emotiva do que à primeira vista seria de esperar.
O que me leva, claro, a outra das grandes qualidades desta história: a voz com que é contada. São as vozes de Adam e Livia, o que significa que os sentimentos estão sempre à flor da pele. E são também as vozes de pessoas com uma grande dose de culpa e de tormento interior, o que significa que é vastíssimo o leque de sentimentos fortes a surgir ao longo da leitura. Das pequenas irritações às grandes aversões, da incompreensão à profunda empatia, de um desespero que quase transborda das páginas à pequena possibilidade da esperança, não falta emoção ao longo de todo o livro. E isso, juntando às surpresas constantes, torna a história impossível de largar.
Finalmente, e ainda relacionado, de certa forma, com todas estas emoções, importa realçar a forma como toda a história se vai encaminhando, num percurso que é todo ele de surpresas, para um final que é também inesperado, mas sobretudo muitíssimo adequado, tendo em conta todo o percurso. Seria tentador optar pelo caminho mais fácil, depois de todos os segredos desvendados, mas o que a autora faz é escolher o que faz mais sentido, o que tem mais impacto e o que, sendo o menos ideal de todos, é também o mais realista.
Intenso, viciante, cheio de surpresas e transbordante de emoções, não é, de todo, um mistério convencional. Mas é, acima de tudo, uma história de segredos contundentes, de verdades difíceis e de um percurso familiar que é muito mais do que apenas as dificuldades do quotidiano. Memorável, em suma.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Dylan Dog & Dampyr - O Detective do Pesadelo (Mauro Boselli e Bruno Brindisi)

Conheceram-se com a entrada em cena de uma vampira que os pôs no caminho dos planos maquiavélicos de um Senhor da Noite. Agora, têm um assunto inacabado para resolver. E, seguindo as pistas que Lagertha lhes deixou, Dylan Dog, mais o seu fiel assistente, bem como Harlan Draka e a sua equipa, vão em busca de Lodbrok e das alegadas armas de destruição maciça com que este se prepara para destruir Londres. Só que o inimigo não está tão inconsciente dos seus planos como eles pensam. E, quando o confronto acontece mais cedo do que esperavam, veem-se obrigados a improvisar. Dylan fez uma promessa, mas é possível que não seja capaz de a cumprir. E quanto ao Dampyr... bem, esse sabe bem quem são os seus inimigos, ainda que não possa deixar de sentir uma certa admiração relutante pelo seu aliado acidental.
Já não é propriamente uma surpresa que, numa história envolvendo Dylan Dog, o enredo tenda a seguir por caminhos inesperados. Mas a forma que essa imprevisibilidade assume nunca deixa de ser surpreendente, o que é, aliás, uma das maiores forças das suas aventuras. Neste caso, há dois mundos distintos a convergir, o que duplica o inesperado. Mas, mais do que isso, destaca-se um outro aspeto: que, embora vindos de contextos diferentes, e com personalidades basicamente opostas, o encontro entre estes dois protagonistas surge como perfeitamente (sobre)natural.
Trata-se de uma continuação direta do anterior A Noite do Dampyr, o que significa que, ao contrário de outros volumes, é importante ter lido o anterior. Dito isto, olhando para o conjunto como um todo, sobressaem tanto as continuidades como as diferenças. A história dá continuidade ao passado e respostas ao que tinha ficado em aberto, acrescentando ainda novos elementos e algumas reviravoltas surpreendentes. A arte mantém as mesmas características para as personagens, mas acrescenta um traço diferente e novos e fascinantes cenários E, mais uma vez, há todo um mundo de coisas a acontecer em apenas cerca de cem páginas, num equilíbrio que proporciona uma leitura viciante, mas em que os desenvolvimentos nunca parecem demasiado apressados.
E, claro, há as personagens propriamente ditas, já que, nesta colisão de mundos, sobressai o melhor de todos os envolvidos: o estranhamente delicioso humor de Groucho, a união da equipa de Harlan, a vulnerabilidade de Dylan e a determinação do Dampyr. Enfim, há algo que é inevitável: a vontade de reencontrar todas estas personagens. Cuja história não se cinge, felizmente, a apenas estes dois volumes.
Intensidade e humor, ação, mistério e um toque de surreal: de tudo isto é feita esta segunda parte de uma aventura que, mais longa que o normal e unindo num só enredo dois mundos diferentes, faz sobressair o melhor de todos os seus elementos e prende da primeira à última página. Vale muito a pena conhecer esta história.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Purgatório (Pedro Eiras)

