sábado, 29 de fevereiro de 2020

Tu És o que Pensas (James Allen)

O pensamento é a raiz da acção - mas é também mais do que isso. Da soma dos pensamentos resulta o carácter. Dos pensamentos elevados resultam os grandes ideais e valores. E, da perspectiva da possível existência de uma justiça universal, é também no pensamento recto que têm origem os bons resultados, sucedendo o contrário a quem alimenta pensamentos impuros. É este o ponto de partida deste livro, como, aliás, resulta evidente do título. Um livro curto, mas com uma visão bastante abrangente do pensamento enquanto força motriz da vida.
Uma das primeiras coisas que importa dizer sobre este livro é que, apesar da brevidade, não é necessariamente uma leitura fácil. A visão do pensamento enquanto elemento fulcral do carácter traz associada uma perspectiva exigente da forma de conduzir a vida, o que significa que este livro pode ser tudo, menos um guia de passos fáceis. Não é. E, embora inicialmente possa ser intimidante com as suas reflexões profundas sobre o pensamento, a pureza absoluta e a necessidade de rectidão em todas as coisas, a verdade é que há muito de pertinente a retirar desta visão.
Outro aspecto que sobressai é o equilíbrio entre complexidade e brevidade: a visão é vasta e complexa, tanto que é quase impossível imaginar que possa caber em menos de cem páginas. E, ainda assim, está tudo lá, e o tudo é muito. Talvez seja o registo em si a dar forma a este equilíbrio, com os seus parágrafos longos e a exposição concisa, mas meticulosa, das coisas. E é verdade que este tom torna a leitura um pouco mais densa. Ainda assim, o que mais sobressai desta conjugação de factores é que há tanto a retirar das ideias essenciais que o livro acaba por ser mais do que a soma das suas palavras.
Claro que o impacto será diferente para cada leitor. Não poderia ser de outra forma num livro sobre a força do pensamento. Mas, se é certo que leva o seu tempo a assimilar, também o é que, com mais ou menos ponderação, deixa sempre uma visão positiva na forma como reflecte o anseio por ideais mais nobres. Há lições a tirar? Sem dúvida. Quais, cabe ao leitor decidir.
Breve mas vasto, complexo e muito relevante, trata-se, pois, de um livro cuja soma é bem maior do que as das suas cerca de oitenta páginas. É certo que tem o seu nível de exigência... mas é também isso que o torna tão interessante.

Autor: James Allen
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O Pequeno Livro da Vida (Rumi)

Alma, coração e espírito enquanto jardins povoados pelo Amado. Jardins onde o fogo é uma rosa, onde amor é dor, dor é amor, e o Amado é a divindade. São estes os estranhos meandros que, ao longo deste (não tão) pequeno livro da vida, se vão desenhando, numa sucessão de pensamento e poesia que, enganadoramente simples, contém profundidades insuspeitas. E, sim, pode ser pequeno no tamanho... mas são vastas as dimensões que contém no seu interior.
Um dos termos que geralmente se usam para descrever uma grande obra é a palavra intemporal, no sentido em que as suas qualidades são capazes de perdurar através dos séculos. Bem, este livro tem muito de intemporal, não só pelo simples facto de ter efectivamente perdurado ao longo dos séculos, mas também por manter toda a actualidade e relevância. É um livro espiritual, no sentido em que se volta sobretudo para o interior e para o divino, mas é também um livro feito de imagens. É possível, ao ler cada um dos seus textos, captar uma imagem visual de um cenário, que, não sendo propriamente deste mundo, se torna, ainda assim, algo de tangível. No fundo, é esta a magia deste livro: a forma como traça cenários precisos ao mesmo tempo que projecta conceitos mais abstractos.
Sendo cada escrito um todo em si mesmo, é também interessante notar como o conjunto forma um todo mais vasto. A divisão em três "jardins" agrupa os diferentes textos de acordo com os seus pontos de convergência, mas todos pertencem a uma mesma unidade. Além disso, esta visão das três partes da vida é suficientemente ambígua - e, sobretudo, suficientemente vasta - para permitir diferentes pontos de identificação. A fé é uma forte presença, mas não uma fé de normas estritas e específicas e sim uma crença espiritual. É, além disso, uma fé complementada por valores universais, o que significa que nenhum tipo de crença será obstáculo a captar a forte mensagem - de altruísmo, de dedicação, de amor - contida neste livro.
E importa ainda olhar para a forma e para a aparente simplicidade que habita todos estes textos. Muito breves, mas de uma fluidez fascinante, resumem em poucas linhas a essência do que têm para dizer, projectado sobre imagens surpreendentes e vastas, fáceis de assimilar e, ao mesmo tempo, belíssimas.
Fica, em suma, a mais marcante das imagens: a de um pequeno livro que, é no fundo, vastíssimo, belo na simplicidade das palavras e na abrangência das suas mensagens. Intemporal? Sem dúvida alguma. E memorável também.

