quarta-feira, 31 de julho de 2019

O Filme da Minha Vida (Maite Carranza)

Olivia sempre pensou que o pior que lhe podia acontecer era ficar sem internet ou que as amigas a eliminassem das suas redes sociais. Mas está prestes a ter uma revelação. Tal como muitos outros, vê a crise deixar a mãe sem trabalho e atolada em dívidas. E eis que, de repente, ficam sem comida, sem luz, sem água... e sem casa. A mãe do Olivia vai-se completamente abaixo e cabe-lhe a ela manter o ânimo e a esperança. Mas como explicar ao irmão mais novo o que está a acontecer? É então que lhe surge a ideia de fazer de conta que estão num filme, o que parece agradar ao pequeno Tim. E, enquanto o sofrimento e as dificuldades se prolongam, a ideia do filme mantém Tim confiante. E, pouco a pouco, Olivia vai lutando pela recuperação de um pouco das suas vidas.
História de uma família afectada pela crise, escusado será dizer que o que primeiro marca nesta leitura é a relevância do tema. E marca principalmente porque, sendo embora um livro pensado para os mais novos, nunca perde de vista as questões importantes, apelando à reflexão. Isto torna-o interessante para leitores de todas as idades e se, aos olhos de um leitor adulto a evolução das coisas pode parecer um pouco apressada, a verdade é que o essencial - nos temas e no percurso das personagens - está lá.
Ao contar a história maioritariamente da perspectiva de Olivia, a autora consegue também conferir às coisas um matiz diferente. A situação com os bancos é particularmente marcante, pois a inocência de Olivia põe em evidência o extremo mais rídiculo da coisa: a mãe de Olivia perdeu a casa, os móveis, basicamente tudo... e continua com dívidas ao banco. É também um reflexo particularmente eficaz do impacto humano da crise, pois Olivia não só tem de deixar toda a sua vida para trás, mas tem também de se adaptar a toda uma outra série de dificuldades que vão da vida num prédio ilegalmente ocupado (mas onde há mais solidariedade do que na sua antiga vida) à depressão da mãe e à possibilidade de serem levados para um orfanato.
E há ainda um último aspecto a sobressair: é que apesar das dificuldades e sofrimento que abundam ao longo desta história, a autora consegue manter um registo leve e optimista, em parte devido à inocência e ao engenho de Olivia, mas também à mensagem positiva que sobressai de todo o percurso. A solidariedade existe - às vezes onde menos se espera - e, mesmo com todos os obstáculos que o mundo parece criar, nenhuma queda é realmente irreversível.
Cativante, criativo e, acima de tudo, muito pertinente, trata-se, pois, de um livro capaz de prender leitores de todas as idades. Uma história de superação, comovente e divertida, que fica na memória bem depois de terminada a leitura.

Autora: Maite Carranza
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Deixa-me Mentir (Clare Mackintosh)

O mundo de Anna desabou quando, num curto espaço de tempo, o pai e a mãe puseram termo à vida da mesma exacta forma. Talvez por isso nunca tenha conseguido aceitar plenamente a situação. E aparentemente tinha motivos para isso. No primeiro aniversário de uma das mortes, Anna recebe um postal que põe em causa a possibilidade de se ter realmente tratado de um suicídio. E, embora parece tratar-se apenas de uma partida de mau gosto, Anna não consegue deixar de pensar nisso. Vai, pois, à polícia e encontra em Murray Mackenzie alguém capaz de partilhar das suas suspeitas. Mas as coisas mudam num piscar de olhos e, tal como a polícia estava enganada a respeito da hipótese de suicídio, também Anna está errada no que julga ter realmente acontecido.
Com um arranque relativamente pausado e uma sucessão de acontecimentos cuja intensidade parece crescer de forma gradual, à medida que novas revelações vão surgindo, este é um daqueles livros que "primeiro estranha-se, depois entranha-se". Apesar das circunstâncias de Anna, não é uma história que gere uma empatia imediata, talvez porque as pessoas que a rodeiam parecem demasiado focadas no seu próprio mundo. Mas, quando nada é previsível e todas as surpresas têm um impacto devastador sobre a protagonista, é impossível não começar a sentir uma certa proximidade. E a distância inicial vai-se esbatendo a cada revelação, culminando, por fim, num final surpreendente em todos os sentidos.
Embora o mistério central seja o do que aconteceu realmente aos pais de Anna, nem só deste caso vive a história. A acrescentar à situação de Anna, e à forma como evoca dificuldades familiares, assuntos inacabados e a sombra ominosa (e cujos verdadeiros contornos só no fim se tornam claros) da violência doméstica, está a vida pessoal de Murray, com a doença de Sarah e as dificuldades de Murray em lidar com a ideia da reforma a darem-lhe uma motivação pessoal para se embrenhar no caso. Murray acaba mesmo por ser a personagem que mais simpatia desperta, com as suas dificuldades pessoais a realçarem o facto inegável de ser uma das poucas personagens que tem inequivocamente o coração no sítio certo.
São as grandes reviravoltas a base dos vários picos de intensidade que surgem ao longo desta história: tantas que, a certo ponto, se torna impossível perceber o que move realmente algumas das personagens. Ainda assim, mais do que a surpresa causada por estes desenvolvimentos, fica um impacto mais vago, mas particularmente interessante: a forma como estas reviravoltas se repercutem no que julgamos saber sobre as personagens, principalmente Caroline. O pesado luto de Anna parece inicialmente apontar para uma família perfeita. Mas a imagem que fica no fim é algo de muito diferente.
Surpreendente será, pois, uma boa palavra para definir este livro, que, com as suas personagens ambíguas e constantes reviravoltas, pode demorar um bocadinho a prender, mas que depois se torna impossível de largar. Misterioso, cativante e cheio de surpresas, uma boa leitura, em suma.

Título: Deixa-me Mentir
Autora: Clare Mackintosh
Origem: Recebido para crítica

domingo, 28 de julho de 2019

O Comboio da Noite (Martin Amis)

Enquanto polícia, Mike Hoolihan já viu de tudo e já lidou com tudo, desde os casos mais improváveis ao simples e incontornável facto de quase todos parecem confundi-la com um homem. Mas nada a podia ter preparado para o que tem agora em mãos. Jennifer Rockwell, amiga de longa data e filha do seu antigo mentor, foi encontrada morta e tudo aponta para um suicídio. Mas o pai de Jennifer não está disposto a aceitar esse facto sem antes fazer duas coisas: descartar as alternativas e descobrir o porquê. Para lhe dar estas respostas, Mike terá de mergulhar a fundo na vida de Jennifer. E, ao fazê-lo, ganhará também uma nova visão sobre a sua vida: mais sombria, mas perturbadora, mas também mais clara naquilo que a define.
Tendo na base uma morte suspeita, é difícil não ver este livro como um policial. E é-o, em parte. Temos uma agente a investigar um potencial crime, a seguir pistas, a interrogar possíveis suspeitos e testemunhas e a chegar, finalmente, a umas quantas revelações. Além, claro, de certos pormenores particularmente marcantes da vida de Mike enquanto polícia. É, porém, também algo diferente. É o retrato da vida das duas protagonistas, dos valores e das quedas que definiram o seu percurso, das linhas comuns e da insondável diferença que as separa. E da morte, sempre a pairar como uma presença vaga, facto consumado que deixou marcas e que é, afinal, a força motriz de todas as personagens.
Surpreende, talvez, que, sendo um livro relativamente breve, tenha um ritmo tão pausado. Mas faz sentido. Mais do que pistas e revelações, embora seja destas que surgem alguns dos grandes momentos, é da vida íntima e pessoal das personagens que vive o verdadeiro âmago da narrativa. E nem Mike nem Jennifer são mulheres fáceis de compreender. É preciso tempo para assimilar todas as suas peculiaridades e compreender aquilo que as fez mover ao longo do tempo. E, havendo sempre uma certa ambiguidade nas suas naturezas, faz um certo sentido que o final seja também ele ambíguo.
Até a escrita reflecte esta estranheza das personagens, oscilando entre um registo quase intimista e a dureza inevitável de Mike na sua implacável busca de respostas. Há descrições memoráveis, frases devastadoras e repetições que, ecoando ao longo do texto, parecem ajustar-se na perfeição ao estilo da protagonista. E se também estas peculiaridades exigem um pouco mais de tempo de assimilação... bem, a verdade é que tudo vale a pena.
Breve, mas surpreendentemente complexo, trata-se, pois, de um livro que funde o mistério e a intriga de um policial com um percurso pessoal que é quase um tratado sobre a presença da morte. Ambíguo, sim, mas cativante e com uma escrita também ela cheia de surpresas, um livro exigente, a espaços, mas que, na sua singularidade, facilmente se torna memorável.