Depois dos círculos do Inferno, o Purgatório, lugar de expiação dos pecados menos imperdoáveis, talvez um pouco menores, talvez cometidos por aparente desconhecimento, ou espírito de rebanho ou mera sensação de impunidade. Lugar de penitência, e de reflexão, talvez, sobre como o mundo inspira e acalenta a possibilidade de transgressão, ou se torna até Purgatório dos vivos na forma como tece os meandros da sociedade. Purgatório, lugar de passagem, de espera, de esforço pela redenção possível. Mas não é isso mesmo o mundo em que vivemos?
Muito à semelhança do anterior Inferno, há algo de absurdamente indescritível - e absurdamente fascinante - na poesia que dá forma a este livro. Ora lhe basta um punhado de versos para traçar uma imagem inteira (e uma imagem memorável, entenda-se), ora se alonga em poemas mais longos, traçando visões mais complexas, mais labirínticas talvez, mas das quais é fácil extrair um ambiente familiar e até mesmo uma espécie de identificação. É uma voz singular, mas fala às nossas próprias vozes. Parece contemplar o além, mas o mundo que traça está mais próximo deste do que de qualquer vida depois da morte. E é, afinal, também este mundo que contempla - e o que dele ficará após a possível passagem.
Não faltam poemas memoráveis nas cento e poucas páginas deste livro. Não faltam versos capazes de ecoar nos meandros das nossas próprias memórias, de fazer refletir sobre se é realmente este o mundo que queremos e também sobre que formas adotamos para a expiação pessoal. Alguns são verdadeiramente brilhantes, com a sua cadência natural, os rasgos de inesperado e uma voz tão clara, tão forte, que ler este livro é quase como ouvi-lo em voz alta. E quase damos por nós a fazer isso mesmo.
E importa finalmente realçar o aspeto inevitável: a coesão do todo, a união praticamente perfeita que faz com que cada poema seja uma unidade completa, mas também elo de um todo que é maior do que a soma das partes. Pode facilmente ser lido aleatoriamente, e tendo em conta o apelo quase imediato que fica a um regresso, isso é quase inevitável. Mas lido de ponta a ponta, deixa esta imagem poderosa: a de uma verdadeira viagem a um Purgatório que não é o de Dante, mas tem as suas ligações, sendo embora uma versão diferente e própria.
Belo nas palavras, belo na cadência, belo nas imagens que traça. Belo em tudo, em suma, e memorável também em tudo o que contém. Assim é este singular Purgatório, leitura breve, mas que perdura por muito, muito tempo.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Dylan Dog & Dampyr - A Noite do Dampyr (Roberto Recchioni, Giulio Antonio Gualtieri e Daniele Bigliardo)

Estava apenas a acompanhar uma amiga a uma festa um tanto ou quanto bizarra e, por isso, não estava propriamente à espera de ver aparecer uma vampira a sério. E muito menos de a ver ser perseguida por um grupo de aspeto um tanto ou quanto questionável. Mas sendo Dylan Dog quem é, a estranheza faz parte do seu quotidiano e, além disso, sendo quem é, não pode ver uma mulher em apuros, mesmo que seja morta-viva. É assim que o caminho de Dylan acaba por se cruzar com o de Harlan Draka, o Dampyr, revelando a ambos a existência de inimigos em comum. Mas o que podem fazer quanto à vampira? E ao verdadeiro inimigo que a persegue?
Sendo uma espécie de encontro entre os protagonistas de duas séries diferentes, poder-se-á, à partida, pensar que a história de que este livro é a primeira parte terá interesse sobretudo para quem já conhecer minimamente o percurso dos dois heróis. Bem, não necessariamente. Eu, pelo menos, só conhecia um deles, e o resultado da leitura não foi perplexidade, mas sim uma curiosidade enorme em conhecer mais sobre este estranho e fascinante protagonista. Refiro-me ao Dampyr, claro, porque, sobre Dylan Dog, já me devem ter visto escrever umas coisas...
É ainda da questão do cruzamento entre séries que resulta outro aspeto marcante: o equilíbrio. Apesar de dividirem o protagonismo, não faltam elementos fortes de ambas as séries. O mundo dos Senhores da Noite, com as suas ligações, inimizades e longas vinganças entrelaça-se com a presença de um velho inimigo de Dylan. O contraste entre os companheiros de ambos os protagonistas é também particularmente notável, servindo mesmo de base a alguns momentos brilhantes de humor, protagonizados maioritariamente por Groucho... mas não só. E não faltam também momentos intensos, sejam de ação ou de emotividade, que surgem sempre na altura certa.
Em termos visuais, destacam-se as mesmas qualidades de uns quantos outros volumes protagonizados por Dylan Dog: os cenários extraordinariamente detalhados, cheios de aspetos surpreendentes, e uma expressividade absurdamente palpável no rosto das personagens, que às vezes quase faz com que pareçam saltar da página.
E é apenas a primeira parte, o que significa que não faltam questões em aberto. Mas fica, acima de tudo, a impressão de um percurso que, não sendo ainda completo, tem tudo nas medidas certas e promete ainda muito mais para o que falta desvendar. Intenso, marcante, surpreendente, é Dylan Dog em toda a sua glória... e em excelente companhia.

domingo, 23 de maio de 2021

O Paciente (Jasper DeWitt)

