terça-feira, 30 de junho de 2020

Voar Depois de Cair (Isabel Baía Marques)

Entregar o coração a alguém pode ser uma das coisas mais assustadoras da vida, principalmente para quem já o fez algumas vezes e... correu mal. Mas há formas de mudar o caminho previsível, olhando um bocadinho mais para nós antes de mergulharmos de cabeça, aprendendo a dar e a receber com conta, peso e medida, a persistir - e a desistir quando a situação é um caso perdido - e a abrir novamente as asas depois de uma grande queda. É sobre todas estas coisas e sobre as relações - com os outros e com a nossa própria consciência - que este livro fala.
Uma das primeiras coisas a chamar a atenção para este livro é o impacto visual. Sendo escrito em forma poética, embora num registo muito simples, cedo se torna evidente que os desenhos simples das páginas vêm reforçar a impressão de proximidade emocional que vem das palavras. Não é nem pretende ser um diário, mas esta conjugação de texto e imagem dão-lhe, até certo ponto, um aspecto de um, o que contribui para a impressão de uma leitura intimista, algures entre o conselho e a confidência sobre os assuntos do coração.
Outro aspecto a salientar é que não se destina necessariamente a ser lido de forma sequencial. Pode fazer-se, é certo, e isso não retira nenhuma da relevância às ideias, ainda que uma leitura consecutiva possa deixar, por vezes, a sensação de uma ligeira repetição. Mas, lido da forma como a autora sugere, abrindo-o ao acaso e lendo as mensagens, pode funcionar como um pequeno conselheiro, como uma presença que desafia e - até certo ponto - orienta. Como um guia silencioso, mas muito eloquente, para as relações com os outros e connosco.
E é um livro muito próximo, pois a simplicidade das palavras, associada ao simples facto de terem como tema as relações, confere uma estranha afectuosidade. Funciona quase como a voz de uma amiga que ouve os desabafos e depois aconselha. Claro que cada um tem a sua história e o que é válido para alguns não o será para outros. Mas há coisas que são tão simples e que parecem tão evidentes que acabam por surgir como uma surpresa, ao estilo "como é que eu nunca pensei nisso?"
Visualmente encantador e com um registo que equilibra de forma eficaz a simplicidade das palavras e a precisão dos conselhos, trata-se, pois, de um livro que, mais do que de leitura única, apela a múltiplos regressos. Afinal, as grandes verdades escondem-se, por vezes, nas pequenas coisas. E material para reflexão é algo que não falta ao longo destas páginas...

Autora: Isabel Baía Marques
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 29 de junho de 2020

O Silêncio das Mulheres (Pat Barker)

Pode ter começado devido a uma mulher, mas os protagonistas das narrativas da guerra de Tróia sempre foram homens: Odisseu, Ájax, Príamo, Agamémnon... Aquiles. E a história é, ainda e sempre, a de Aquiles, mas não só. Briseida, a mulher que dá voz a este livro, começou como uma criança do seu tempo, ascendeu a rainha num casamento infeliz e viria a desabar com fúria ante a tomada da sua cidade, reduzida à condição de escrava e prémio de Aquiles. Mas, num tempo em que "o silêncio assenta bem às mulheres", as histórias para contar partilham-se nas sombras. E, da sua posição discreta, Briseida vê os conflitos dos homens, a crueldade dos homens, a brutalidade da guerra... e o seu coração cheio de ódio transforma-se também em algo diferente...
É difícil escolher um ponto para começar a falar sobre este livro, pois todo ele forma uma unidade perfeita. Mas talvez importe realçar, acima de tudo, a escrita e a forma como a autora confere à sua protagonista uma voz tão eficaz na melancolia poética como na descrição certeira dos acontecimentos mais brutais. Tudo parece ter o encadeamento certo: os grandes momentos de conflito, os rasgos de emotividade, a inevitável análise que Briseida faz das suas circunstâncias e daquilo que a rodeia e ainda as frases memoráveis que tornam a longínqua guerra de Tróia num acontecimento tão real como actual. É como estar lá com ela. É sentir tudo com ela. E que mais se pode pedir a um livro que tão facilmente nos transporta para o seu interior?
Outro aspecto que sobressai é que, embora grande parte das personagens deste livro sejam sobejamente conhecidas - ou não fosse esta uma reconstrução da Ilíada - a visão com que ficamos é, ao mesmo tempo, familiar e diferente. Familiar, pois os pontos essenciais continuam presentes em toda a sua força. Diferente, porque são vistos de outra perspectiva e complementados por toda uma história oculta das figuras invisíveis da história. É uma história conhecida... até certo ponto. Mas tem também muito de novo.
É, contudo, na complexidade das emoções que está a derradeira força desta história. É fácil, desde o início, sentir empatia pela mulher encurralada numa cidade em vias de cair, tendo pela frente apenas duas perspectivas: morte ou escravidão. Mas, com o desenrolar dos acontecimentos, tudo se aprofunda e expande para uma maior - e mais impressionante - ambiguidade. Troiana escrava de gregos, Briseida conhece bem o ódio e a impotência, mas as relações que vai estabelecendo envolvem esses sentimentos numa camada de outras emoções mais complexas. Além disso, é particularmente brilhante a forma como esta ambiguidade é transposta para a caracterização dos grandes heróis. Embora escrava de Aquiles, Briseida vê-o como mais do que o homem cruel que lhe matou a família e a escravizou - sendo certo, porém, que nunca deixa de ver essa faceta. E assim, tudo avança num equilíbrio delicado, onde ódio, afeição e algo de intangível algures no meio se entrelaçam numa teia comovente.
Maravilhosamente escrito, fortíssimo na construção dos cenários e da teia de ligações entre as personagens, surpreendentemente emotivo e repleto de pormenores deliciosos, eis, pois, uma narrativa à altura da história intemporal que lhe serviu de base. Intenso, fascinante e belíssimo em todos os aspectos, um livro que é simultaneamente uma visão nova da história da guerra de Tróia... e todo um tratado sobre a complexidade humana.