Autor: Martin Amis
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 26 de julho de 2019

A Prova (Stéphane Allix)

A fim de provar a existência de um vida depois da morte, o autor depositou no caixão do pai quatro objectos e uma mensagem, para depois realizar um teste. Comunicando através de seis médiuns diferentes, esperava obter a confirmação de quais seriam esses objectos, algo que só ele e o pai podiam saber. É esse o ponto de partida e o tema central deste livro: a entrevista com os diferentes médiuns e as respostas que obteve. E o resultado do teste... bem, é, no mínimo, interessante.
Provavelmente este livro deixará impressões muito diferentes em quem partir para a leitura com uma certa medida de crença ou com uma boa dose de cepticismo. Afinal, basta a premissa para perceber que, sendo um teste feito por alguém pessoalmente envolvido e de impossível repetição, será sempre possível levantar algumas dúvidas. Ainda assim, e independentemente da crença ou falta dela, não deixa de ser uma leitura interessante, não só pelo muito que desvenda sobre o mundo e a visão dos médiuns, mas também pela história pessoal e familiar do autor.
Também particularmente interessante é a forma como o autor estrutura o livro em torno da entrevista com os seus médiuns, apresentando-lhes o mesmo teste, mas servindo-se também de cada experiência para aprofundar um elemento diferente. Fala do luto, do que poderá existir do outro lado, das formas de comunicação e de alegada cura e também dos percursos pessoais dos próprios médiuns. O resultado é que, embora sendo o cerne de toda a experiência, o teste acaba por passar, às vezes, para segundo plano, sendo o percurso, mais do que os resultados, o que realmente cativa.
É, ainda assim, um teste e é inevitável a pergunta: será assim tão decisiva esta prova da existência de uma vida depois da morte? Bem, depende do olhar de quem observa. Não é um resultado palpável nem linear. E, assim sendo, dependerá sempre da interpretação e das bases em que esta assenta. Não deixa, ainda assim, de ser uma perspectiva muito interessante sobre um tema difícil. Além, claro, de que é possível ser-se relativamente céptico e retirar, mesmo assim, algumas ideias importantes, nomeadamente no que diz respeito ao processo de luto.
Interessante será então a melhor palavra para descrever este livro que, com uma grande missão por base, tem a sua maior força no material para reflexão nele contido. O resto implicará, talvez, uma certa medida de fé. Mas as questões, essas, nunca deixam de ser relevantes. E isso basta.

Título: A Prova
Autor: Stéphane Allix
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 25 de julho de 2019

As Cores do Assassino (Sarah J. Harris)

Jasper é um rapaz especial. Além da sua necessidade de uma ordem inalterável para as coisas, tem dificuldades em reconhecer rostos e o dom - embora muitos não o vejam dessa forma - de ver as cores dos sons. Mas foi também essa capacidade especial que o fez portador de um segredo terrível. Bee Larkham, a vizinha da frente, alguém que em tempos julgou uma amiga, está morta, embora ainda mais ninguém saiba. E ele teve um papel crucial nesse desenvolvimento. Sabe, por isso, que nunca pode falar do que aconteceu, mas as coisas continuam demasiado presentes. E é através das cores, a sua linguagem peculiar, que Jasper poderá entender o que realmente se passou. Só que também isso representa um perigo: se teve culpa, como julga, então haverá consequências. Se não teve, então há um assassino à solta e Jasper está em perigo...
Contar a história de um crime, e ainda mais de um crime resultante de uma teia tão complexa de relações, através do ponto de vista de uma personagem como Jasper, que vê o mundo de uma forma diferente e, por isso, nem sempre consegue entender e expressar aquilo que vê de formas que os outros compreendam, será sempre um desafio. É também, logo à partida, um factor de diferença. Assim, é apenas natural que seja preciso algum tempo para explorar e assimilar as peculiaridades desta perspectiva. O resultado é uma história que arranca de forma um pouco pausada (também devido às oscilações temporais, mas principalmente ao ritmo do pensamento de Jasper) e vai crescendo em intensidade à medida que as revelações se vão sucedendo.
Outro aspecto particularmente notável é a complexidade das personagens e a forma intrincada como as relações se vão desenvolvendo. Jasper é, por natureza, uma personagem mais vulnerável, mas não é o único. E os desenvolvimentos da história de Bee Larkham - que começa por ser uma boa amiga de Jasper, mas com uma história bastante mais sombria e ambígua por trás - juntam-se às reacções dos outros para criar revelações inesperadas. O passado de Bee desperta empatia, enquanto as suas manipulações despertam aversão. David Gilbert parece uma pessoa desagradável, mas talvez isso não faça dele o principal suspeito. O próprio pai de Jasper parece ter sentimentos contraditórios sobre o filho. E, uma vez que tudo isto é visto da perspectiva de Jasper, tudo ganha um impacto ainda maior, não só devido à inocência do protagonista, mas também à forma como abre caminho a grandes surpresas.
A distância e a lentidão iniciais dão, pois, lugar a uma multiplicação de emoções fortes que culminam num final cheio de grandes surpresas e também de sentimento. A relação de Jasper com o pai nem sempre foi fácil - e a mudança que o final opera sobre esta relação é também, em si mesma, algo de notável e de comovente: E é assim que o que inicialmente era estranheza acaba por se entranhar no coração: pelas imperfeições das personagens e pelo que têm de bom.
Cativa gradualmente, mas fica na memória bem depois de terminada a leitura. E, com o seu registo invulgar, as suas personagens imperfeitamente perfeitas e uma história repleta de momentos marcantes, faz de um arranque um pouco pausado uma viagem difícil de esquecer. Um bom livro, em suma, e um protagonista que vale a pena descobrir.

Autora: Sarah J. Harris
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 23 de julho de 2019

Em Nome do Amor (Lesley Pearse)

Farta da vida excessivamente pacata de Bexhill, Katy Speed anseia por viver em Londres e, enquanto alimenta esse seu desejo secreto, vai-se entretendo a observar as movimentações da casa do outro lado da rua. Gloria, a proprietária, é uma senhora simpática e deslumbrante que despertou a admiração de Katy. Mas é no momento em que Katy começa finalmente a fazer planos para o seu futuro em Londres que uma tragédia se abate sobre a sua rua: a casa de Gloria ardeu, com ela e a filha lá dentro. E o principal suspeito é o pai de Katy. Vendo essa possibilidade como impossível, Katy começa a investigar outras possibilidades. Mas está longe de imaginar que, ao fazê-lo, acabará por atrair a atenção de um homem muito perigoso...
Parte do que torna os livros desta autora tão cativantes é a sua capacidade de gerar emoções fortes. Este livro não é excepção. Com um conjunto de personagens fortes, um tema sempre actual e pertinente e um enredo cheio de momentos intensos, é fácil entrar no ritmo da narrativa, criar proximidade com as personagens e seguir os seus passos com interesse e emoção constante. E abrir espaço para um romance num cenário tão delicado como aquele em que Katy se move, partindo de um crime para a revelação de muitos outros tidos como aceitáveis na época em que o enredo decorre, é algo de verdadeiramente notável.
Outro aspecto bastante marcante é a forma como a autora constrói as suas personagens num equilíbrio de forças e de vulnerabilidades. Curiosamente, isto não se aplica apenas às protagonistas, já que a imagem inicial de Gloria, glamorosa e demasiado independente aos olhos da sociedade da época, faz com que seja vista como alguém no mínimo duvidoso. E afinal Gloria é um farol nas trevas, apontando novas oportunidades a mulheres vítimas de violência doméstica. Ora, isto definirá o fio condutor de todo o romance, colocando as personagens perante este duro tema e realçando qualidades e falhas na forma como lidam com ele. E, claro, isto abre caminho a uma imensa intensidade emocional, que, associada ao mistério, torna a leitura muito cativante.
Nem sempre esta ambiguidade das personagens impressiona pela positiva, já que a forma como Katy lida com Reilly abre espaço a alguns momentos difíceis de entender. Ainda assim, não deixa de fazer sentido no contexto da narrativa, não só devido à mentalidade da época, mas também porque reforça uma grande verdade: nem todos os monstros se identificam ao primeiro olhar. Alguns são os que parecem mais encantadores. E a capacidade da autora de conjugar este lado mais negro da natureza humana com uma história onde há, apesar de tudo, espaço para a esperança e para o amor é algo de bastante notável.
Emocionante e cheio de surpresas, trata-se, em suma, de uma história cativante, com várias personagens fortes e humanas e um enredo repleto de mistério e de emoção. Uma boa história, em suma, com um tema muito actual e relevante e cheia de beleza e de amor... mesmo em plena escuridão.