Apesar da sua relativa juventude, ou talvez em parte devido a ela, o jovem psiquiatra Parker H. tem grandes ideais em mente. Espera fazer a diferença na vida dos seus pacientes, algo que não aconteceu com a sua própria mãe, esquecida nos meandros do sistema. Mas as aspirações de Parker têm pela frente um adversário poderoso, pois o hospital psiquiátrico onde acaba de começar a trabalhar tem internado há anos um doente cujo caso é inexplicável. Joe parece mudar de sintomas de forma incompreensível e, pior do que isso, parece despertar sintomas nas pessoas que dele cuidam, ao ponto de ter levado já membros do pessoal ao suicídio. Mas Parker não é de desistir e, confiante na sua inteligência, decide tomar conta do caso, sem saber que tudo aquilo em que acredita pode muito bem estar prestes a desabar com estrondo.
Provavelmente o aspeto mais marcante desta história, e também uma das razões por que não posso dizer muito sobre ela sem estragar possíveis surpresas, é a constante sucessão de voltas e reviravoltas que define todo o enredo. Tudo começa com um grande mistério, que vai dando lugar a suspeitas, teorias, ao que parece ser possibilidades gritantes, seguidas pela tomada das acções possíveis e pela descoberta de que nada é exatamente aquilo que parecia ser. E isto acontece várias  vezes, de formas diferentes, explorando meandros distintos e abrindo portas a novas possibilidades, que serão, por sua vez, confirmadas... ou não. Num livro de sensivelmente duzentas páginas, é realmente impressionante a capacidade de abranger uma viagem tão longa sem que nada pareça demasiado apressado, numa história que é, no fundo, um quebra-cabeças complexo e viciante onde as explicações vão ficando cada vez mais negras.
Além do enredo propriamente dito, também a própria voz com que a história é contada contribui para tornar a leitura viciante. É Parker quem narra a sua história, o que cria uma maior proximidade, pois as suas emoções e perplexidades parecem transbordar da página. Além disso, esta proximidade com o protagonista faz com que os grandes momentos se tornem ainda mais intensos, sobretudo se tivermos em conta a forma como tudo termina.
E, por falar em como tudo termina, importa referir alguns aspectos sobre o fim. Não podendo revelar qual é, obviamente, existem, ainda assim, duas facetas que importa destacar: primeiro, que, embora não dando respostas para tudo, dificilmente se poderia pedir um final mais adequado ao ambiente de horror e de mistério que se vai adensando ao longo de todo o livro; e segundo, que há pequenas (e premeditadas) pontas soltas que se entranham na imaginação do leitor, deixando no pensamento a dúvida sobre o que poderá ter acontecido a seguir.
Não é particularmente longo, e, ainda assim, não falta nada a este livro. Intensidade, horror, mistério, emoção, dúvida - de tudo isto é feita esta história sombria e intrigante, que prende desde as primeiras linhas e fica no pensamento bem depois do fim. Uma poderosa história sobre os monstros que imaginamos - e outros que se infiltram na imaginação.

sábado, 22 de maio de 2021

A Família Monstro - A Maldição do Ofeliakrom (Bruno Matos e Raquel Carrilho)

Quando a Mizé venceu o Torneio dos Feiticeiros, o seu adversário, o feiticeiro Armando Confusão, não reagiu da melhor forma. Agora, porém, parece querer redimir-se e, ao saber que a Vamp está com problemas amorosos, decide oferecer-se para a ajudar. Existe um medalhão mágico cujo poder pode gerar um amor que não se desvanece com a perda do efeito de um encantamento, e o feiticeiro Confusão tem esse medalhão, faltando apenas encontrar as pedras que o completam. Ora, a Vamp está decidida a embarcar nessa aventura, ainda que a sua família tente fazê-la entender que a magia não deve envolver-se em questões de amor. Mas será que o medalhão resulta mesmo? E serão as intenções do feiticeiro tão puras como ele alega?
Um bom ponto de partida para começar a falar sobre este livro - e que se aplica também ao anterior, na verdade - é que, apesar de nitidamente pensado para leitores mais novos, é perfeitamente capaz de cativar um leitor adulto. Porquê? Porque é leve, mas não demasiado simplista, inocente quanto baste, mas não irrealista na mensagem, e surpreendente, apesar da brevidade da história. Ou seja, transporta-nos facilmente para o tempo em que bastava uma história simples para nos fascinar, mas sem parecer demasiado simples.
Outra óbvia qualidade é o equilíbrio entre texto e ilustrações, num livro cheio de cor e de vida, com personagens singulares - é de uma família de monstros que se trata, afinal - e em que o registo é bastante acessível, mas abre espaço também para a aprendizagem. É um livro bonito de se folhear e descobrir e em que a componente visual complementa muito bem a escrita.
Claro que é uma história relativamente simples, e não é difícil prever alguns dos desenvolvimentos. Mas não deixa, ainda assim, de ser cativante, não só pelas personagens (e, sobretudo, pelo seu delicioso sentido de humor), mas também pela mensagem positiva que emerge da história. Se, no volume anterior, se destacava o desportivismo e a importância da família, aqui fala-se de amor, de como os sentimentos não podem ser impostos e de como há vida para lá das desilusões amorosas.
Leve, empolgante e muito divertido, trata-se, pois, de um livro simples nas bases, mas cheio de aspetos cativantes para descobrir. Perfeito para ler com os mais novos, ou para recordar a nostalgia de quando o fomos nós mesmos, um livro cheio de cor e de humor e uma série a acompanhar.

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Spaghetti Bros - Livro 2 (Carlos Trillo e Domingo Mandrafina)

Os irmãos Centobucchi podem ser unidos, à sua maneira, mas de uma forma que é tudo menos convencional. Ou não fossem eles um mafioso, um padre, um polícia, uma atriz e uma mãe de família com uma vida dupla. Mas, como se não bastassem estes papéis contraditórios, têm também uma tendência natural para se meterem no caminho um dos outros, quer seja revelando ou ocultando segredos, interferindo nas relações uns dos outros ou até partilhando em confissão coisas que o confessor preferia não saber. Têm uma história em comum e laços ambíguos a uni-los. E, entre episódios inesperados de violência e de humor, têm uma estranheza que é singularmente fascinante.
Não é muito fácil falar sobre este livro - tal como o anterior, aliás - sem revelar demasiado, pois, embora haja uma história maior a unir todos os irmãos, e desenvolvimentos que avançam de episódio em episódio, todo o livro é composto por pequenos momentos, o que significa que cada um deles tem surpresas a desvendar. Ainda assim, é fácil destacar as principais qualidades: o equilíbrio entre a simplicidade de cada situação individual e a história maior a que pertencem; o contraste entre uma violência quase fácil e uma teia complexa de relações familiares; e também a estranha leveza resultante de alguns rasgos de humor bastante deliciosos.
Sobressai a palavra contraste, não é verdade? E por múltiplas razões: é que o contraste não vem só dos aspectos específicos de cada episódio, drama e humor, leveza e implacabilidade, lealdade familiar e... falta de lealdade em geral. Vem das próprias circunstâncias da família Centobucchi, que fazem com que ora haja irmãos a querer proteger-se, ora irmãos a querer matar-se; irmãos que querem revelar segredos, e segredos cujo fardo é preciso calar; e até um delicado malabarismo entre moral e falta dela, fé e hipocrisia, união e... o fim do livro dirá o quê.
Olhando individualmente para cada episódio, tudo acontece de forma relativamente concisa, o que significa que fica alguma curiosidade insatisfeita... até chegarmos aos episódios seguintes. E há também perguntas sem resposta ao chegarmos ao fim deste volume. Mas há um aspecto curioso acerca desta relativa simplicidade: é que, transposta também para o aspecto visual, sem grandes elaborações nos cenários, enfatiza o impacto do drama através das expressões das personagens. E quem diz do drama, diz do humor, porque há expressões na cara do padre Francesco que nem precisam de palavras.
Aparentemente simples, aparentemente leve, mas com uma história maior a emergir das partes e uma ambiguidade moral e emocional que acrescenta a estes episódios uma inesperada complexidade, trata-se de uma leitura ligeira, mas muito surpreendente, sobre laços de família coesos... mas um tanto ou quanto espinhosos.