Autora: Pat Barker
Origem: Recebido para crítica

domingo, 28 de junho de 2020

Dezanove Minutos (Jodi Picoult)

Desde o seu primeiro dia de escola que Peter foi vítima dos ataques e provocações dos colegas, mas sempre contou com a sua única amiga, Josie Cormier, para atenuar um pouco o impacto. Mas o tempo passou e a amizade esbateu-se. Josie passou para o "outro lado" e Peter ficou mais sozinho do que nunca. E seria esse o princípio de um acto que abalaria a comunidade para sempre. Aos dezassete anos, Peter Houghton escolheria uma manhã de Março para pegar em quatro armas, entrar na sua escola... e começar a disparar. E esses dezanove minutos... mudariam tudo para todos.
Parte do que torna este livro tão memorável é a capacidade da autora de abordar um tema sério e globalmente relevante através da visão íntima e pessoal das suas personagens. Já todos ouvimos as histórias reais de tiroteios em contexto escolar e a forma como a autora parte deste cenário para construir a história dos seus protagonistas é particularmente equilibrada. E, assim, o resultado é uma leitura que, ao mesmo tempo que apela à reflexão sobre questões como o bullying, a facilidade de acesso às armas e o tipo de perturbação que pode desencadear acontecimentos destes, traça um percurso complexo, profundo e emotivo para as várias personagens que povoam esta história.
Esta complexidade não se resume ao tema, estando também bem presente na vida e no pensamento das várias personagens. Claro que grande parte do foco está nas vidas de Peter e Josie. Peter, atormentado pelo bullying constante, bem como pela sombra do irmão aparentemente perfeito, refugiando-se no seu mundo e no afecto imperecível por Josie para continuar a aguentar-se até à derradeira humilhação. Josie, disposta a fazer tudo para se tornar popular, até a deixar-se prender numa relação abusiva. E as suas famílias também. É aqui que a forma como a história é contada se torna também particularmente relevante, pois ao oscilar entre o que aconteceu antes do tiroteio e tudo o que veio depois, a autora traça o percurso das personagens não só no que conduziu àquele momento, mas também ao impacto que ele teve nas suas relações e estabilidade mental.
Há ainda um outro ponto que importa destacar, e que é também um factor de profundidade: a capacidade de despertar sentimentos complexos por todos os envolvidos. Seria fácil mostrar Peter como apenas o monstro que matou vários colegas, mas a autora constrói para ele uma história bastante mais vasta. Da mesma forma, a história da relação de Josie com o namorado mostra que também algumas das vítimas escondiam certas ambiguidades morais. E, tendo em conta o grande mistério que é revelado no final - e que vem acrescentar também um poderoso factor surpresa - esta ambiguidade e complexidade vem tornar toda a história muito mais intensa e surpreendente.
Poderoso nos temas, profundo na abordagem e cheio de intensidade e emoção ao longo de todo o percurso, trata-se, pois, de um livro que, apesar de relativamente extenso, nunca perde a força nem a envolvência. Dezanove minutos e o abalar de vidas inteiras... num equilíbrio perfeito e memorável.

Autora: Jodi Picoult
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O Livro da Sabedoria (Kahlil Gibran)

A sabedoria manifesta-se de muitas formas e em muitos contextos: em solidão ou comunidade, na vida particular ou em posições de poder. Mas o que é a sabedoria? Muitas serão também as definições e os aspectos em que é demonstrada. Este livro reflecte alguns deles, de uma forma que é simultaneamente poética e avassaladoramente simples.
Uma das primeiras coisas que importa referir sobre esta edição é que conjuga textos de várias obras do autor a fim de criar uma visão global e comum da sabedoria nas suas diversas vertentes. Uma das primeiras impressões é, pois, naturalmente a vontade de ler as obras de onde estes textos foram coligidos. Mas há também uma outra percepção notável: a de que, embora com origem em diferentes pontos, o conjunto destes textos compõe um todo coeso, com uma estrutura eficaz e uma visão tão precisa como abrangente do que é - e de que rostos adopta - a sabedoria.
Outro aspecto que fica na retina é a diversidade de formatos, que vão do mais breve aforismo a alguns relatos mais extensos, sem que jamais deixe de se notar a sensação de pertença. Podem não ter todos a mesma origem, mas todos os textos fazem sentido neste livro. Além disso, esta diversidade permite também apelar a sensações diferentes. Jesus pode ser uma figura em destaque em vários dos textos, mas a visão global é igualmente apelativa para crentes e não crentes. Até porque a sabedoria deste livro é bem mais espiritual do que dogmática.
Importa, por último, realçar a organização, sobretudo pela forma como reflecte as diferentes vertentes em que a sabedoria é mais necessária, permitindo, através dos vários textos, ficar com uma visão mais ampla (ainda que quase sempre concisa), mas também porque torna muito mais fácil, numa segunda leitura, ir em busca de um tema ou texto específicos. Não faltam ideias e frases memoráveis neste pequeno livro, por isto esta facilidade em regressar aos pontos que mais marcaram é também em si mesma um ponto forte.
O que fica deste livro é, pois, uma impressão contrastante: uma leitura que é simultaneamente leve e surpreendentemente profunda, espiritual, mas também bastante pragmática e com um equilíbrio muito eficaz entre a individualidade de cada texto e a coesão do todo. Simples quanto baste, mas  muito cativante, uma boa leitura, em suma.

Autor: Kahlil Gibran
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Poção Venenosa (Linda Chapman)

Ionie, Maia, Lottie e Sita sabem que anda alguém a fazer magia negra no bosque e a destruir a clareira, mas ainda não conseguiram descobrir quem é. Sabem que usar a magia para o bem atenua um pouco os efeitos da magia negra, mas isso não basta. E, quando os adultos começam a comportar-se como adolescentes, cedo se torna óbvio que algo de estranho se passa... principalmente porque Maia viu a sua misteriosa adversária a preparar uma poção na clareira, o que significa que tudo parece estar ligado.
Parte do que torna estas aventuras tão cativantes é a sua grande medida de inocência, entrelaçada com uma forte mensagem de amizade. Todo o percurso está envolto em ternura, tanto na relação das quatro amigas com os seus animais como na visão de uma magia que, usada para o bem, regenera o mundo. Se juntarmos a isto o contraste entre a magia benévola das personagens e os efeitos da magia negra, o resultado é uma história de base muito positiva e com uma boa visão da eterna luta entre o bem e o mal.
Sendo a linha que separa os dois lados bastante linear é, naturalmente, inevitável que certos aspectos sejam relativamente previsíveis, principalmente o fim. Mas, sendo certo que, de uma luta do bem contra o mal se espera sempre que seja o bem a vencer, já os caminhos até lá podem ser muito diferentes. E é precisamente isso que acontece nesta história: parte da resolução pode ser previsível, mas o caminho até lá está cheio de momentos empolgantes, de episódios divertidos e de uma ternura que nunca desaparece das páginas destas histórias.
E importa, como de costume, fazer ainda uma breve referência às ilustrações, que, relativamente simples, mas também muito expressivas, dão mais vida a uma história que é por si só muito cativante. Além, claro, de tornarem o livro mais bonito, o que é também sempre um ponto positivo.
A imagem que fica é, pois, a da já habitual história leve e cativante, em que magia e amizade convergem para formar um todo poderoso. Simples quanto baste, mas muito agradável e cheia de ternura, uma boa leitura para os mais novos e não só.