Autor: Rumi
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Rapazinho (Lawrence Ferlinghetti)

Parte autobiografia, parte traçado do pensamento de várias gerações, parte fluxo de pensamentos mais ou menos imaginados ao ritmo da consciência, esta é a história de um rapazinho que se fez homem. Que passou por um orfanato, por uma vida de luxo, pela guerra, pelos meandros do erro e da descoberta, pelo contacto com os célebres e com os comuns. E é, como todas as vidas, uma história com princípio e fim - ainda que, em certos aspectos, pareça não os ter.
Não é propriamente uma novidade que há livros que são difíceis de descrever - o que não significa necessariamente que sejam difíceis de ler. Este é um desses casos: são tantas as peculiaridades, no estilo, no ritmo e sobretudo na forma como memórias, cenários, teorias e referências se cruzam, que é, ao mesmo tempo, uma experiência ligeiramente inebriante entrar no encadeamento destas palavras, e também uma impressão difícil de replicar. É um livro que fica na memória, mas não é propriamente fácil apontar os motivos concretos. E talvez seja também esta unicidade - de indescritível, mas estranhamente palpável - um desses mesmos motivos que o tornam memorável.
Não é uma leitura compulsiva, ainda que também não seja propriamente pesada. Mais uma vez, é o ritmo que o torna peculiar, o encadeamento das frases, em que tudo parece ao mesmo tempo natural e tão peculiar que exige atenção constante. Para isso contribuem também as inúmeras referências literárias, cinematográficas, mitológicas, filosóficas e por aí adiante, algumas mais conhecidas, outras mais obscuras, mas todas interessantes. Importa, aliás, fazer referência às notas da tradutora, ferramenta muito útil para entender algumas destas referências mais obscuras.
Claro que, tendo esta forma tão peculiar, e este tão invulgar encadeamento de ideias, não se pode esperar linearidade. E não a há, de facto. A história física e cronologicamente concreta do Rapazinho passa para segundo plano ante as ideias, teorias e fragmentos de memórias que povoam este incessante fluxo de consciência. E, claro, isto gera, por vezes, sentimentos contraditórios, no sentido em que fica uma certa curiosidade insatisfeita quando ao percurso concreto. É, ainda assim, tão estranha - e tão estranhamente fluida - a cadência particular desta leitura, que também essas impressões ambíguas - tal como a vida do próprio Rapazinho - acabam por passar para segundo plano, deixando o merecido destaque ao encadeamento de tão surpreendentes e eficazes frases.
Difícil de descrever nas suas muitas peculiaridades, mas fascinante precisamente pela sua unicidade, trata-se, pois, de um livro que exigirá o seu tempo para ser devidamente assimilado. Mas é esse mesmo tempo, e essa mesma mistura de fluidez e estranheza, que o tornam tão diferente e tão memorável. E é também dessa matéria que são feitas as boas leituras.