Título: Em Nome do Amor
Autora: Lesley Pearse
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Diário de uma Miúda Como Tu - Férias! (Maria Inês Almeida e Catarina Bakker)

A Francisca é uma rapariga perfeitamente normal com uma consciência ambiental acima da média. E o seu plano para as férias pode ser igual ao de tantas outras crianças da sua idade - praia, doces, diversão - mas envolve também outras actividades como apanhar lixo e ensinar os primos a serem mais ecológicos. Parece chato? Pois não é. E, na companhia dos amigos e da família, a Francisca vai ter o aniversário e as férias mais fixes de sempre!
Uma das primeiras coisas a chamar a atenção neste segundo livro de aventuras da Francisca é a agradável sensação de familiaridade, que significa que já no primeiro volume ela se tornou uma personagem memorável. Reencontrar a Francisca é reencontrar uma personagem cativante, divertida, com muito de relevante para ensinar e, ainda assim, com todas as peculiaridades de uma criança de dez anos. Ou seja, capaz de cativar tanto crianças como adultos.
Outro aspecto interessante é que, uma vez que grande parte da história deste segundo livro decorre em tempo de férias, o percurso da Francisca tem muito mais espaço para a diversão, não esquecendo, contudo, a importância do trabalho (por mais relutância que este possa envolver) e também da protecção do ambiente, causa de vida desta notável protagonista. O resultado é, pois, uma história que consegue ser muito divertida (particularmente no que toca à relação da Francisca com: 1. o irmão; 2. as verduras; 3. o acordar cedo) ao mesmo tempo que aborda várias questões pertinentes, que vão desde as múltiplas questões ambientais à importância de poder contar com os amigos e a companhia das pessoas de quem gostamos.
Ora, as férias da Francisca passam por três locais diferentes, o que poderá ter o efeito secundário de gerar uma ligeiríssima inveja em quem lê as suas aventuras - e, sim, adultos incluídos. Mas há um lado positivo nesta dispersão de cenários: é que cada local - e correspondentes pessoas - tem rotinas, hábitos e personagens diferentes, o que, além de permitir à Francisca espalhar a sua mensagem ecológica por mais pessoas, permite uma maior diversidade de interacções, que vão desde a companhia dos avós a uma multiplicidade de primos e depois apenas os pais.
No fim, a impressão que fica é bastante semelhante à do primeiro: a de um livro leve e divertido, cheio de ilustrações engraçadas e com um enredo que mistura o humor de umas quantas peripécias peculiares com uma mensagem muito importante. Uma boa história, em suma, com uma protagonista muito especial.

Autoras: Maria Inês Almeida e Catarina Bakker
Origem: Recebido para crítica

domingo, 21 de julho de 2019

Os Jogos da Minha Infância

Saltar à corda, jogar à macaca, juntar os amigos para um jogo do stop ou do mata... Todos temos em comum a memória destes jogos de infância. Preparem-se, pois, para uma viagem ao mundo da nostalgia, através desta breve, mas muito abrangente, recolha dos jogos que todos partilhámos em tempos mais inocentes. Alguns mais conhecidos do que outros, mas formando no todo uma encantadora viagem pela memória dos jogos infantis.
Muito breve e muito simples, este é um jogo que, sem grandes contextualizações, apresenta essencialmente uma recolha dos jogos tradicionais que muitos de nós praticámos em pequenos. E a apresentação é simples: as regras, acompanhadas de um esquema ou ilustração, e do número de jogadores e material necessário. São maioritariamente jogos simples e esta descrição sucinta consegue, além claro, de apelar à nostalgia, apresentar também alguns jogos específicos a quem nunca antes os conheceu. O resultado é uma mistura de diversão e nostalgia - um regresso ao passado, bem como um conjunto de actividades interessantes. Para miúdos... e não só.
Outro aspecto que sobressai é que, funcionando essencialmente como livro de instruções, sem nada mais além das simples regras, deixa a quem o lê a evocação das memórias que lhe forem mais próximas, transformando a leitura numa experiência mais pessoal. Ao mesmo tempo, funciona como livro de actividades, permitindo, talvez, a passagem destes jogos a uma nova geração. Seja como for, o efeito da leitura é bastante interessante, até porque pelo menos alguns destes jogos são intemporais.
Talvez houvesse mais a dizer sobre estes jogos tradicionais, até porque tempos houve em que foram quase omnipresentes. Mas faz sentido deixar isso à memória de cada um. Além disso, contextos e exemplos - reais ou literários - são secundários face à prática e à memória. Lembramo-nos do jogo? Então sabemos o que precisamos de saber. Não nos lembramos? Então vamos sempre a tempo de descobrir.
Termino, por isso, como comecei: realçando a deliciosa viagem à nostalgia contida nas páginas deste livro. Simples, curto, mas cheio das bases de boas memórias, um bom livro para recordar a infância ou para transmitir muitas dessas brincadeiras que tanto nos divertiram em tempos.

Origem: Recebido para crítica

sábado, 20 de julho de 2019

A Deusa da Vingança (Sara Blædel)

Quando, poucas horas após tê-lo deixado numa festa com os amigos, o filho adoptivo lhe liga a dizer que a festa foi invadida por um grupo de jovens violentos, Louise percebe imediatamente que algo de grave se passa, mas está longe de imaginar as ramificações da situação. Além da violência dos rapazes, que deixaram a mãe da aniversariante em muito mau estado, o caos da perseguição fez com que a pequena Signe acabasse por ser mortalmente atropelada. A polícia está a investigar o caso, mas dois dos agressores acabam por encontrar um fim prematuro no incêndio da arrecadação onde costumavam reunir-se. É então que, de vítima, Britt Fasting-Thomsen passa a principal suspeita. E caberá a Louise seguir as pistas e provar a sua inocência. Se puder.
Misturando o choque de um caso central onde dominam violência e morte com uma outra linha mais ambígua e intrincada, envolvendo negócios obscuros, manipulações fiscais e, claro, a ameaça de grupos organizados, este é um livro que cativa principalmente pela forma como consegue conjugar múltiplas facetas sem tornar o enredo demasiado confuso. Além dos dois casos principais, e dos pontos de convergência que vão sendo revelados, há também espaço para desenvolvimentos pessoais, tanto no percurso de Louise como também no de Camilla. Será, por isso, importante ter lido o volume anterior, já que, embora essencialmente independente, a história ganha outro impacto conhecendo a história pessoal das personagens.
Também nos casos em investigação há duas facetas aparentemente distintas: uma coisa é o caso do ataque à festa, com tudo o que veio depois; outra é o da morte de Nick Hartmann, com os seus negócios obscuros e ligações a grupos motards. Um rapidamente ganha contornos pessoais, o outro parece abranger uma organização mais vasta. Mas há, embora inicialmente não pareça, vários pontos em comum e a forma como estas duas histórias começam a entrelaçar-se confere à leitura um crescendo de intensidade que faz com que o início pausado evolua para algo bastante mais viciante.
Mas é nas personagens que estão os aspectos mais marcantes, principalmente para quem já leu o volume anterior. A relação de Louise com Jonas, e a situação delicada em que se encontram, serve de base a um dos momentos mais marcantes do percurso pessoal de Louise. E quanto a Camilla, além de acabar involuntariamente na pista de um intrigante mistério - promessa já, talvez, do que se seguirá - o seu percurso é todo um tratado sobre regeneração. Gradual, discreto, talvez ainda um pouco ambíguo, mas particularmente notável tendo em conta a forma como este livro termina.
Trata-se, pois, de uma história que arranca de forma um pouco lenta, para depois surpreender com o crescendo de intensidade e a sucessão de revelações que apresenta a cada novo desenvolvimento. Cativante, surpreendente e com um núcleo de personagens sempre notável, uma boa leitura... e uma autora para continuar a acompanhar.

Autora: Sara Blædel
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Worst Case Scenario (Helen Fitzgerald)