Autora: Linda Chapman
Origem: Aquisição pessoal

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Ms. Marvel, Vol. 4 - Os Últimos Dias (G. Willow Wilson e Adrian Alphona)

Kamala pode ter uma vida normal muito estrita, mas, quando veste o fato de Ms. Marvel, a cidade é o seu domínio. E a sua presença é mais necessária que nunca. A sua mais recente paixoneta revelou ser um dos lacaios de um super-vilão e, após ter sido rejeitado por Kamala, voltou agora as suas atenções para a sua família. Mas, como se não bastasse essa preocupação, algo se passa na cidade - e tem todo o aspecto de ser o fim do mundo. Felizmente, desta vez Kamala tem reforços. E nada mais nada menos que a "mais-que-fixe" Carol Danvers... também conhecida como Capitã Marvel.
Um dos aspectos mais cativantes de Kamala enquanto super-heroína é o facto de, em parte devido à idade, em parte devido à novidade dos seus poderes, estar muito longe de ser uma figura perfeita. Tem poderes fantásticos, o coração no sítio certo e coragem para dar e vender... mas também tem dúvidas, vulnerabilidades e um coração partido. Ora, o que isto significa é que, com super-poderes ou sem eles, Kamala é uma personagem surpreendentemente humana, o que se torna particularmente evidente neste volume, já que, ante a iminência de um possível fim do mundo, as relações pessoais acabam por assumir um papel muito importante.
Mas desengane-se quem pensa que a história é mais parada ou introspectiva. Muito pelo contrário. À inevitável introspecção - com todas as descobertas pessoais associadas - junta-se um conjunto de cenas de acção muitíssimo intensas, cheias de movimento e de intriga (ainda que sem todas as respostas) e com o habitual sentido de humor a que Kamala já nos habituou. Além disso, o contraste entre estas duas facetas torna-se particularmente evidente a nível visual, com a expressividade dos rostos, sobretudo nos planos mais próximos, a contrastar com o caos mais ou menos generalizado (e cheio de pormenores) que se espera da omnipresente ameaça de um apocalipse.
É sobre este fim do mundo que ficam algumas questões em aberto, sendo um daqueles casos em que provavelmente um conhecimento mais aprofundado deste(s) universo(s) poderá facilitar a compreensão. Ainda assim, é interessante notar que, embora sem grandes explicações sobre o que se passa, a forma como essa linha da história termina é surpreendentemente adequada. A grande força de Kamala enquanto super-heroína é precisamente a sua humanidade - e, assim sendo, faz todo o sentido aquele momento final.
Acção e intensidade contrastam, pois, com a vulnerabilidade e a relativa inocência da protagonista para criar uma história que, entre o global e o individual, nunca deixa de ser cativante: uma história de heróis, vilões e apocalipses... e de uma rapariga normal - bem, mais ou menos - a tentar fazer o que está certo.

Autores: G. Willow Wilson e Adrian Alphona
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 23 de junho de 2020

Diário da Coreia do Norte (Michael Palin)

Considerado o país mais fechado do mundo, embora frequentemente referido nas notícias devido aos focos de tensão e aos avanços e recuos ao nível da política externa, a Coreia do Norte é um país acessível aos olhos de muito poucos. E mesmo aqueles que têm a oportunidade de o visitar vêem-se limitados naquilo que lhes é permitido ver. Este livro traça o relato de uma viagem improvável, sobretudo por estar associada à produção de um programa, mas que permite ficar com uma visão bem diferente do chamado Reino Eremita.
Uma das primeiras coisas a chamar a atenção ao primeiro contacto com este livro é a abundância de fotografias. Particularmente relevantes tendo em conta que não se trata propriamente de um destino turístico de massas, permitem, desde logo, ficar com uma ideia visual bastante clara do que é a Coreia do Norte, não só em termos de monumentos, mas sobretudo de paisagens. Além disso, as fotografias não se cingem aos cenários, mostrando também os rostos de algumas das pessoas com quem o autor se cruzou. Isto é particularmente interessante se tivermos em conta que, ao longo de todo o texto, é realçado o facto de todos os contactos necessitarem de obter algum tipo de aprovação.
Esta expressividade visual tem também o dom de complementar na perfeição um texto cujo registo é não só bastante sucinto como também bastante pessoal. Chama-se Diário da Coreia do Norte e é, acima de tudo, disso que se trata: das percepções do autor ao longo do percurso, dos processos da gravação, das peripécias mais particulares da viagem e das impressões pessoais que vai formando. Não há, pois, longas descrições, ainda que surjam quando necessário - e esta percepção pessoal aproxima-nos mais do papel do viajante.
Fica ainda uma impressão curiosa, pois, desde o início ao fim do percurso, é frequentemente realçado o facto de haver um controlo do que é visto e filmado. É, por isso, particularmente notável que, apesar das restrições, o autor descreva a criação de uma relação de descontracção e proximidade com os seus guias. Além disso, o capítulo final dedicado à viagem de reconhecimento permite entender uma definição de limites que é bastante menos rígida do que se poderia imaginar.
A impressão que fica é, pois, a de uma viagem surpreendente aberta - ainda que com os seus limites, naturalmente - a um país que é conhecido por ser fechado. Uma viagem de trabalho, mas cheia de percepções pessoais, e que permite ficar com uma imagem bastante nítida de um local muito difícil de se visitar. Vale a pena fazer esta viagem - ainda que apenas nas páginas deste livro.

Autor: Michael Palin
Origem: Recebido para crítica

domingo, 21 de junho de 2020

A Queda Sombria de Elizabeth Frankenstein (Kiersten White)