terça-feira, 18 de maio de 2021

O Mistério da Estrada de Sintra (Eça de Queirós e Ramalho Ortigão)

É durante uma passagem aparentemente inofensiva pela estrada de Sintra que um médico e o seu amigo se veem subitamente projetados para uma intriga de proporções indecifráveis. Sequestrados por um grupo de mascarados, são conduzidos a uma casa em local não identificado, onde se deparam com um cadáver cuja morte é não só um mistério, mas também causa da proteção de muitos segredos. Inicia-se assim um enredo narrado a muitas vozes - todas intervenientes, de algum modo, no drama - em que tudo converge para uma derradeira revelação que tem de ser conhecida. Mas não de todos.
Descrito como o primeiro policial da literatura portuguesa, este é um livro em que múltiplas facetas sobressaem, a começar, desde logo, pelo registo dramático e misterioso que acompanha toda a narrativa e pela estrutura por ela assumida. Narrado sob a forma de cartas escritas pelos diferentes intervenientes ao redator do Diário de Notícias, o enredo vai assumindo diferentes formas, conduzidas ao ritmo das suspeitas das diferentes personagens e das diferentes emoções que as circunstâncias lhes despertam. Da (relativa) serenidade estoica do médico aos rasgos de dramatismo do mascarado alto, da justa indignação de Z ao espírito de sacrifício de A. M. C., há, ao longo deste livro, toda uma sucessão de estados de ânimo diferentes, que fazem com que cada faceta assuma um tom distinto e com que a totalidade se torne mais complexa e mais intrigante.
Sendo certo que, tal como o título indica, é sobretudo um mistério, não deixa, ainda assim, de ter outros elementos misturados. A identidade do morto não é apenas o enigma: está na base de uma dramática história de amor e de adultério que serve de base a uma bastante exaltada crítica social - ainda que moralmente ambígua, dadas as circunstâncias. A situação do sequestro faz com que uma das personagens entre em contacto com um adepto do espiritismo, o que dá origem a uma curiosa divagação sobre assombrações e espíritos. E a descoberta do culpado surge na senda de um desenrolar de paixões dramáticas e exaltadas, que chegam a suscitar até alguns momentos de curiosa emoção.
Há, na verdade, tantas figuras envolvidas que acaba por se ficar com a sensação de que qualquer delas bastaria para protagonizar uma história. Ficam, por isso, algumas ambiguidades, sobretudo sobre Rytmel e a mulher que tantas suspeitas despertou, mas também sobre o passado das figuras que gravitam em torno da condessa. Claro que, não sendo aspectos essenciais do drama principal, não são verdadeiramente cruciais para a narrativa. Mas, tendo em conta a forma como tudo termina, fica também a sensação de que parte da força destas personagens acaba por passar para segundo plano.
Descrevem-no os autores, no prefácio, com sendo "execrável". Esta que vos escreve permite-se discordar. Pois, com um estranhamente fascinante labirinto de mistérios, intrigas, amores e desafios às normas, cativa tanto pelo que tem de dramático, como pelo que as múltiplas vozes parecem deixar por contar. Singular e curioso, um livro surpreendente.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Fiona & Lucifera (Sónia Cântara)

A Fiona tinha uma vida perfeitamente normal, até ao dia em que decidiu adotar a Lucy e o Fera. A Lucy é uma gatinha tímida e ternurenta. Já o Fera é obcecado por comida e transborda de mau-feitio. Mas não são dois gatos normais e, além de muito mais pelo nas roupas da Fiona, trouxeram também sarcasmo, ternura e um ou outro laivo de sabedoria, numa visão muito simples, mas muito certeira da atualidade. Em que cada pequeno episódio pode ser uma revelação.
Um bom ponto de partida para falar sobre este livro é o equilíbrio entre simplicidade e precisão. Composto todo ele por pequenos episódios, é feito, em grande medida, de momentos simples, alguns inesperados, outros capazes de dar formas novas a ideias já conhecidas. Mas é, acima de tudo, muito certeiro na sua visão do quotidiano, quer seja nas relações amorosas, na vida profissional, na correria - ou na preguiça, no caso do Fera - do dia-a-dia e até na nova normalidade do coronavírus. É tudo muito conciso, mas também muito exacto, e até as referências que já conhecemos ganham outro tom ditas por estas personagens.
O que me leva a outro aspecto: a leveza. Em parte pela simplicidade das ilustrações, e em parte também por ter os protagonistas que tem, tudo neste livro parece ser leve e descontraído. Não há situações complexas, os dramas são naturais e a mistura entre ternura e sarcasmo atinge um equilíbrio praticamente perfeito. É verdade que não há grande imprevisibilidade, mas às vezes também não é precisa. E, numa história - ou conjunto de histórias, talvez - sobre um quotidiano em mudança, até é saudável que haja uma certa dose de previsibilidade.
Simples, leve e certeiro, trata-se, em suma, de um livro muito divertido. Uma história de gatos que não é propriamente sobre gatos e um olhar sobre a vida que, carregadinho de sarcasmo e também de descontração, mostra que a normalidade nem sempre é tão aborrecida como parece.