Na sua profissão, Mary Shields está habituada a lidar com uma boa medida de casos desagradáveis, gerindo o regresso à liberdade de agressores, pedófilos e violadores. Mas agora, quase a chegar à reforma, Mary está farta de tudo isso. Com apenas um mês até à reforma, só quer acabar com tudo. Mas as coisas estão prestes a ficar perigosas. O seu mais recente "cliente", que assassinou a mulher e está prestes a sair em liberdade, escreveu um livro que fez dele um herói para os chamados "defensores dos direitos dos homens". E, ao tentar gerir as consequências dessa fama, Mary vê-se arrastada para o mundo de Liam, comprometendo o seu emprego, a sua família e tudo o que alguma vez amou.
Com um equilíbrio delicado entre o humor e a tragédia, este é um livro que se torna memorável através das suas imperfeições. Deliberadas, claro. Mary pode ser muitas coisas, mas está bem longe de ser um ser humano perfeito e imaculado. E é isso que torna tudo tão empolgante: tendo em conta a sua profissão, é apenas natural que Mary se sinta saturada de todos os males que encontrou pelo caminho. Mas não é heroína nem mártir. Há algo de deliciosamente engraçado na forma como Mary interage com os seus "clientes" e que vicia desde as primeiras páginas.
Mas falei em tragédia, não foi? Bem, é outra das forças deste livro. Tudo começa com uma certa leveza, misturada com a inevitável repulsa gerada por certos comportamentos dos "clientes" de Mary, mas divertida, ainda assim. Com o evoluir da história, porém, há uma certa escuridão que começa a pairar sobre tudo, não só devido aos muitos inimigos que Mary foi fazendo ao longo da vida, mas principalmente devido às suas próprias más decisões. É maioritariamente "uma maluca das boas", mas as más decisões trazem consigo consequências terríveis. E a sensação de mau presságio que gradualmente se vai formando abre caminho a um final impressionante e inesperadamente devastador, em que algumas perguntas ficam em aberto, mas uma coisa é clara: há coisas que já não têm salvação.
Ainda um outro aspecto a ter em conta é o tema global. Liam Macdowall está no cerne de uma guerra entre feministas e defensores dos direitos dos homens e esta aparente guerra parecer ser um factor dominante ao longo de todo o livro. Ainda assim, e embora Mary seja uma mulher de convicções firmes, há uma visão que se centra, acima de tudo, nas zonas cinzentas. Não é difícil distinguir o certo do errado, mas, ao reflectir a natureza das personagens através das suas acções, este livro permite ao leitor pensar e decidir por si mesmo qual dos lados está certo. Além disso, a história de Mary é um exemplo claro de como as boas intenções podem gerar consequências terríveis. Ter razão e agir de forma correcta nem sempre são a mesma coisa.
Humor e tragédia, então, e um delicado equilíbrio entre a leveza dos elementos mais provocadores e a profunda e importante mensagem escondida nos pensamentos das personagens. Tudo numa história intensa, viciante e memorável, cheia de momentos notáveis e personagens fáceis de adorar - ou de adorar odiar.

Título: Worst Case Scenario
Autora: Helen Fitzgerald
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidade Marcador

Irlanda, 1846. Kathleen e Michael amam-se e planeiam em segredo abandonar a terra natal, a humilde e faminta Irlanda, em busca de uma vida melhor no Novo Mundo. Mas todos os seus sonhos são truncados quando Michael é condenado como rebelde e desterrado para a Austrália.
Kathleen, grávida, será forçada a casar com um negociante de gado e emigrar com ele para a Nova Zelândia. Enquanto isso, Michael, com a ajuda da audaciosa Lizzie, tentará escapar da colónia penal para se reunir ao seu primeiro amor.

Sarah Lark seduziu sete milhões de leitores em todo o mundo com as suas grandes sagas familiares em lugares exóticos.
Amplamente imitada, Lark conseguiu criar e consolidar um novo género narrativo, o landscape, em que as suas heroínas vivem destinos marcados pela aventura, as viagens, o romance e a história.

Sarah Lark é um pseudónimo de Christiane Gohl. Nascida na Alemanha, vive actualmente em Almería, Espanha. Formou-se em Educação e trabalhou como guia turística, redactora publicitária e jornalista. A inclinação para a escrita marcou todos os empregos por onde passou.
Com uma produção literária vastíssima, alcançou o sucesso de vendas e o reconhecimento literário graças à saga maori. A sua Trilogia da Nuvem Branca (No País da Nuvem Branca, A Canção dos Maoris e O Grito da Terra) atingiu a categoria de bestseller internacional, com um impressionante acolhimento por parte de milhões de leitores, num fenómeno de «passa a palavra» sem precedentes. Seguiu-se a Saga das Caraíbas, com A Ilha das Mil Fontes e As Ondas do Destino, que nos transportam para a beleza destas ilhas afrodisíacas.
Este livro, Rumo aos Mares da Liberdade, é o primeiro da Trilogia Mar da Liberdade
Com mais de sete milhões de leitores em todo o mundo, para Sarah Lark «escrever romances não é muito mais do que sonhar acordada».

Para mais informações, consulte o site da Marcador Editora aqui.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Kick-Ass (Mark Millar e John Romita Jr.)

Dave Lizewski sempre se perguntou porque é que, apesar de tantas histórias de super-herói, nunca houvera ninguém a tornar-se num super-herói do mundo real. Decidiu, por isso, deixar de se questionar e dar ele mesmo esse passo. Mas não basta um fato invulgar e uma certa disposição para patrulhas nocturnas para ser um super-herói, até porque, na vida real, os espancamentos magoam. Dividido entre a ambição e a falta de jeito, entre as aspirações à fama e as dores das sovas, Dave vê-se, por isso, tentado a desistir. Mas é então que a Hit-Girl entra na sua vida - e Dave, mais conhecido como Kick-Ass, vê-se arrastado para uma situação maior do que as suas (não muitas) forças.
Super-heróis: fato catita, patrulhas nocturnas, fazer o bem e salvar os que estão em perigo, alcançando fama e admiração pelo caminho. Parece apelativo, não é? Pois é isso que pensa o protagonista desta história. Mas a realidade nunca é assim tão simples e é precisamente este facto doloroso que torna esta história tão cativante. É um super-herói no mundo real, e um super-herói que nem é assim tão talentoso. O que significa que, mais do que glamour, fama e grandes cenas de acção, temos dúvidas, hesitações, grandes cenas de acção, mas que não acabam assim tão bem para o protagonista e uma visão bastante menos cor-de-rosa das realidades da vida. Não é um livro cheio de combates intrépidos e teatrais (embora eles apareçam quando de facto importa), mas sim a história de um rapaz que descobre que há uma linha a separar o sonho da realidade. E que atravessá-la tem um preço.
Verdades duras à parte, não deixa, ainda assim, de ser uma história de super-heróis, com tudo o que isso acarreta. As cenas de acção podem não correr espectacularmente bem para Dave, mas estão lá e são fascinantes. Não faltam lutas, sangue, momentos de perigo e cenas de porrada em geral. E há ainda espaço em abundância para um sentido de humor ligeiramente negro, mas sempre delicioso, e para uns quantos rasgos de emoção particularmente fortes (principalmente na fase final). Parece haver como que um equilíbrio entre os aspectos comuns - a cor, os fatos bizarros, a abundância de sangue e de movimento - e os que se afastam das histórias de super-heróis (as cenas de Dave na escola, a escuridão do quarto, o rescaldo das múltiplas sovas - e principalmente da primeira).
E eis que, quase sem querer, surge uma reflexão, já que é voltando uma vez mais às verdades duras que surge ainda um último, mas especialmente marcante, equilíbrio: para ser um super-herói, Dave torna-se vulnerável à dor, mas também a sua sensação de não pertencer é já uma vulnerabilidade. O mesmo parece acontecer na história da Hit-Girl, cujo pai, na esperança de lhe dar algo de especial, acaba por abrir caminho a grandes feitos e a grande sofrimento. E da pergunta de Dave sobre o porquê de não haver mais super-heróis na vida real surge uma outra pergunta: será que vestir um fato e andar à porrada é o que realmente faz um herói? Ou será a vida em si - com tudo o que tem de diversão e de sofrimento, tal como a história contida neste livro - o derradeiro acto de heroísmo?
Fica, pois, esta impressão deliciosamente contraditória: a de uma história de super-heróis feita de vulnerabilidades. Intensa, viciante, emotiva, dramática, cheia de acção, de cor e de movimento... mas, acima de tudo, de humanidade. No fim, é isso que realmente marca: a fascinante surpresa de ver algo de tão profundo nascer de uma história aparentemente simples. Afinal, as aparências iludem, não é? Que o digam estes heróis mascarados...

Título: Kick-Ass
Autores: Mark Millar e John Romita Jr.
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 16 de julho de 2019

Y - O Último Homem: Dragões de Kimono (Brian K. Vaughan, Pia Guerra, José Marzán Jr. e Goran Sudzuka)