Subitamente elevada de uma vida de maus-tratos e pobreza à possibilidade de uma educação decente e uma existência tranquila, Elizabeth Lavenza decide ser exactamente aquilo que dela é esperado: uma companheira e um factor tranquilizador para o jovem e perturbado Victor Frankenstein. E, ao longo dos anos, Elizabeth aprende a ser perfeita no seu papel, a fazer seja o que for - ou a fingir não ver seja o que for - para bem da sua própria segurança. Mas Victor esconde trevas mais profundas do que a própria Elizabeth imagina. E o dia em que decide ir à sua procura após um longo silêncio é o dia em que o perigo se torna palpável. E a verdade impossível de evitar.
Frankenstein é um clássico e, como tal, dispensa apresentações. O que significa que o primeiro aspecto a destacar acerca deste livro será inevitavelmente a forma como se relaciona com a sua fonte de inspiração. Trata-se de uma reconstrução, que, vista pelo olhar de Elizabeth, traça imagens muito distintas para os principais intervenientes. Mas, mais do que isso, trata-se de uma história que, embora partindo das linhas essenciais da obra que lhe serve de base, acaba por ganhar uma identidade própria e um impacto só seu.
Outro aspecto também especialmente marcante é que, não só a visão da história é diferente, como vai sofrendo alterações com o desenrolar dos acontecimentos. Não só em comparação com a história original, mas sobretudo com o que julgamos saber. Victor e Elizabeth têm uma relação profunda, para o bem e para o mal. E, ao contar a história pela voz de Elizabeth, a autora envolve todos os acontecimentos na perspectiva muito parcial - e moldada pelos sentimentos que a movem - da protagonista. O resultado é um conjunto de surpresas que, tão inesperadas para quem lê como para quem conta a história, ganham mais força emocional. Além disso, o papel das diferentes personagens vai também sofrendo alterações, não só à luz dos segredos de Elizabeth, mas também da diferença entre a realidade e o que ela julga saber.
E importa ainda olhar um pouco para a escrita, realçando os discursos mais elaborados - que reforçam o paralelismo com o Frankenstein original - e o seu contraste com a força das emoções que, descritas de forma tão directa e tão próxima do coração de Elizabeth, tornam mais palpável a sombria intensidade de cada momento. Até porque sombras não faltam neste livro - e o título dificilmente poderia ser mais adequado.
Sombrio, envolvente e de uma profunda emotividade, eis um livro que recria na perfeição o ambiente da história que lhe serviu de base, para depois o transformar em algo diferente, mas igualmente intenso e cheio de vida. Fascinante em todos os seus aspectos - e sobretudo na complexidade da protagonista - uma leitura memorável em todas as suas facetas.

Autora: Kiersten White
Origem: Aquisição pessoal

sábado, 20 de junho de 2020

Inferno (Pedro Eiras)

Há quem diga que o inferno é fogo e enxofre, outros que se trata de uma ausência. Dante dividiu-o em círculos, com diferentes tormentos reservados às várias classes de condenados. E há até quem diga que o inferno são os outros. Neste livro, o inferno é talvez um pouco de tudo isso, pois, para cada círculo, para cada classe de alma, traça novas formas de inferno - tormentos, abismos, vazios - ao mesmo tempo que contrapõe à antiga visão uma nova e muito actual. O inferno... bem, o inferno pode ser tudo. E é precisamente essa percepção que torna este livro tão memorável.
Algo que fica sempre no pensamento ao ler um livro de poesia é o contraste entre a individualidade de cada poema e a imagem global formada pelo conjunto. Bem, este livro vai um pouco mais longe. Todo ele é um todo coeso, um percurso mais ou menos sequencial - ainda que cada poema mantenha efectivamente a sua independência - aos profundos e fascinantes infernos que traça. Parece ter sido pensado como um todo e é precisamente essa a impressão que fica. Nem nós somos Dante nem o autor é Virgílio, mas o caminho é, ainda assim, uma viagem. E uma viagem notável.
Também notável é o contraste entre o actual e o intemporal. O inferno é um mito universal e a sua presença sente-se nos ecos quase lendários que se vão reflectindo em cada poema. E, em contraste com este registo quase mítico, surge uma muito viva contemporaneidade. Elementos do quotidiano confundem-se entre abismos de escuridão possivelmente mental. Infernos de fogo e enxofre dão lugar a infernos interiores de rotina. E tudo parece conviver num equilíbrio perfeito. Tudo é diferente, mas tudo pertence. Tudo faz sentido.
E há ainda um outro ponto que importa destacar. Inferno significa condenação e condenação implica julgamento. É, pois, apenas natural que este tema seja dominante ao longo de todo o livro. Juízo final, claro, mas também os múltiplos julgamentos da vida. Também aqui, presente e intemporal parecem convergir e o resultado é fascinante.
Feito de medidas iguais de contemporaneidade e lenda, bem como de uma fusão perfeita de profundidade e aparente simplicidade, trata-se, pois, de uma descida ao inferno com tanto de sombrio como de estranhamente natural. Belo, evocativo e repleto de palavras marcantes, um livro que fica na memória - e que, logo ao chegar ao fim, apela ao regresso.

Título: Inferno
Autor: Pedro Eiras
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Idade Média Medonha (Rui Correia, António F. Nabais e Hélio Falcão)

Raptos, batalhas, cabeças cortadas. Espanhóis escondidos num forno, um rei inútil e outro que afinal não bateu na mãe. Sim, são episódios da história de Portugal, e o que não falta são histórias arrepiantes. E que melhor forma de descobrir a história do que a partir destes relatos caricatos e um tanto ou quanto sinistros?
Um dos primeiros aspectos que importa salientar sobre este livro é a capacidade de tornar a história bem mais fascinante e envolvente do que, por exemplo, o enumerar da lista de reis que muitos de nós tiveram de decorar na escola. É muito mais fácil - e interessante - aprender quando o que temos à frente nos cativa. E é essa precisamente a força deste livro: a capacidade de, através dos seus episódios mais notáveis - e, bem, um tanto ou quanto medonhos - permitir assimilar não só estes momentos históricos mas também os seus protagonistas.
Outro aspecto que contribui em muito para este impacto são, naturalmente, as ilustrações. Ora, sendo a história de um período arrepiante, não é propriamente surpreendente que dominem os tons de vermelho. (Pois... há sangue envolvido.) Mas há também outro aspecto interessante e tem a ver com a forma como as ilustrações complementam e realçam o impacto de um conjunto de episódios que são descritos de forma muito sucinta.
E importa, por último, salientar dois pontos complementares. Primeiro, a presença dos dois jovens comentadores que vêm acrescentar uma divertida perspectiva actual sobre os episódios narrados. E depois a entrevista final com os autores, que tem também o condão de nos fazer lembrar que aquela ideia de que na Idade Média é que era bom... se calhar não é assim tão verdadeira.
Leve e sucinto, mas muito cativante, trata-se, pois, de um livro capaz de dar vida e envolvência a alguns dos episódios mais horripilantes da história de Portugal. Visualmente brilhante, além de muito divertido, é o livro ideal para cativar os mais novos para a história. E, já agora, os menos novos também.