sábado, 15 de maio de 2021

A Família Monstro - O Torneio dos Feiticeiros (Bruno Matos e Raquel Carrilho)

Longe vão os tempos em que os monstros assustavam os humanos. Com a entrada em cena de tecnologias cada vez mais avançadas, os papéis inverteram-se, ao ponto de o medo dos humanos ser tão forte que os monstros decidiram fechar todas as portas que ligavam o seu mundo ao dos humanos. Todas? Talvez não. Ou pelo menos é isso que parece, pois uma humana assustada chamada Mizé acaba de ir parar involuntariamente a Monstrópolis. Mais especificamente, ao sótão da família Monstro. E a porta por onde entrou desapareceu à sua passagem, por isso, se quiser regressar a casa, vai precisar de toda a ajuda que conseguir. E essa ajuda só pode vir da estranha família com que acaba de se encontrar...
Há algo de estranhamente encantador - e nostálgico - em ler livros infantis na idade adulta. Ora nos vem à cabeça o tempo em que bastava a mais inocente das histórias para nos fascinar, ora a magia de quando acreditávamos que tudo era possível. E, quando lemos uma história cativante, como é o caso desta pequena aventura, vem outro tipo de nostalgia: a que nos diz como gostaríamos de ter lido uma história destas na nossa própria infância. Pois bem... este livro desperta todos estes sentimentos e tem ainda o condão de, nostalgias à parte, proporcionar uma leitura cativante, leve e divertida... mesmo a quem já deixou de ser criança.
Parte do que torna esta leitura tão empolgante é o equilíbrio entre texto e ilustração, com uma história simples quanto baste, mas bem escrita e com vários momentos intensos, e uma componente visual cheia de cor e de expressividade. Destacam-se particularmente as expressões da Mizé, mas a caracterização dos monstros é também muito interessante, além de particularmente notável pela diversidade. Além disso, uma vez que tudo se passa num mundo de monstros, não faltam figuras peculiares, o que é sempre um estímulo delicioso à imaginação de quem lê.
Claro que, sendo um livro infantil, é uma história relativamente breve, o que significa que tudo acontece de forma relativamente linear. Ainda assim, não lhe faltam qualidades, desde a mensagem positiva, de que diferente não significa mau e da importância de receber e ajudar quem precisa, à construção de um mundo alternativo onde todos são diferentes, mas nem tudo é assim tão diferente. E, claro, sem esquecer o sentido de humor delicioso que torna ainda mais encantadora esta história surpreendentemente terna.
Cheio de cor e de vida, de leveza e também de inocência, trata-se, pois, de uma bela leitura para os mais novos, mas igualmente capaz de fazer sonhar os que já não o são tanto. Leve, divertido e enternecedor, um livro que se lê num instante, mas que surpreende ao virar de cada página.

sexta-feira, 14 de maio de 2021

Lendas Tradicionais Portuguesas

Mouras encantadas, princesas e nobres cujo amor perdurou no tempo ou acabou em tragédia, locais que permaneceram como símbolo - ou inspiração - de uma história que talvez seja mito ou talvez tenha um fundo de verdade. A nossa tradição está repleta deste tipo de lendas, algumas mais sombrias e dramáticas, outras de final mais alegre. E é essa tradição que este livro nos apresenta, através de um conjunto de relatos breves, alguns certamente familiares, outros evocativos de outras histórias, e todos muito cativantes.
Sendo certo que o mais importante num livro é sempre o conteúdo, é inevitável, neste caso, começar por referir o aspeto visual. Desde a capa evocativa ao azul etéreo - ou enigmático - que domina o interior, e sem esquecer as imagens de locais ou elementos pertencentes a cada lenda, é um livro que dá gosto folhear e que prende imediatamente a atenção, antes mesmo de começar a leitura das muitas e intrigantes lendas que contém.
E esta é também uma boa forma de as começar a caraterizar: muitas e intrigantes na sua diversidade. Abrangem diferentes pontos do país e diferentes tipos de história, ainda que quase sempre com o amor em primeiro plano. (Porque o amor nunca morre, não é o que dizem?) E, contadas sempre de forma relativamente sucinta, mas num registo muito envolvente, quase evocam uma outra tradição, a de partilhar histórias antigas através de gerações, junto à fogueira ou antes de dormir. Ao ler estas lendas, quase é possível ouvi-las a ser contadas em voz alta, tal como as ouvimos - ou outras similares - na infância de muitos de nós. E esta familiaridade reconfortante é também parte do encanto deste livro.
É uma leitura breve, mas que fica na memória, não só pela nostalgia que evoca através do reencontro com histórias familiares, mas também pela descoberta da abundância de lendas e mitos que povoam o nosso imaginário tradicional. E, sendo relativamente leve, leva-nos numa viagem ao mistério e à emoção de histórias antigas que, à sua maneira, se tornaram intemporais.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Reiniciar (Katherine May)