Ampersand continua desaparecido e é preciso recuperá-lo. Para isso, Yorick e as suas companheiras, chegados agora ao Japão, terão de se separar para seguir as duas principais pistas que têm acerca do paradeiro do preciso macaco. Mas nenhum deles está preparado para o que os espera. Allison vai em busca do laboratório da mãe, para o encontrar destruído, seguindo-se depois um reencontro... pouco caloroso. E Yorick, na companhia da Agente 355, terão de enfrentar uma cantora transformada em chefe da Yakuza, que adoptou Ampersand como o filho que nunca teve. Mais uma vez, os perigos são múltiplos... mas talvez as respostas estejam um pouco mais perto.
Novo cenário, novas revelações... as mesmas qualidades. Poder-se-ia resumir assim este oitavo volume em que, entre os muitos novos elementos desvendados, sobressai, mais uma vez, o delicado equilíbrio entre a acção constante, com as suas incessantes reviravoltas, e o desenvolvimento pessoal das personagens. Mais uma vez à espaço para o passado, desta vez de Allison e Alter, mas também para as múltiplas movimentações das diferentes personagens... bem como dos interesses que servem. E o resultado desta conjugação é uma história em que as personagens se tornam cada vez mais próximas e as motivações cada vez mais imprevisíveis.
Há também uma transposição desde equilíbrio para os próprios cenários. Claro que basta o facto de grande parte da história decorrer no Japão para que haja uma certa diferença, e há quadros particularmente marcantes, principalmente no que diz respeito ao laboratório da mãe de Allison. Mas há, acima de tudo, um contraste entre as diferentes facetas: o verde dominante dos jardins contrasta com a desolação onde Alter parece mover-se. Os tons mais vivos do presente contrastam com os mais esbatidos do passado. E há até um certo equilíbrio entre as expressões mais vincadas das personagens nos momentos mais dramáticos e a vaga tristeza que, a espaços, lhes surge no rosto.
Mas voltando à história e às grandes revelações. Não deixa de ser impressionante que, ao oitavo volume e com muitas das grandes perguntas ainda sem resposta, fique a impressão de que muito foi, ainda assim, revelado. As forças em conflito são mais do que se previa, o que se julgava certo afinal não é assim tão claro e, no fim... Bem, no fim, tudo ganha uma nova perspectiva e as perguntas que permanecem sem resposta deixam, acima de tudo, uma vontade irresistível de saber o que acontece a seguir o mais rapidamente possível.
Com o seu núcleo de personagens fortes e a abundância de momentos marcantes tanto a nível de arte como de diálogos, eis, pois, um livro que, mais uma vez, corresponde inteiramente às expectativas, prometendo de forma ainda mais clara novos momentos notáveis para o que se seguirá. Intenso, viciante e cheio de surpresas, um livro memorável e uma série para continuar a seguir.

Autores: Brian K. Vaughan, Pia Guerra, José Marzán Jr. e Goran Sudzuka
Origem: Aquisição pessoal

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Era Proibido (António Costa Santos)

Ainda nos dias de hoje não faltam proibições que nos parecem absurdas, seja por herança de tempos passados, seja por razões mais insondáveis e peculiares. Mas foi o chamado "tempo da outra senhora" o verdadeiro reinado da proibição. Era proibido ir de minissaia para o liceu, era proibido usar isqueiro ou andar de bicicleta sem licença e, como todos sabemos, era proibido ler, escrever ou publicar certos livros. É para os meandros destas proibições que este livro nos convida a viajar, percorrendo não só as mais conhecidas, mas também algumas das mais... invulgares.
Talvez não seja a faceta mais importante, mas um dos primeiros aspectos a chamar a atenção neste livro, contribuindo também para o tornar mais apelativo, vem dos elementos visuais. Entre cartazes publicitários, objectos e fotografias, basta um primeiro folhear para despertar a sensação de regresso ao passado. E, sendo uma história de passados proibidos, estes lampejos desse tempo tornam-se mais interessantes, pois, além de traçarem um retrato visual da época, permitem associar imagens aos "frutos" proibidos.
Outro aspecto que importa destacar é que, embora sendo relativamente breve, pois haveria decerto muito mais a dizer sobre estas proibições e respectivas consequências (principalmente no que toca os livros), trata-se de um livro bastante completo. Dedicando poucas páginas a cada proibição, consegue, ainda assim, no seu registo leve e com laivos de um humor delicioso, traçar uma imagem bem viva do tempo de todas essas proibições. E não só. É que algumas perduraram, outras nunca existiram realmente a não ser nas tácitas normais sociais. E, assim sendo, é inevitável uma certa reflexão, não só sobre o contraste entre a liberdade actual e as proibições do passado, mas também na forma como certas visões de moralidade se podem tornar lei, mesmo não o sendo efectivamente.
Mas nem só do passado vivem as proibições, embora sejam as desses tempos as protagonistas. Há ainda espaço para pequenas observações sobre os problemas e proibições actuais, o que, além de fazer lembrar que há ainda um longo caminho a percorrer no que diz respeito a certas liberdades, realça o já referido paralelismo entre moral social e imposições legais. Será, talvez, um aspecto secundário, mas não deixa de ser também muito interessante.
Tudo somado, fica desta leitura a impressão de uma agradável e relevante viagem às proibições de outro tempo, num registo leve e descontraído, mas que nada retira à importância dos temas abordados. Afinal, algumas das proibições desapareceram... mas a memória, essa, continua bem presente.

Título: Era Proibido
Autor: António Costa Santos
Origem: Recebido para crítica

domingo, 14 de julho de 2019

A Holandesa (Ellen Keith)

Amesterdão. Intensificam-se os esforços dos nazis no sentido de combater os actos da resistência e é nesse âmbito que Marijke De Graaf e o marido são detidos, separados e enviados para campos de concentração. É também esse o ponto de partida para a primeira escolha difícil de Marijke: resignar-se aos trabalhos forçados ou ser enviada para Buchenwald, onde julga estar o marido, tornando-se prostituta no bordel do campo. Na esperança de reencontrar Theo, Marijke escolhe a segunda opção, sem saber que se tornará alvo das atenções de um importante oficial das SS. Este, Karl Müller, tem dúvidas sobre aquilo que está a fazer, mas as expectativas do pai e a retórica do regime levaram-no a aceitar todas as ordens como aceitáveis. E, embora a relação com Marijke o leve a questionar algumas coisas, será o instinto de sobrevivência a sua força motriz. A mesma que, anos mais tarde, levará um outro prisioneiro num país diferente a questionar - demasiado tarde - os seus próprios actos de resistência.
Dividido entre três protagonistas, com relações mais ou menos evidentes, o que mais sobressai neste livro é a capacidade de construir grandes histórias pessoais em dois dos momentos mais negros da história universal. Se a ligação entre Karl e Marijke cedo se torna bastante evidente, a relação com Luciano é bastante mais ambígua. E, ainda assim, é uma história que pertence. Porquê? Porque, mais do que as relações e os mistérios, é o percurso individual de cada um que marca. Marijke, a resistente que aceita o impensável para tentar encontrar o marido, vendo-se depois dividida entre a simples sobrevivência e sentimentos ambíguos. Luciano, também ele um resistente capturado e protagonista da sua própria descida aos infernos. E Karl, provavelmente a personagem mais ambígua de todo o livro, já que a autora começa por o apresentar como um nazi resultante, para depois expandir a sua descida à indiferença e à suma crueldade.
Apesar das relações existentes, e que se vão insinuando aos poucos, é, por isso, na jornada pessoal que estão os grandes momentos. E há muito de impressionante ao longo do caminho. Muita crueldade, acima de tudo, ou não fossem prisões os cenários dominantes. Mas também muito material para reflexão, muitas questões que, embora situadas num inferno global, adquirem uma índole mais pessoal - os sentimentos secretos de Luciano, a espécie de síndrome de Estocolmo de Marijke, a cumplicidade na sombra do medo constante - e muitos momentos perturbadores. Talvez seja também por isso que o final deixa sentimentos contraditórios, pois não há grandes revoluções nem grandes reviravoltas: apenas a recuperação possível, para alguns, a inevitável justiça poética, para outros, e o simples fim. Não é o final estrondoso que talvez fosse de esperar, mas é um final adequado. É o final que faz sentido, pois quase parece afirmar algumas grandes certezas da vida: há coisas que são insuperáveis; nem sempre os heróis vencem; e a verdade nem sempre liberta.
Há, pois, como que um grande contraste. De um lado, a fluidez de uma escrita que transporta para o mundo das personagens e dá vida aos muitos e notáveis momentos de emoção e de sofrimento. Do outro, as certezas difíceis. Quando um dos protagonistas é um nazi, é fácil antever que nem tudo acabará bem. Mas são as pequenas coisas que abalam, os gestos afáveis de um monstro, os perigos de pensar e questionar, a hesitação entre a mentira benevolente e uma verdade capaz de rasgar o mundo. Nada é fácil - e, porém, a leitura flui com uma simplicidade arrasadora. E este é um equilíbrio tão estranho quanto impressionante.
É difícil descrever as impressões que ficam deste livro, mas uma coisa é certa: são fortíssimas. E, entre a ambiguidade das personagens e o final que, embora aberto, parece ser também o mais adequado, ficam acima de tudo as emoções fortes e o cenário de crueldade que, embora povoado por personagens fictícias, não deixa, ainda assim, de ser bem real.