Autores: Rui Correia, António F. Nabais e Hélio Falcão
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 16 de junho de 2020

Poesia Completa (Maria Alberta Menéres)

Ouvir o nome de Maria Alberta Menéres é, pelo menos para as pessoas da minha idade, pensar em Ulisses, o livro que todos lemos na escola. Mas há evidentemente muito mais para descobrir, e que melhor forma de o fazer do que através de um livro que reúne todo o percurso poético da autora? Todos os livros de poesia publicados, mais alguns textos dispersos, incluindo um ensaio e um muito curioso conto fantástico, o que implica que este extenso volume nos faz chegar ao fim com uma visão bem diferente da evocada pela simples brevidade de Ulisses. Uma visão fascinante, aliás.
Provavelmente o aspecto mais interessante deste volume - além do óbvio interesse da poesia em si, que é belíssima - é que, ao acompanhar a linha cronológica das publicações, é possível captar como que uma evolução no estilo. As imagens vão-se tornando mais complexas, os ritmos mais desenvolvidos, sem nunca perder de vista a estranha e envolvente emotividade que se sente desde os primeiros poemas. É como se, nos primeiros livros, houvesse uma emoção mais à flor da pele, que se vai aprofundando em imagens um pouco mais labirínticas - que implicam criaturas imaginárias e até mesmo referências dignas de ficção científica - mas nunca desaparece. Como que uma visão que vai mergulhando mais fundo, sem nunca perder de vista os sentimentos que lhe servem de base.
E há um sentimento que domina, uma melancolia discreta, quase indescritível, que parece marcar presença em todos os cenários, do que se voltam mais para o interior da alma aos que traçam paisagens impossíveis. É, aliás, isto mesmo que torna tudo tão memorável, porque os sentimentos são próximos, mas as imagens que os envolvem são únicas e peculiares. O resultado são versos memoráveis, expressões que se entranham na memória e a sensação de  algo que, embora tão diferente, contém, ainda assim, um bocadinho de nós.
Importa, talvez, olhar um pouco para a forma e destacar dois aspectos. Primeiro, a cadência tão fluida das palavras que, mesmo nas suas construções mais complexas, parece fluir com a máxima naturalidade. E depois, em contraste, o conto, com a sua estrutura tão bizarra e tão complexa que evoca quase um sonho também ele peculiar. Dificilmente poderiam ser mais diferentes, mas parecem reflectir a mesma identidade. Na complexidade das palavras, o conto faz lembrar a poesia - que, por sua vez, flui com a naturalidade de uma história.
Longa e estranha viagem por sentimentos tão vastos, é um mergulho fascinante numa vida inteira de poesia. O tipo de mergulho que, belo nas palavras e nas imagens que nos traça na memória, nos chama a regressar múltiplas vezes. O que dizer então deste grande volume? Que é uma bela obra para se ter à cabeceira. E que é belíssimo, claro.

Título: Poesia Completa
Autora: Maria Alberta Menéres
Origem: Recebido para crítica

domingo, 14 de junho de 2020

Os Filhos de El Topo - Abel (Alejandro Jodorowsky e José Ladrönn)

A profecia de que um dia viria a matar o irmão fez com que Caim fosse amaldiçoado, condenado a vaguear pelo mundo sem que olhos alguns o contemplassem. Agora, porém, é necessário que os irmãos se reencontrem. A morte da mãe leva Abel a pedir a ajuda de Caim para a levar até à ilha santa, pois o aroma a santidade que emana do seu cadáver atrairá todo o tipo de bandidos. Quanto a Caim, só quer o ouro da ilha. Mas a viagem gera paixões e ressentimentos e aquilo que ambos procuram pode muito bem alterar-se, bem como as suas próprias naturezas.
Dando continuidade aos acontecimentos do volume anterior, mas envolvendo-os em novas camadas de estranheza e de complexidade, este é um livro que, além de revelar novas facetas do seu protagonista, mergulha de cabeça nas profundezas da sua ambiguidade moral. Caim, o maldito, não quer realmente matar o irmão e Abel não acredita que ele o faça, mas isso não significa harmonia. Além disso, Caim é tão capaz de ternura como de crueldade, de indiferença como de desespero. E Abel... bem, nem a santidade resiste a tudo e o Abel do fim deste livro é bem diferente do do início.
Mas a estranheza não fica por aqui. Há todo um conjunto de situações e personagens peculiares, desde uma comunidade de fanáticos às estranhas freiras guerreiras, passando por um estranho líder de combatentes que tem asas e se acha um cão. Tudo é, de certa forma, bizarro e um pouco louco e a forma como isto ganha vida nas páginas, sem grandes explicações, mas com um equilíbrio eficaz, desperta medidas iguais de perplexidade e fascínio - e faz com que seja impossível parar de ler.
Sendo o segundo de três volumes, não é propriamente uma surpresa que muitas coisas sejam deixadas em aberto. Ficam, de facto, muitas perguntas sem resposta, o que faz especial sentido, já que todo o percurso parece ser uma sucessão de mudanças em preparação para um destino final. Não se lhe pode, ainda assim, chamar curiosidade insatisfeita, pois é apenas curiosidade: a natural curiosidade de saber o que se segue para uma história cujo fim é ainda desconhecido, mas que, a julgar pelo caminho percorrido até aqui, vai certamente ser forte.
Intenso, bizarro e absurdamente intrigante, trata-se, pois, de um forte elo de ligação entre um início forte e um fim que promete ser explosivo em múltiplos aspectos. Pelo caminho, mostra novas facetas das personagens e proporciona uma estranha e fascinante viagem a um mundo onde violência e santidade andam de mãos dadas.

Título: Os Filhos de El Topo - Abel
Autores: Alejandro Jodorowsky e José Ladrönn
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Vida e Morte do Comandante Raul Morales (Onofre dos Santos)

A fotografia de uma mulher deslumbrante, cujo contacto desencadeia uma explosão, fazem do comandante Raul Morales uma figura mítica, pois o fascínio por essa mulher, que o levou a pegar na fotografia, fizeram com que ficasse cego e passasse o resto da vida a coleccionar amantes na esperança de encontrar a mulher que nunca viu. Mas não existe história com apenas uma versão e foi o seu amigo a construir-lhe a lenda. Raul Morales tem, pois, múltiplas vidas e também mais do que uma morte. À semelhança de um misterioso Don Juan que, em contacto com um homónimo do amigo de Raul Morales, lhe propõe também um desafio de amor traçado em morte...
Mais do que uma história de amor e de morte - ou duas, porque, embora ligadas por um mesmo nome, a história de Raul Morales e a de Don Juan são essencialmente independentes - esta é, sobretudo, uma história de ambiguidades. Para o comandante, traçam-se múltiplas possibilidades, mais de lenda do que de verdade absoluta, ao ponto de, mesmo quando conta a "verdadeira história", o narrador deixar dúvidas no leitor. E quanto a Don Juan, as dúvidas expandem-se para a própria existência, pois parte do percurso acontece sob o efeito de substâncias e outra sob a influência de uma aparente loucura.
Isto é particularmente notável se tivermos em conta que se trata de um livro de menos de cem páginas, em que tudo parece ser contado de forma bastante concisa e deixando até umas quantas perguntas sem resposta. Há como que um contraste profundo entre o muito que não é dito sobre algumas personagens - como é o caso da relação de Celine com o comandante ou da de Cecília com o misterioso Don Juan - e as múltiplas versões contadas para o mesmo percurso. Quase como se fosse um sonho das personagens - ou talvez do próprio narrador.
E há ainda um outro aspecto curioso. É que a brevidade contrasta com um estilo de escrita onde há espaço para mais do que a linha central do enredo. Há descrições de cenários e episódios de guerra, a introspecção sobre a existência num lar, pensamentos sobre o amor e a morte e a proximidade que parece existir entre ambos. Tudo num ritmo que é conciso quanto baste, mas que tem também o seu potencial de reflexão.
Breve, mas surpreendentemente intrincado, improvável, mas com um toque de universalidade, trata-se, pois, de um livro composto de amor e morte em múltiplas facetas. Ambígua, sempre, mas sempre cativante, uma história - ou duas, talvez - concisa, mas muito interessante.