Ao longo da vida, existem períodos em que as dificuldades da vida nos levam a uma retração, a uma busca de isolamento, de confortos solitários. Num mundo frenético, onde a necessidade de fazer algo acelerou os ritmos da vida, pode ser a aparição de uma doença, a ameaça de uma perda ou algum tipo de mudança radical para pôr em causa as exigências de uma rotina que se tornou opressiva. E então surge o inverno - não o inverno físico, mas um inverno mental, íntimo, pessoal, que reflete, em certa medida, a estação das chuvas, das neves e do frio. É este inverno - como ponto de partida para um recomeço - que este livro pretende apresentar.
Provavelmente o aspeto mais marcante neste livro é o estranho e fascinante equilíbrio que constrói entre aspetos aparentemente distintos. Há o percurso pessoal, traçado entre diferentes invernos e diferentes períodos de tribulação, há a introspeção, que se torna meditação sobre o mundo atual e as suas normas por vezes sufocantes, e há ainda os elementos quase de curiosidade - abelhas, auroras boreais e o funcionamento dos mergulhos em pleno inverno - que, apesar de mais distantes, servem para estabelecer paralelismos não só com o percurso pessoal, mas também com a humanidade em geral.
Outro ponto notável vem da voz da autora e de uma escrita onde não faltam frases memoráveis e rasgos de uma certa poesia, capaz de transpor este registo intimista para algo de mais vasto e de facilmente identificável. Podemos não ter - e não temos, certamente - as mesmas experiências específicas que este livro nos conta, mas reconhecemos as sensações e as palavras dão-lhe vida. Reconhecemos o cansaço de uma vida demasiado ocupada, a dúvida sempre que tomamos uma decisão difícil, a insegurança de não sermos - de não podermos - ser o que devíamos. De forma diferente? Claro. Mas o sentimento é familiar.
É um livro de ritmo lento, pois, em certa medida, reflete a cadência pausada do inverno em que habita. Exige algum tempo para assimilar, não porque seja particularmente rebuscado, mas porque explora estados de espírito complexos e complementa-os com os labirintos da própria vida. Mas vale a pena dedicar-lhe esse tempo, pois a viagem que traça pode ser pessoal, mas não é intransmissível. E é fácil encontrar um  bocadinho de nós neste percurso singular.
Inverno, mas um inverno diferente. Reinício, mas um reinício que não apaga o antes. E vida, do tipo que persiste para lá das sombras. São estas, enfim, as peças que compõem este livro, pausado, mas sempre cativante, e com uma escrita belíssima na sua introspeção. Vale a pena viajar por estas páginas... e guardá-las connosco bem depois do fim.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Divulgação: Novidade Saída de Emergência

Pelo crime de roubar pão, a jovem May recebe uma sentença para a vida: deve tornar-se numa Devoradora de Pecados – uma mulher proscrita, brutalmente marcada, cujo destino é ouvir a confissão final dos moribundos, ingerir alimentos que simbolizam os seus pecados como rito funerário e assim acolher as suas transgressões para conceder às suas almas acesso ao céu.
Órfã e sem amigos, aprendiza de uma Devoradora de Pecados com quem não pode falar, May tem de trilhar o seu caminho num mundo cruel e perigoso que não compreende. Quando um coração de veado aparece na urna de um moribundo que não confessou o pecado mortal que o alimento representa, a Devoradora de Pecados recusa-se a ingeri-lo. É levada para a prisão, torturada e morta. Para vingar a sua morte, May terá de descobrir os responsáveis por uma ameaça que nas sombras põe em perigo o futuro de uma nação.

MEGAN CAMPISI é dramaturga, romancista e professora. As suas peças já foram representadas na China, em França e nos Estados Unidos. Frequentou a Universidade de Yalee a L’École International de Théâtre Jacques Lecoq. Vive em Brooklyn, Nova Iorque, com a sua família.
Pode consultar a página da autora em https://www.megancampisi.com/

domingo, 9 de maio de 2021

Viver Num Mundo Impossível (Frédéric Lenoir)

Quando tudo na vida muda subitamente e o próprio mundo parece ter-se tornado imprevisível, o ser humano tem de se adaptar e de encontrar uma forma de dar sentido às coisas. A mente rege-se, até certo ponto, por necessidades - segurança, socialização, realização - e a pandemia que vivemos veio alterar equilíbrios em todos estes aspectos. Eis, pois, o ponto de partida para este pequeno mas muito interessante livro, que reflecte não só sobre as mudanças que a COVID-19 trouxe ao nosso mundo, mas sobretudo sobre a forma como a mente humana reage à crise, procurando formas de se adaptar.
Embora tenha como ponto de partida as alterações provocadas pelo vírus na sociedade e na resposta às necessidades humanas, não é unicamente a esta situação que o livro se dedica. Pode partir desta crise específica, mas traça uma visão da reacção humana a todos os tipos de crises. E é surpreendentemente leve, talvez devido à brevidade, para uma visão que abrange tantas perspectivas: filosófica, psicológica, fisiológica e, claro, social. Tudo com um conjunto de conceitos muito simples - mas muito abrangentes - como base: resiliência, adaptação, sentido.
Outro aspecto curioso neste livro é que acaba por ser a abordagem à pandemia que mais sentimentos ambíguos deixa, não na visão de como as pessoas se adaptaram a ela, que é bastante certeira, mas no que parece ser uma comparação algo ambígua em termos de medidas entre diferentes países. É claramente secundário, até porque todo o registo do livro parece dedicar-se mais ao percurso de adaptação pessoal, mas é impossível não ficar com a sensação de que a comparação entre países como a Coreia do Sul e França acaba por ser um pouco vaga.
Voltando à adaptação pessoal, sobressai ainda um último aspecto: é que, embora a pandemia seja a premissa perfeita, com confinamentos, distanciamentos e a necessidade de definir alternativas de contactos a serem o exemplo perfeito da necessidade de descobrir novas vias de adaptação, grande parte desta visão pode ser aplicada a crises bem menos globais, e até mesmo pessoais, como o isolamento em resultado de uma perda ou a necessidade de reagir a uma crise que virou do avesso as circunstâncias da vida de alguém.
Não é um livro de soluções fáceis - até porque não existem soluções fáceis. É, sim, uma boa reflexão sobre a importância da resiliência em tempos de crise e da capacidade de o ser humano se adaptar para responder às suas necessidades. Interessante no tema, cativante na escrita e também muito actual, uma leitura rápida, mas que não se esgota ao virar da última página.