Título: A Holandesa
Autora: Ellen Keith
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro A Holandesa, clique aqui.

sábado, 13 de julho de 2019

Outcast, Vol. 5: O Novo Caminho | Invasão (Robert Kirkman e Paul Azaceta)

Finalmente reconciliado com Allison, Kyle Barnes está disposto a tudo para proteger a filha. Mas cedo se torna evidente que fugir deixou de ser uma opção. Os inimigos são cada vez mais e, enquanto Proscritos, Kyle e a filha nunca estarão a salvo se a única opção que tiverem for uma fuga constante. Mas, com as movimentações das forças inimigas, surgem também novos aliados. Simon, o pai de Kyle, tem um conhecimento mais amplo dos seus poderes de Proscrito, o que lhes permitirá causar mais estragos ao inimigo. Mas só uma coisa é certa: o fim está próximo. E é preciso que haja luta para saber qual dos lados vencerá.
Parte do que torna esta série tão viciante é a forma como, ao chegar ao final de cada livro, fica sempre uma grande pergunta em aberto que torna irresistível a vontade de saber o que acontece a seguir. Por isso, nada melhor que um volume duplo para satisfazer essa necessidade. E que volume! Há todo um conjunto de desenvolvimentos notáveis, que vão desde um maior desenvolvimento das forças em colisão em toda esta história a todo um conjunto de momentos de acção e de perigo que, além de tornarem a leitura absolutamente irresistível, criam um interessante contraponto com os momentos mais emotivos e pessoais. E tudo num equilíbrio certeiro em que tudo parece ocupar precisamente o sítio certo.
Sendo o penúltimo volume, é apenas de esperar que as coisas se tornem mais tensas, mais perigosas, e que os grandes desenvolvimentos tenham um impacto cada vez maior. Ainda assim, é impossível antever a força dos momentos mais relevantes, até porque, embora Kyle continue a ser o cerne de todo o enredo, parece haver novas ramificações a tornar tudo ainda mais complexo. Cada vez mais, é possível ver os dois lados da batalha e compreender quão desigual esta será. Ora, basta esta certeza para aumentar a intensidade dos momentos. Pois é quando tudo parece impossível que as grandes revelações emergem.
Comparativamente aos livros anteriores, é bastante evidente que a acção se multiplicou neste volume, sendo, naturalmente, de destacar o poderosíssimo final (tanto a nível visual como de enredo). Mas é interessante notar como a natureza essencial da história se mantém constante: o mesmo ambiente sombrio, realçado pelos tons escuros e reflexo de um conflito interior igualmente negro; o mesmo delicado equilíbrio entre a necessidade de combater e a necessidade de proteger; a mesma construção de um herói que se torna mais perfeito através das suas imperfeições. Tudo converge para um pico de intensidade, mas as pesadas sombras que fazem de Kyle Barnes a personagem que é continuam lá, onde sempre estiveram.
E, uma vez mais, tudo termina com uma grande questão e a necessidade imperiosa de saber que fim poderá haver para esta longa batalha. E a imagem que fica é novamente a mesma: a de um livro tão sombrio quanto viciante, tão peculiar como surpreendente, tão vasto e complexo como a mente do seu protagonista. Fascinante, intenso, irresistível, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autores: Robert Kirkman e Paul Azaceta
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Zona de Unicórnios (Dana Simpson)

A Bia e o seu unicórnio têm uma relação especial: partilham momentos de cumplicidade, brincadeiras e até magia. Mas, pelo caminho, há também a vida normal: a escola, com os amigos e rivais, os trabalhos de casa, a passagem das estações, a realidade, em suma. Mas tudo é melhor com o esplendor de um unicórnio, certo? E a Pureza é particularmente esplendorosa.
Parte do que torna esta leitura tão interessante é a forma como, entre a sua diversidade de episódios e temas, a mistura de simplicidade e cor e a deliciosa peculiaridade das protagonistas, consegue reunir todos os elementos necessários para cativar leitores de qualquer idade. Os mais novos sentirão certamente uma maior proximidade, já que, tal como a Bia, estão também a crescer. Mas há tanto de cativante nestas pequenas aventuras que é impossível não se chegar ao fim de sorriso nos lábios - mesmo que a infância já tenha ficado lá bem para trás.
E inevitável voltar a referir as comparações com Calvin & Hobbes, até porque há efectivamente semelhanças, principalmente no que toca à relação entre a Bia e a Pureza, mas também na forma simples e subtil como os temas sérios parecem insinuar-se, por vezes, nos episódios mais descontraídos. São mundos diferentes, claro, cada um com a sua identidade característica, mas acabam por gerar a mesma mistura de ternura e descontracção, daí que a comparação faça todo o sentido.
Mas, olhando especificamente para a Bia e para o seu unicórnio, há duas facetas que importa ainda destacar: o equilíbrio dos diálogos e aquele toque de magia que parece englobar todo o livro. Os diálogos são muito simples, há episódios que se cingem a uma única página (embora haja uma sensação de continuidade ao longo de todo o livro) e, ainda assim, tudo parece ter a medida certa. E quanto à magia, essa, está em toda a parte, desde a beleza do desenho e da cor que tanta vida dão às personagens ao simples facto de... bem, de ser a história de uma rapariga humana que tem um unicórnio. Magia, certo?
Leve e descontraído, trata-se, pois, de uma história feita de pequenas histórias e com um duo imperdível de protagonistas na mais mágica de todas as aventuras: crescer. Cativante, divertido e cheio de cor, uma belíssima leitura para leitores de todas as idades. 

Autora: Dana Simpson
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 10 de julho de 2019

A Terceira Mãe (Julieta Monginho)

Rosalina, Filomena e Joana, três gerações de mulheres unidas pelo sangue e pela memória, a ver a vida passar em busca de algo de sentido e de realização. Rosalina, criada pela tia para a submissão, vendo a sucessão de sofrimentos e apegando-se à religião para se encontrar. Filomena, arrastada pelos pais para um sonho diferente, para depois cair nos mesmos abismos. E Joana, determinada a ser diferente na recusa de um verdadeiro apego. Cada uma única à sua maneira, mas com tanto em comum para além do sangue que as une. Estas são as suas vidas. Esta é a sua história.
Dividido entre as três protagonistas e assente num percurso que é tudo menos linear, este é um livro difícil de descrever. Feito maioritariamente de instantes e de fragmentos, parece viver mais de impressões do que de uma linha precisa de acontecimentos. E, no entanto, há tanto a acontecer... A história de Rosalina é a história de uma longa vida e, embora construída através de muitos pontos, a imagem que fica é a de uma mulher completa, tão completa como as outras mulheres que deixa ao mundo. E, assim, o que aparenta ser uma sucessão de fragmentos constrói uma memória tão ampla como inefável. Difícil de descrever, em suma, mas presente, ainda assim.
Há também uma certa poesia neste registo tão peculiar. Há acontecimentos exteriores, e capazes de deixar grandes marcas, mas há também uma vasta introspecção, que vai dos conflitos interiores das personagens à sua sempre mutável percepção da vida e de quem são. São muitas as frases notáveis a emergir ao longo da leitura, as imagens que fazem eco no seu interior. E mais uma vez surge a mesma estranha imagem de um livro que vive mais das impressões individuais do que da história como um todo a que elas dão forma.
Torna-se mais pausado devido às oscilações: entre presente e passado, entre as protagonistas e aqueles que as rodeiam, entre os laivos de acção e a vasta introspecção. Mas faz também todo o sentido que assim seja: afinal, o que emerge destes momentos é um registo íntimo, interior, da vida e da mente das personagens. E, assim sendo, é apenas natural que seja necessário tempo e profundidade para assimilar todas as suas facetas. Há complexidade nas profundezas do ser e isso é algo que fica muito claro ao terminar esta leitura.
É, pois, tão difícil descrever o livro como as impressões que ele provoca. Mas fica a estranha e fascinante sensação de se ter percorrido como que um labirinto: o labirinto da vida das personagens, de onde, tal como elas mesmas, não se sai igual. É esta, acima de tudo, a marca que fica desta leitura: a de um livro poético, complexo, mas cheio das mais profundas verdades íntimas. Memorável, em suma.

Título: A Terceira Mãe
Autora: Julieta Monginho
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 9 de julho de 2019

Amada (P.C. Cast + Kristin Cast)

Passou um ano desde que Zoey Redbird e a sua Manada dos Marados conseguiram derrotar Neferet, mas a tranquilidade parece estar prestes a esgotar-se. Tudo começa com uma visão a alertar Zoey para a necessidade de estar atenta a Neferet e de investigar o seu passado. Mas a visão não é tão bem-intencionada como parece e, embora tenha o lado positivo de deixar os amigos de Zoey em alerta, acaba por ser também o início de um novo caos. Uma invasão de vampyros vindos de outro mundo lança Zoey e a sua Casa da Noite numa corrida contra o tempo. É que, no outro mundo, as coisas podem ter corrido de forma completamente diferente, mas isso não quer dizer que não haja protagonistas em comum...
Regresso a um cenário sobejamente conhecido, parte do que desperta curiosidade para este retorno à Casa da Noite é a possibilidade de ver o que aconteceu às personagens depois da série principal, além da sempre promissora possibilidade de uma nova faceta para este mundo. É esta, aliás, a principal força deste novo livro: o equilíbrio entre a familiaridade das personagens e a forma como o que parece ser o regresso da mesma ameaça de sempre acaba por abrir caminho ao desenvolvimento de uma série de elementos novos.
Zoey e os seus amigos estão mais adultos, tendo assumido posições de maior responsabilidade, o que necessariamente os obrigou a crescer um pouco. Mas é interessante ver que, por um lado, a leveza juvenil das personagens continua bem presente e, por outro, que a história se expande para abranger sentimentos mais negros, que vão das saudades de casa de Stevie Rae e da depressão de Damien aos problemas de Afrodite com o álcool e à luta contra o passado dos novos vampyros vermelhos. É uma história leve, centrada na magia e na acção, mas há espaço para momentos mais profundos - e isso não deixa de ser também uma forma de crescimento.
E depois há a história em si, com o seu ritmo intenso e cheio de surpresas. Fica, aliás, a espaços, a sensação de que certos elementos poderiam até ter sido mais aprofundados e que situações como a dos vampyros vermelhos e a relação de Afrodite com a mãe tinham potencial para ocupar muito mais espaço. Ainda assim, e apesar destes momentos mais apressados, acção e intensidade não faltam, o que, associado aos momentos de humor e de emoção, resulta numa leitura bastante viciante.
Familiar, mas diferente, trata-se, pois, de um agradável regresso a um mundo cheio de magia, de mistério e de personagens cativantes. É fácil entrar novamente na Casa da Noite. Difícil é resistir à vontade de saber o que acontece a seguir.