Autor: Onofre dos Santos
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Palmas para o Unicórnio (Dana Simpson)

Na companhia da sua amiga Pureza das Narinas Celestiais, a Bia prepara-se para partir para um campo de férias de teatro. Espera que haja drama - no bom sentido da palavra - e também muita diversão. O que não sabe é que vai ter de contar com uma presença inesperada. A irmã da Pureza veio visitá-la e, embora pareça simpática, não tarda a que a Bia comece a sentir-se negligenciada pela amiga. Felizmente, nada é tão terrível como parece e a relação entre as irmãs unicórnio só precisa de um pouco de diálogo para ser consertada. E quanto à amizade? Bem, essa nunca desapareceu realmente.
Parte do que torna estes livros tão cativantes - e isto para leitores de todas as idades - é a forma como mistura a ternura da inocência, a magia de... bem, unicórnios e outras criaturas pouco mundanas e um sentido de humor simples, mas delicioso. Lembra-nos tempos mais leves. E, se juntarmos a isto o facto de, apesar de a leveza predominar, questões tão simples e profundas como a importância da amizade e das relações fraternais estarem sempre bem presentes, fica também a impressão de uma mensagem global muito positiva.
Enquanto alguns dos volumes desta série abrangem vários episódios sem grande ligação - excepto, talvez, o fio temporal da relação da Bia com o seu unicórnio - este volume compõe uma única história, o que, além de reforçar a sensação de aventura, permite um maior desenvolvimento das personagens. Há, sobretudo, duas questões dominantes: o facto de a Bia se sentirem um pouco negligenciada pela amiga e os assuntos inacabados entre as duas irmãs. Além, é claro, do objectivo do campo de férias. É que o desafio central para a Bia é escrever uma peça - e é para este objectivo que todas as outras questões vão convergir.
Importa, por último, olhar para o elemento visual para referir dois aspectos: primeiro, a entrada em cena de uma nova personagem, que vem acrescentar novos elementos a um cenário que é já bastante diverso. A Florência e a Pureza podem ser ambas unicórnios, mas são bastante diferentes. E depois as últimas páginas, que, ao sugerir dicas para desenhar algumas das personagens, tornam a experiência um pouco mais interactiva.
Leve, cativante e muito divertido: assim é este novo volume das aventuras da Bia e do seu unicórnio. Uma história muito simples, mas cheia de momentos engraçados e com uma visão bonita e enternecedora da importância da família e da amizade.

Autora: Dana Simpson
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 9 de junho de 2020

O Círculo de Júpiter (Mark Millar, Wilfredo Torres e Davide Gianfelice)

Em tempos, partiram em busca de uma ilha desconhecida e regressaram com super-poderes. Isso fez deles verdadeiros heróis na América dos anos cinquenta e sessenta, dedicados a combater ameaças alienígenas e génios do mal. Mas vivem-se tempos de mudança - de um tipo bem mais terreno de mudança. Há quem queira pôr os seus poderes ao serviço e sob o controlo das autoridades. Além disso, podem ter grandes poderes e grandes responsabilidades, mas isso não significa que tenham deixado de ser humanos. Têm paixões, vícios, conflitos. E isso significa que a sua união não é tão sólida como parece - até porque nem todos os seus membros são moralmente imaculados.
Se algo tinha ficado sem respostas absolutas em O Legado de Júpiter, era o passado da geração anterior, com todos os conflitos que isso viria a despertar. Bem, este livro abrange todo esse passado e, além de dar umas quantas respostas particularmente marcantes, constrói para essa primeira geração uma história que é um equilíbrio perfeito de revelações e ambiguidades. Dos vícios e transgressões das normas sociais à quebra de confiança e à manipulação, cada novo desenvolvimento gera novas perspectivas e sentimentos mais fortes relativamente às várias personagens.
Outro aspecto que fica muito claro é que não é de todo uma mera história de super-heróis, tendo, ainda assim, muito do que as caracteriza. Ao óbvio facto de os protagonistas serem super-heróis, o que implica fatos, um quartel-general, grandes lutas contra génios do mal e a dose certa de acção e de pancadaria, junta-se a abundância de cor (dos referidos fatos e criaturas) e de movimento (das referidas cenas de pancadaria) a nível da arte. Mas há todo um contraponto que vai dos tons sombrios associados aos múltiplos segredos e confidências, e que denuncia os diferentes tipos de transgressão, à presença de momentos históricos que, além de oferecerem um contexto à história, se tornam, nalguns casos, particularmente relevantes tendo em conta os dias que vivemos.
E eis que a ambiguidade moral se torna assim mais ampla. Particularmente evidente na situação de Skyfox, que é todo um tratado sobre manipulação e descontrolo, aplica-se também às outras personagens, e não apenas às do grupo de super-heróis. Quase todos se debatem com algum tipo de segredo ou dúvida, mas a situação de Sheldon levanta outras questões. É que, se até o homem com o coração no sítio certo dá por si a duvidar, então a ambiguidade e a dúvida têm de vir da própria sociedade. E isso traz consigo questões surpreendentemente profundas.
Mais do que uma mera resposta ao percurso da geração seguinte, trata-se, pois, de um livro vasto e complexo por direito próprio. Surpreendentemente profundo em certos temas, marca sobretudo pela capacidade de abordar com todo o impacto estes temas sérios sem nunca perder de vista a sua raiz de história de super-heróis. Cheio de acção, de cor e de intensidade - mas também de emoção e de ambiguidade - fica na memória bem depois de terminada a leitura. Que mais se pode pedir, então?