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Esquecida (P.C. Cast + Kristin Cast)

Teve consequências dramáticas, mas a intervenção de Zoey no mundo alternativo do irmão parece ter finalmente desmascarado as verdadeiras intenções de Neferet - e numa fase menos perigosa do que aconteceu no mundo da própria Zoey. Mas, ainda que nem tudo seja igual nos dois mundos, há algo que se mantém: Neferet não está disposta a desistir das suas ambições e tudo fará para alcançar o que entende ser o seu direito. Forçada a mover-se secretamente, estabelece o seu próprio contacto com a Magia Antiga enquanto tenta acompanhar o que se passa na Casa da Noite. Já no mundo de Zoey, tudo parece estar tranquilo... mas só à superfície. Pois há visões e sinais que indicam que os dois mundos podem muito bem estar prestes a colidir.
Desde o primeiro volume desta segunda série que era bastante evidente o equilíbrio entre os elementos novos e o mundo e as personagens conhecidas da longa série anterior. Este volume vai um pouco mais longe, explorando até a história antiga do mundo de Kevin, para realçar as diferenças entre os dois mundos, e explorando também os aspectos que separam as personagens dos dois mundos. As personalidades podem ser bastante semelhantes, mas há algumas diferenças no passado desta Neferet, na forma como o seu mundo se formou e nos papéis que as diferentes personagens têm a desempenhar. E, disperso entre múltiplas perspectivas e pontos no tempo, este livro funciona, em grande medida, como uma preparação para o grande final, deixando tudo em aberto, mas acrescentando muitas jogadas e revelações importantes.
Por deixar tudo em aberto, o que não falta são perguntas sem resposta. Mas, mais do que curiosidade insatisfeita, até porque é bastante evidente que muitas dessas respostas virão na parte que ainda falta contar da história, o que fica é uma grande expectativa em saber de que forma tudo irá terminar. Ao longo deste livro, houve desenvolvimentos interessantes para todas as personagens, mas a conclusão deixa inúmeras possibilidades em aberto. E assim, só o último volume dirá que seguimento terão todas estas interessantes movimentações.
Quanto aos restantes aspectos, mantêm-se essencialmente as mesmas características: a mesma escrita leve e directa, ainda com os necessários rasgos de formalidade associados à magia, o mesmo núcleo de personagens peculiares, mas sempre cativantes, e a mesma agradável mistura de emoção e de humor. Sem nunca perder a leveza, mesmo nos momentos mais inesperadamente sinistros, cativa da primeira à última página.
Preparação para um possível grande final e também revelação de origens e de contextos, trata-se, em certa medida, de um livro de transição entre passado e futuro das personagens. Que não deixa, ainda assim, de estar repleto de bons momentos e de proporcionar uma muito boa leitura.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Stumptown - Volume Três (Greg Rucka, Justin Greenwood e Ryan Hill)

Por uma vez na vida, Dex Parios parece estar livre de confusões - ou pelo menos de confusões que exijam a sua atenção imediata - e só quer aproveitar um bocadinho a vida, assistindo a um jogo de futebol com o irmão e com um bom amigo. Mas o que começa por ser um momento bem passado entre cânticos e festejos cedo segue um caminho mais sombrio, quando Mercury, o amigo de Dex, é brutalmente espancado e deixado à beira da morte. A vida de detective privada implica investigar para quem lhe paga, mas desta vez Dex torna-se a sua própria cliente. Não vai parar até descobrir quem foi que agrediu o amigo. E quando os encontrar... não planeia ser meiga.
Um dos aspectos mais interessantes desta série é que, embora tendo os seus pontos em comum com outras histórias de detectives privados, é muito mais ambígua e humana do que a maioria. Não é a típica história em que o detective puxa das suas capacidades superiores para desvendar uma trama intrincada e, após um derradeiro conflito com os bandidos, se afasta misteriosamente rumo ao próximo caso. Bem... tem um pouco disso, mas de forma menos óbvia, mais complexa, mais falível. Dex Parios está longe de ser perfeita, e isso torna tudo bem mais interessante. Tem um passado que a torna vulnerável, o que a torna também mais próxima. E quanto a confrontos com os bandidos... bem, têm sempre o seu quê de desconcertante, o que acaba para contribuir também para o factor surpresa.
Quanto a este caso específico, sobressai sobretudo o aspecto pessoal: a ligação de Dex ao desporto, as suas sempre complicadas relações e um passado misterioso que, pouco a pouco, começa a manifestar-se. E são tantas as revelações que, a determinada altura, fica mesmo a sensação de que alguns aspectos podiam ser mais expandidos, nomeadamente quanto às pistas do caso, que às vezes surgem de forma algo abrupta. Não deixa, ainda assim, de fazer um certo sentido este ritmo mais apressado - até porque, neste volume, a vida de Dex parece uma corrida constante.
Em termos visuais, sobressaem dois aspectos. Primeiro, a entrada em cena de Justin Greenwood, que traz um traço muito diferente e uma Dex com expressões bastante distintas da dos volumes anteriores, mas, ainda assim, perfeitamente reconhecível. E, em segundo lugar, todo o ambiente em torno do estádio, que, com os seus pormenores e a forma quase sinestésica de transpor para a página os cânticos dos adeptos, evoca na perfeição a sensação de se entrar num mundo à parte.
Tudo somado, fica a impressão de um livro visualmente singular, com um enredo intenso, ainda que ligeiramente apressado, e um núcleo de personagens que nunca deixam de surpreender nos mais inesperados aspectos. Cativante, intensa e ligeiramente desconcertante, mais uma bela aventura para acrescentar ao historial de Dex Parios.