Título: Amada
Autoras: P.C. Cast + Kristin Cast
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 8 de julho de 2019

O Macaco Bêbedo Foi à Ópera (Afonso Cruz)

Há uma teoria que diz que, nas origens da civilização, está o cheiro a álcool emanado pelos frutos maduros, que fez com que os macacos descessem das árvores com a sua promessa de açúcar, desencadeando depois toda a evolução que se seguiu. É esta teoria o ponto de partida deste pequeno livro, que, além de se debruçar sobre a relação entre o álcool e os primórdios da humanidade, explora a influência da embriaguez e do papel social do fabrico das bebidas alcoólicas - com previsível destaque para a cerveja. O resultado é um breve, mas muito interessante, ensaio sobre a prevalecente influência do álcool na humanidade. Com uma perspectiva bastante surpreendente.
Não sendo propriamente o aspecto mais crucial deste livro, uma das primeiras coisas que importa destacar é o facto de se chegar ao fim da leitura com uma bela lista de livros para ler. São várias as referências espalhadas ao longo do texto e, dada a brevidade, é inevitável uma certa curiosidade em aprofundar certos aspectos. Estas referências são, por isso, além de uma fundamentação, uma seta que aponta em direcção a mais respostas.
Não se pense, ainda assim, que a brevidade significa a falta de alguma coisa. Não. As linhas essenciais estão bem presentes, e entrelaçam-se  num retrato global bastante fascinante, que abrange não só o impacto da embriaguez sobre o crescimento da civilização, mas também o papel social do álcool, tanto a nível de fabrico como de consumo. E, não esquivando o lado mais negro, consegue, ainda assim, concentrar-se no lado socializante da bebida. Afinal, se partimos do macaco que parte à descoberta do açúcar, faz todo o sentido que, no destino, nos deparemos com a espécie que lhe sucedeu a encontrar também algo de novo - de socialmente novo, neste caso - na sua partida à descoberta.
Há ainda um outro aspecto a acrescentar à brevidade da abordagem: a fluidez da escrita. Sendo um livro breve, espera-se que não seja muito denso, mas sendo um ensaio, haverá inevitavelmente uma boa dose de informação para assimilar. E é aqui que entra a harmonia da escrita, que, simples quanto baste, mas com o seu quê de poético na forma como contempla as questões, confere uma fluidez ao texto que não só facilita a assimilação das coisas como torna a leitura muito cativante.
Breve, mas muitíssimo interessante, simples, mas com muita informação pertinente, e assente numa perspectiva deliciosa que vai dos primórdios da evolução até à socialização actual, trata-se, pois, de um livro que, nas suas poucas dezenas de páginas, contém muito de interessante para descobrir. E isso chega e sobra para fazer deste pequeno ensaio uma leitura notável.

Autor: Afonso Cruz
Origem: Recebido para crítica

sábado, 6 de julho de 2019

A Floresta do Mal (M. J. Arlidge)

Helen Grace e a sua equipa ainda estão a recuperar da dolorosa perda dos seus elementos, mas há já um novo e sinistro caso a exigir a sua atenção. Quando à descoberta macabra do cadáver de um homem pendurado de uma árvore na floresta se segue a também sombria descoberta de dois cavalos abatidos, cedo se torna evidente que há algo maligno à solta na floresta. E, embora a equipa de Helen se atire ao caso com a determinação de sempre, as pistas são escassas e parecem conduzir inevitavelmente a becos sem saída. Mas não há crimes perfeitos e, embora o assassino se julgue o caçador ideal, a segunda morte traz consigo novas revelações. E Helen está atenta a todos os pormenores, na esperança de o travar antes que seja demasiado tarde...
Parte do que torna estes livros tão irresistivelmente viciantes é a forma como o autor consegue conjugar múltiplas facetas num equilíbrio incrivelmente eficaz. No centro, está o caso propriamente dito, misterioso, sinistro, com poucas pistas para seguir e com a noção de que o tempo escasseia a incitar à urgência em cada desenvolvimento. Em volta, surgem as ligações pessoais, as relações, os motivos subjacentes ao crime, o passado que tudo molda. E depois há ainda a expansão para o percurso pessoal dos investigadores, com as sombras trazidas dos volumes anteriores ainda a pairar, mas dando lugar também a novas relações e novos equilíbrios de poder. Tudo isto numa teia magistralmente tecida, em que tudo parece surgir na medida certa e tendo o máximo impacto possível.
Também particularmente notável é que, embora não sendo um dos casos mais pessoais, no que diz respeito ao percurso de Helen, há como que um impacto constante na história mais ampla das personagens. Primeiro, há a sombra da morte de Joanne a funcionar como motivador, principalmente para Helen e Charlie. Depois há os segredos sombrios vindos do próprio caso, que parecem ecoar também no passado da protagonista. E, entre esta visão pessoal e a investigação pura e dura do caso, há relações a desenvolver-se, vislumbres da vida privada e momentos de perigo e de medo capazes de nos lembrar que estas personagens podem ser investigadores excepcionais, mas são, acima de tudo, humanas e vulneráveis.
E, claro, há também aquele laivo característico desta série que é alta probabilidade de que o suspeito inicial não seja o verdadeiro responsável. A história constrói-se de surpresa em surpresa, de reviravolta em reviravolta, e por isso a única coisa que não surpreende é que o que parece óbvio no início não será, afinal, verdade no fim. Pelo caminho, surpresas não faltam, sejam elas no decorrer da investigação, nos momentos de tensão ao longo do enredo ou no poderoso impacto da fase final.
Intenso, irresistível, com um ritmo alucinante e um núcleo de personagens verdadeiramente poderoso, trata-se, pois, de mais um livro que corresponde inteiramente às altíssimas expectativas inspiradas por cada novo volume desta série. Surpreendente no enredo, notável no desenvolvimento das personagens e marcante em todos os grandes momentos, mais um episódio brilhante na fulgurante carreira da inspectora Helen Grace.

Autor: M. J. Arlidge
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Teoria da Viagem (Michel Onfray)

Há algo na ideia da viagem - não do mero turismo, mas do percurso do verdadeiro nómada - que deixa desconfortáveis os poderes reinantes, talvez porque o verdadeiro errante não se cinge às regras nem pode ser facilmente contido ou localizado. Mas o que tem a viagem de tão notável que se tornou lenda desde o início dos tempos, inspirando exploradores, aventureiros... e até mesmo aqueles que só viajam através das páginas dos livros? Talvez não haja uma resposta precisa, mas esta Teoria será um bom ponto de partida.
Dividido entre os diferentes passos da viagem, partindo da primeira ideia e dos preparativos para se expandir depois ao percurso, ao regresso e ao que fica depois - sem esquecer os espaços intermédios na ida e na volta - este é um livro que, embora parecendo decompor o acto da viagem em partes específicas, se concentra mais no aspecto filosófico do que propriamente nas especificidades da viagem. Faz, aliás, sentido que assim seja, até porque cada viagem é diferente. Além disso, a viagem poética e filosófica que serve de base a este livro não é uma mera experiência turística. É vista como uma revelação, pelo que é apenas natural que esta "poética da geografia" esteja sobretudo voltada para o interior.
Sendo embora um livro bastante breve, não é, de todo, uma leitura ligeira. Analisando conceitos metafísicos, a existência - e os obstáculos - do nómada ao longo da história e as várias facetas interiores de uma viagem aparentemente exterior, é um livro com muito para absorver, quer em termos de ideias, quer em termos de poética da escrita. É esta, aliás, a faceta mais notável deste livro, pois, dos meandros da análise por vezes intrincada da viagem, emergem frases tão certeiras e memoráveis que é impossível não reconhecer nas palavras a mesma poesia conferida ao acto de viajar.
Fica ainda uma impressão difícil de definir: a de que estas ideias e visões da viagem nascida nos livros, transposta para o real e depois conservada em novos verbos, terão possivelmente um impacto maior em quem já tiver estado na pele do viajante. Acaba por ser também um incentivo à viagem, bem como um belo ponto de partida para descobrir um conjunto de viajantes notáveis. Afinal, nomes para descobrir não faltam ao longo deste pequeno livro.
Breve, mas vasto nas ideias que contempla, trata-se, pois, de um livro estranhamente enigmático, pois transporta o leitor para uma viagem sem destino definido. Qualquer lugar pode ser o ponto de partida e de regresso, e o destino da viagem depende do viajante. Fica, pois, esta misteriosa sensação: a de ter ido a todo o lado sem ter ido a lado nenhum. E não é essa também a magia dos livros?