Autores: Mark Millar, Wilfredo Torres e Davide Gianfelice
Origem: Recebido para crítica

domingo, 7 de junho de 2020

De Zero a Infinito em 26 Séculos (Chris Waring)

A matemática tem muito que se lhe diga. Pesadelo de muitos em tempos de escola, teve também um papel fundamental no progresso e continua a estar presente em coisas tão simples como a contagem de objectos e em coisas tão complexas como os sistemas de programação informáticos. Mas como começou essa ciência? De onde veio? Como se contava antes dos números? E que mentes criaram o quê? Em cerca de duzentas páginas, este livro conta a história de vinte e seis séculos de matemática. E não se assustem... não é assim tão complicada.
Parte do que torna este livro tão cativante - muito à semelhança do que acontece com os outros volumes desta colecção - é a capacidade de apresentar um vasto conjunto de informação de forma sucinta, acessível e completa quanto baste. Não, não abrange todas as complexidades do desenvolvimento matemático - nem é esse o objectivo. Mas, no que respeita às linhas essenciais desse percurso, a verdade é que não deixa nada de fora. Das primeiras civilizações ao que ainda está por resolver, traça uma história bastante abrangente. E fá-lo de forma leve e muito esclarecedora.
Também a organização contribui para este impacto. Ao dividir o livro em diferentes períodos históricos, traça uma linha temporal para o desenvolvimento global, ao mesmo tempo que permite situar os seus principais protagonistas no tempo. Claro que há nomes sobejamente conhecidos, e não só do âmbito da matemática, mas esta visão sequencial organizada permite ficar uma ideia mais clara do percurso global.
E, claro, estamos a falar de matemática, o que significa que símbolos, gráficos e figuras geométricas têm também um papel de destaque. Importa, por isso, realçar o evidente esforço no sentido de tornar todos os elementos fáceis de compreender. São muitos os símbolos e gráficos a marcar presença ao longo da leitura, o que, além de tornar tudo mais claro, cria uma espécie de memória visual que torna mais fácil reter os conceitos.
Tudo somado, o que fica é uma impressão em tudo semelhante à dos volumes anteriores: um livro simples, acessível e sucinto quanto baste, mas suficientemente completo e cativante para, além de deixar uma ideia clara do percurso, despertar a vontade de saber mais. Um belo ponto de partida, em suma, para descobrir a matemática através da sua história.

Título: De Zero a Infinito em 26 Séculos
Autor: Chris Waring
Origem: Recebido para crítica

sábado, 6 de junho de 2020

A Bíblia Explicada pela Pintura (Gérard Denizeau)

É a história mais conhecida do mundo e, ao longo dos séculos, inspirou todo o tipo de artistas. Todos conhecemos imagens como a A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, ou o mais que célebre Juízo Final, de Miguel Ângelo. Outras representações de episódios bíblicos poderão ser um pouco menos conhecidas, mas fazem, ainda assim, parte da história da pintura. O que este livro faz é uma convergência das duas facetas, seleccionando vários episódios bíblicos representados através da pintura e explicando-os, tanto na história que representam como no contexto artístico em que se enquadram.
Poderá ser uma forma algo simplista de começar a falar sobre este livro, mas a primeira coisa que importa dizer é que é efectivamente lindo. A dimensão relativamente grande permite uma visão mais ampla das muitas obras abordadas ao longo do livro, obras essas que implicam também, em si mesmas, uma explosão de cor e de expressividade. Antes mesmo de começar a leitura propriamente dita, já o livro ficou na retina, pois basta um mero folhear para chamar a atenção e despertar a curiosidade.
Outro aspecto que importa destacar é a estrutura. Para cada episódio e para cada quadro, o autor opta por uma mesma abordagem geral. Primeiro, a imagem, acompanhada de uma breve exposição do episódio bíblico que lhe serve de origem. Depois, uma explicação da obra no contexto em que foi criada e uma breve, mas eficaz, análise dos pormenores mais relevantes. E, por vezes, juntam-se ainda alguns pormenores do percurso da obra ao longo da história (envolvendo restauros, desaparecimentos e identidades trocadas) e outras obras dedicadas ao mesmo tema. Para cada obra, as mesmas quatro páginas, numa exposição que é simultaneamente breve, mas também bastante completa. Além, claro, de perfeitamente acessível e esclarecedora para qualquer leitor não familiarizado com o mundo da arte.
O que me leva a um último ponto: a diversidade. Abrangendo pintores de diferentes correntes e períodos históricos, ainda que alguns sejam inevitavelmente dominantes, permite não só uma visão mais ampla da persistência da narrativa bíblica enquanto ponto de partida para a criação artística, mas também a descoberta de algumas visões menos conhecidas do mesmo episódio. Todos conhecemos A Última Ceia de Leonardo Da Vinci. Mas e a de Salvador Dalí?
Tudo somado, trata-se, pois, de um volume incrível para descobrir a Bíblia através da arte - ou a forma como a arte foi buscar inspiração à Bíblia. Claro, acessível e, acima de tudo, belíssimo de se desvendar, um livro fascinante na forma e no conteúdo.

Título: A Bíblia Explicada pela Pintura
Autor: Gérard Denizeau
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 5 de junho de 2020

A Célula Adormecida (Nuno Nepomuceno)