terça-feira, 4 de maio de 2021

Tinta Simpática (Patrick Modiano)

A vida é feita de memórias... e das lacunas que o tempo e o acumular de experiências vão abrindo por entre essas memórias. A Jean Eyben, restam-lhe as memórias de um caso aparentemente pouco relevante, que lhe caiu nas mãos num emprego temporário, mas que continuou a assombrar-lhe os pensamentos, como uma história escrita a tinta invisível. E é a persistência dessas memórias dispersas que o leva a decidir pôr por escrito, ao ritmo dos pensamentos, os passos que deu para descobrir a esquiva Noëlle Lefebvre. Passos também algo vagos, mas que parecem puxá-lo... como o fio de um passado que ele mesmo esqueceu.
É algo surpreendente a forma como um livro tão breve consegue desvendar, a espaços, complexidades insuspeitas, não só nas linhas do caso, que começa por evocar o enredo de um policial para se converter depois numa demanda mais intimista, mas sobretudo na cadência das palavras e na forma como reflectem a falibilidade da memória. Narrada maioritariamente na primeira pessoa, oscila entre diferentes momentos e registos, sem nunca perder a componente introspectiva que torna o texto mais pausado, é certo, mas torna também mais próxima a alma do protagonista.
Maioritariamente na primeira pessoa, porque, a determinada altura, a perspectiva altera-se e o fantasma procurado torna-se o fantasma que contempla. Não há verdadeiramente uma razão para isto, o que deixa uma certa curiosidade insatisfeita. Mas há principalmente uma complementaridade natural, em que também este novo ponto de vista vem acrescentar outras memórias e outros esquecimentos. As lacunas de Jean Eyben não são únicas, afinal. Talvez sejam parte da própria natureza humana. E essa pertença, essa naturalidade, são algo muito evidente em todo o texto.
Nem sempre é fácil compreender estas personagens, até porque uma das partes cruciais do livro é a existência de lacunas - e existem, de facto. São múltiplos os reencontros com as memórias e as manifestações do esquecimento, o que significa que faz sentido que nem tudo seja explicado. E, sim, ficam perguntas sem resposta, o que faz com que as personagens sejam também, em certa medida, incognoscíveis. Mas o essencial está lá - a persistência da memória e a luta contra o esquecimento. E não será isso o que verdadeiramente move o protagonista?
Breve, mas surpreendentemente complexo, ambíguo, mas fascinante nas suas deambulações. E surpreendente, ainda, no seu equilíbrio entre os mistérios de um desaparecimento e os mistérios interiores da memória e das suas transformações. Singular em muitos aspectos, e sempre uma boa leitura.

sábado, 1 de maio de 2021

Andar a Pé (Henry David Thoreau)

Andar a pé pode ser muito mais do que o acto de ir de um lado para outro. Pode ser um acto de descoberta de locais inexplorados, de comunhão com a natureza, de contacto com uma parte da vida que persiste e continua independentemente da chamada civilização. Pode ser um gesto tranquilizador, um acto de meditação, um momento passado a sós com os próprios pensamentos. E, além de um bom exercício, pode ser uma forma de ver o mundo. É esta a perspectiva que este pequeno livro pretende apresentar.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre este livro é que, apesar da brevidade, exige o seu tempo para ser devidamente assimilado, em parte devido à escrita um pouco pausada, que traça descrições meticulosas da paisagem e das paisagens interiores que esta evoca, mas sobretudo porque parece reflectir no próprio texto a experiência de uma extensa e lenta caminhada, contemplando a natureza e meditando depois profundamente nas suas complexidades.
E funciona realmente como uma caminhada, não só através dos espaços evocados, mas também, em certa medida, do tempo, pois, ao longo do expressivo contraste traçado entre natureza e civilização, são várias as referências que vão sendo evocadas. Mas não é só esse tempo que se sente no livro, pois, embora não sendo descrito totalmente como tal, é fácil imaginar todo o texto a ser proferido durante uma pensativa e filosófica caminhada por bosques e terrenos ainda por explorar, como se o ritmo dos passos tivesse sido também transposto para o papel.
Claro que, sendo tão breve, fica sempre aquela vontade insatisfeita de ler um pouco mais, até porque as descrições são particularmente notáveis. Ainda assim, é interessante notar que esta visão da caminhada parece ter, no essencial, a dimensão certa, com espaço para a observação, para a contemplação e para a reflexão sobre o mundo e a evolução, através dos tempos, de natureza e civilização.
Breve, mas surpreendentemente vasto no conteúdo, trata-se, pois, de um livro que exige algum tempo - ou, melhor dizendo, uma certa contemplação - para assimilar todas as suas particularidades. Mas que fica no pensamento pela forma como desperta - ou relembra - o poder e a importância de uma boa deambulação. A pé, naturalmente.