Autor: Michel Onfray
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Assassin's Creed - Odisseia (Gordon Doherty)

Descendente de Leónidas, Kassandra fez a sua linhagem cair em desgraça ao tentar impedir que o seu irmão fosse sacrificado por vontade do oráculo. Fracassou, mas, embora também a sua morte tivesse sido decretada, conseguiu sobreviver. Agora, é uma mercenária, aceitando trabalhos duvidosos para assegurar a sua sobrevivência. E espera-a o maior trabalho de todos, pois a chegada de um estranho decidido a contratá-la para matar um general espartano é, afinal, apenas o início de uma intriga que a porá frente a um perigoso culto, a muitas duras batalhas... e ao passado que julgava morto para sempre.
Sendo baseado num célebre jogo, uma das primeiras perguntas que surgem ao iniciar esta leitura é, inevitavelmente, se será necessário conhecer os meandros do jogo para apreciar a história. Bem, a resposta é não. O efeito é, aliás, o contrário, pois fica uma inevitável curiosidade em experimentar o jogo que serviu de base a este e a vários outros livros - para os quais fica também, uma vez terminada a leitura, uma grande curiosidade em conhecer. A história vale-se, portanto, a si mesma e, embora se centre principalmente na jornada da protagonista, ao puro estilo deste género de jogos, tem também uma base bastante ampla em termos de cenários e contexto.
A acção passa-se em plena Guerra do Peloponeso, e também esta escolha é um ponto a favor. Além de situar o enredo num período histórico cheio de mudanças, conflitos e intrigas, acrescenta a possibilidade de encontrar figuras históricas reais: Sócrates, Péricles, Hipócrates... Realidade e ficção tornam-se assim um pouco mais próximas, além de que, ao dar a estas figuras históricas um papel a desempenhar, o enredo ganha um maior impacto, misturando as intrigas fictícias dos cultistas com batalhas bem reais.
É Kassandra o cerne de toda a história, o que faz com que algumas outras personagens interessantes acabem por desaparecer do enredo. Seria interessante ver um pouco mais, por exemplo, do percurso de Phoibe e até do próprio Deimos. Há, ainda assim, vários momentos memoráveis e, embora limitada ao seu contacto directo com Kassandra, o desenvolvimento das personagens não deixa de ser muito interessante. E quanto ao passado de Kassandra, e consequentes reencontros... Chega até a haver espaço para alguns momentos surpreendentemente emotivos no meio do caos e da destruição.
Cheio de surpresas e com uma protagonista notável, trata-se, pois, de uma jornada pessoal no seio de uma guerra mais vasta, misturando intrigas e subterfúgios com as grandes batalhas e surpreendendo a cada revelação. Intenso, cativante e repleto de grandes momentos, uma boa leitura, em suma.

Autor: Gordon Doherty
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Urso (Jorge Mateus, Paulo Caetano e Miguel Brandão Pimenta)

Esta é a história de dois autores que decidiram escrever um livro sobre a história do urso-pardo em Portugal e sobre os passos que levaram ao seu desaparecimento. Para isso, foram ao país vizinho para fotografar um urso, dedicaram-se à pesquisa de avistamentos históricos e também à pesquisa de umas quantas lendas e mistérios. E, uma vez concluído o livro - intitulado Urso-pardo em Portugal: Crónica de uma Extinção - decidiram aventurar-se um pouco mais e escrever, em formato de banda desenhada, a história da sua história. Como que um making of. O resultado é este Urso.
É essencialmente em dois aspectos distintos que se encontram os principais pontos fortes deste livro. Primeiro, o facto de não ser uma adaptação de um livro, mas antes a história da sua criação, fazendo dos autores personagens ao mesmo tempo que introduz alguns elementos essenciais do livro que lhe seguiu de base. É necessariamente difícil imaginar de que forma poderá um livro de divulgação científica ser adaptado a este formato, daí que o facto de não ser uma adaptação e sim um complemento acaba por ter um resultado bastante eficaz. Por um lado, transmite muita informação relevante, despertando a curiosidade para o livro "original". Por outro, faz dos autores co-protagonistas, proporcionando uma leitura cheia de momentos surpreendentes.
O outro aspecto é a arte, e especificamente os contrastes entre os diferentes elementos do livro. Ao tom mais esbatido dos episódios protagonizados pelos autores, que parece evocar a pesquisa elaborada entre páginas e páginas de livros antigos, opõem-se as sequências cheias de cor e de acção dedicadas às caçadas, aos confrontos lendários e a um passado de reis e cortes. E, claro, há ainda uma organização peculiar que faz com que, entre os diálogos mais extensos e os momentos de acção silenciosa, haja também uma movimentação entre tempos que torna o passado bastante mais próximo.
É um livro relativamente simples, feito mais de pequenas histórias do que de grandes momentos, o que acaba por fazer bastante sentido tendo em conta que é a história da criação de um outro livro. Mas há também um certo equilíbrio na brevidade, pois embora o grosso da informação esteja inevitavelmente no outro livro, a essencial está presente, e complementada com uns quantos laivos de humor delicioso que importa também destacar.
Finda a leitura, fica a impressão de um livro simples, mas estranhamente cativante, que parte de uma premissa invulgar para atingir o equilíbrio certo entre informar e entreter. Cheio de cor, de humor e de informação relevante, uma leitura breve, mas muito interessante. E surpreendente, também.

Título: Urso
Autores: Jorge Mateus, Paulo Caetano e Miguel Brandão Pimenta
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 2 de julho de 2019

Marie Curie (Maria Isabel Sánchez Vegara e Frau Isa)

Quando outras meninas ainda sonhavam ser princesas, já ela sonhava ser cientista. E, depois de muito estudo e muito empenho, viria a ser a primeira pessoa a receber dois prémios Nobel, acrescentando novos e úteis conhecimentos à ciência através da descoberta da radioactividade.Chamava-se Marie Curie, e esta é a sua história contada aos mais novos.
Há qualquer coisa de encantador na forma como, em tão poucas páginas, estes livros conseguem transmitir o essencial de uma tão vasta história de vida. Isto aplica-se aos outros volumes desta colecção e, claro, a este também. Escrito de forma simples, com ilustrações bonitas e coloridas e um cenário que parece transmitir na perfeição o espírito da época, consegue não só apresentar aos mais novos uma grande figura da ciência como despertar a vontade de saber mais.
Tem também o condão de, visto de uma perspectiva adulta, realçar o essencial. Sim, há certamente muito mais para conhecer sobre a história de Marie Curie (e o mesmo se aplica também aos outros livros desta colecção), mas os passos essenciais estão bem presentes: o sonho, a dedicação, o sucesso através da persistência e a perseverança perante as dificuldades. Junte-se a este percurso essencial os pormenores específicos da história da protagonista e o resultado é um belíssimo equilíbrio: história de uma figura específica que é importante conhecer e reflexão sobre o valor dos sonhos e a importância de lutar para os concretizar.
Ainda um último aspecto que importa referir, também ele comum a todos os livros desta colecção, é a forma como a história parte de uma Marie criança, acompanhando o seu crescimento e depois os seus feitos. Também daqui sobressai a ideia de que o sonho é o princípio e de que o resto é feito de tempo, esforço e principalmente de crescimento. Além disso, ver o crescimento acontecer ao longo das ilustrações pode até criar uma certa sensação de proximidade, lembrando aos pequenos que também eles vão crescer e aos não tão pequenos que em tempos também o foram.
Tudo somado, fica a impressão de um livro simples, bonito e muito interessante, perfeito para gerar curiosidade e dar a conhecer mais uma grande figura - neste caso, da ciência. Cativante, realça o valor do sonho e da persistência, mostrando que o essencial cabe, às vezes, em poucas palavras. Para saber mais, haverá decerto outros livros. Mas este... este é um belíssimo ponto de partida.

Título: Marie Curie
Autores: Maria Isabel Sánchez Vegara e Frau Isa
Origem: Recebido para crítica