Lisboa. Em plena noite eleitoral, o grande vencedor fecha-se no gabinete para escrever o seu discurso de vitória. Pouco tempo depois, ouve-se um tiro, no que parece ser um aparente suicídio. Entretanto, a explosão de uma bomba num autocarro traz a ameaça terrorista para a agenda mediática. E para a atenção de todos. Defrontado com este cenário, o professor Afonso Catalão vê-se subitamente atacado de todos os lados: primeiro, por uma jornalista que, no que devia ser um comentário inócuo, começa a atribuir-lhe palavras que nunca proferiu; depois, com o emergir gradual do passado. É que o bombista suicida é um dos seus alunos. E, associado ao misterioso passado de Afonso no Médio Oriente, é bem possível que isso o torne suspeito... Movem-se sombras pesadas no coração da sociedade. Já o de Afonso... está pejado de fantasmas.
Quando se lê um livro pela segunda vez, principalmente se for um livro de que gostámos, há sempre como que uma ligeira apreensão. Será que vai ter novamente o mesmo impacto ou a impressão que criámos gerou expectativas demasiado elevadas. Bem, neste caso, a aposta foi segura. Não só correspondeu a todas as expectativas, como a impressão global conseguiu ser ainda melhor do que da primeira vez.
Parte do que torna esta história tão empolgante tem a ver com a forma como o autor consegue construir simultaneamente um enredo cheio de acção, de intrigas e de reviravoltas e um percurso pessoal profundo para as suas personagens. Afonso Catalão é um homem com um passado penoso e cheio de mistérios, tanto que, mesmo quando ainda sabemos muito pouco sobre ele, já é possível sentir a estranha empatia que muitas vezes emana dos atormentados. Entra aqui, aliás, mais uma vez, o impacto da releitura: é que, sendo este o primeiro volume na série, é particularmente fascinante este regresso às origens. Ver quem era Afonso no início, e também Diana, e ver como mudaram ao longo do caminho os sentimentos que estes dois protagonistas despertavam.
Outro aspecto notável é a teia de temas globais que serve de base ao percurso destas personagens. Da crise dos refugiados à reputação no mínimo duvidosa do clube Bildenberg, passando pelos atentados terroristas, pela radicalização da fé, pelo ódio dos grupos de extrema-direita e pela vulnerabilidade de quem perdeu tudo na busca de uma vida melhor, há toda uma vastidão de assuntos relevantes nesta história. E é brilhante a forma como todos estes temas marcam presença de forma lúcida e perspicaz, abordados com toda a complexidade que exigem, sem nunca comprometer o ritmo alucinante da acção principal.
O que me leva, naturalmente, a uma palavra que descreve muito bem esta leitura: viciante. Porque é disso que se trata, seja a primeira ou a segunda vez que estamos a mergulhar nesta história. Lemos dois ou três capítulos e vemo-nos subitamente transportados para o mundo destas personagens. E lá continuamos, fascinados, até chegarmos ao fim. E também o final se destaca pelo equilíbrio, pois dá a todas as personagens um destino adequado, mas que não só não tem nada de previsível, como é tudo menos limpo e perfeito. Além disso, há dois novos elementos nesta edição que vem acrescentar-lhe ainda mais força. O conto de Sarita realça o doloroso contraste entre a sua inocência e aquilo que a vida lhe reservou. E o final alternativo cria um elo de ligação com o volume seguinte da série... além de revelar um lado surpreendentemente humano de um certo senhor de olhos gélidos.
Há quem diga que não devemos regressar aos lugares onde fomos felizes, pois podemos apanhar uma desilusão. Não é o caso deste livro. Igualmente intenso, empolgante e delicioso, é um regresso ao ponto de partida ainda mais brilhante e notável da segunda vez. Que não será, certamente, a última.

Autor: Nuno Nepomuceno
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Os Meus Primeiros Heróis: Artistas (Nila Aye)

A arte pode ser um mundo muito complicado, mas tudo se torna mais fácil se começarmos a conhecê-la desde cedo. É isso que este livro proporciona: uma forma divertida e interactiva de fixar os primeiros elementos sobre a arte, retendo, ao mesmo tempo, o nome de alguns artistas e a imagem de algumas das suas obras mais famosas.
À semelhança do que acontece com o volume dedicado aos cientistas, a primeira impressão que fica deste pequeno livro é uma certa pena de não existirem destas coisas no tempo em que tinha a idade dos leitores a que este livro se destina. Seria muito mais interessante. Ainda assim, nunca é tarde, não é? E a verdade é que, mesmo a um olhar adulto, é difícil não ficar com a impressão de que esta será uma belíssima leitura para partilhar com os mais pequenos. Até porque, entre as surpresas à espreita ao virar de uma pequena roda e a informação muito, muito breve, mas complementada pelas ilustrações cheias de cor, também nós podemos descobrir coisas que não sabíamos.
Outro aspecto que talvez importe salientar é que estas ilustrações tão coloridas e cativantes podem ter outro efeito: atrair os mais pequenos para a arte. Com talento ou falta dele (eu fazia parte dos segundos), todos nós desenhámos quando éramos pequenos. E a ideia da pintura enquanto algo maior pode funcionar não só como ponto de partida para a descoberta dos grandes mestres, mas também como incentivo à criatividade.
A impressão que fica é, acima de tudo, esta: a de um livro simples e didáctico para ensinar a arte aos mais pequenos e também uma bela forma de partilhar com eles a descoberta da criatividade. Afinal, há sempre surpresas à espreita. E que melhor forma de os atrair para a leitura do que misturando conhecimento e diversão?

Autora: Nila Aye
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Um Mundo Aflito (José Jorge Letria e Inácio Ludgero)

Covid-19. Nos últimos meses, dominou a informação e todas as conversas, obrigou-nos ao confinamento, a medidas extraordinárias e até a uma forma diferente de viver as nossas relações pessoais. Nos dias de hoje, dificilmente se poderia escolher protagonista mais famoso para um livro. Porque é de Covid-19 que este livro trata. Não do que é e do que faz cientificamente falando, mas do impacto pessoal que teve na vida quotidiana. E, sendo embora um registo muito pessoal, é muito fácil encontrar pontos de proximidade ao longo desta leitura.
Um dos primeiros aspectos que importa salientar sobre este livro é que não é - nem pretende ser - uma análise objectiva e científica ao vírus que tanto nos tem abalado nos últimos tempos. Escrito em jeito de carta aberta ao vírus, é acima de tudo um relato das percepções pessoais do autor sobre o impacto que ele teve sobre o mundo e as pessoas. Não quer isto dizer que não haja também espaço para factos, como a evocação de algumas vítimas conhecidas e as referências a vários acontecimentos dos diferentes países afectados. Ainda assim, é mais uma visão emocional, do impacto das cidades desertas, do distanciamento de familiares e amigos, das possíveis consequências económicas que se seguirão. É, acima de tudo, a perspectiva do autor, pessoal e intransmissível - ainda que seja fácil reconhecer nela certas impressões e sentimentos comuns.
Ora, se o texto é pessoal, já as fotografias acrescentam-lhe amplitude. Dos rostos às ruas vazias, passando pelas filas nos supermercados e pelas agora omnipresentes máscaras, reflectem na perfeição o tantas vezes referido "novo normal". E há um contraste curioso: o facto de serem a preto e branco lembra-nos que são um momento capturado de um tempo que já passou. Mas o facto de tudo ser tão familiar - e facilmente reconhecível se sairmos à rua - lembra-nos que este passado se prolongou para o presente. Continua aí.
Relativamente breve, mas particularmente eficaz no equilíbrio entre um texto profundamente pessoal e o impacto mais amplo e comum das imagens, trata-se, pois, de um olhar próximo e cativante aos tempos que ainda vivemos. E um bom registo para recordar... quando tudo isto tiver finalmente passado. 

Título: Um Mundo Aflito
Autores: José Jorge Letria e Inácio Ludgero
Origem: Recebido para crítica