Título: Rapazinho
Autor: Lawrence Ferlinghetti
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

António Tá Certo - O Prosador e o Poeta (António Tavares-Teles)

António e João são dois homens que, sem nunca se terem conhecidos, partilham dois grandes pontos comuns: a voz poética e uma grande solidão. Um retirou-se para um lugar remoto para viver os seus últimos dias em pouca, mas boa companhia. O outro, decidido a vingar a morte da neta, foge temporariamente para o estrangeiro, levando consigo apenas a promessa de voltar para cumprir a sua vingança. E, entre viagens pelo mundo e viagens pela mente, encontram, cada um à sua maneira, a paz dos últimos dias - esperados ou desconhecidos, mas inevitáveis, ainda assim.
Breve na dimensão e muito conciso no estilo de escrita, este é um livro que, deixando pelo caminho muitas perguntas sem resposta, vive, em grande medida, do impacto emocional que gera. A história de João é do tipo que desperta particular empatia, o que faz com que, por um lado, fique uma vontade insatisfeita de a conhecer mais a fundo, mas, por outra, a impressão de que as linhas - e as emoções - essenciais estão lá. Já no caso de António, o ambiente enigmático em que se move faz com que a ambiguidade faça especial sentido, ainda que também aqui fiquem certas questões em aberto.
É, de certa forma, inevitável a sensação de que as cerca de cem páginas deste livro poderiam facilmente ter sido muitas mais. E, ainda assim, há um estranho equilíbrio na brevidade. A história cinge-se ao essencial, deixando aos poemas o papel de reflectir o coração das personagens. E se mais haveria a contar sobre os percursos, particularmente no que diz respeito aos muitos intervenientes na fuga de João, também é verdade que esta história não é a deles. E quanto a João, com a ânsia de vingança que carrega por dentro, o que fica é sobretudo a sensação de um caminho circular, porque predestinado por um necessário regresso, mas ainda assim muito cativante.
É tendo tudo isto em vista - brevidade e simplicidade associadas a um equilíbrio eficaz - que importa, talvez, desviar um pouco o olhar para a forma. O livro oscila entre a poesia e a prosa, prosa que conta a história das personagens, poesia que dá voz aos seus pensamentos. E esta forma invulgar de construir um romance consegue, além de lhe conferir especial peculiaridade, realçar o melhor desta história breve. O percurso dos protagonistas pode ser simples, mas os sentimentos são profundos e reflectem-se com precisão numa poesia que é também simples, mas que encaixa perfeitamente no carácter das personagens.
Um livro não precisa de ser longo para ser memorável. Neste caso, bastam cem páginas de grande simplicidade e poesia para fazer da história de António e de João uma caminhada digna de se acompanhar. Breve, sim, simples, e ambíguo em certos aspectos - mas com a medida certa para deixar a sua marca emocional.

Autor: António Tavares-Teles
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Estou Feliz (Aurélie Chien Chow Chine)

O Gastão é um unicórnio especial, com uma crina mágica que reflecte as suas emoções. E tem também uma forma especial de lidar com elas, através de exercícios de respiração. Mas, se o Gastão está feliz, então de que forma precisa de lidar com esta emoção? Estar feliz é bom, não é? Então, nada melhor do que levar um pouco dessa felicidade aos outros.
Parte do que torna esta colecção de livros tão interessante é a facilidade com que permite explicar aos mais novos o que se passa emocionalmente dentro de nós, dando exemplos e sugerindo formas de lidar com estas emoções. Ora, este livro vem acrescentar algo diferente à já habitual leveza enternecedora do Gastão. É que, sendo dedicado a uma emoção boa, abre também as portas a uma percepção das emoções dos outros. O Gastão está feliz, mas há perto dele quem não esteja, e por isso cabe-lhe contribuir também para a felicidade dos outros. Esta é uma importante mensagem de empatia que importa aprender desde cedo - e que não é importante apenas para os mais pequenos.
Outro aspecto interessante é que, embora sigam sempre a mesma fórmula, cada livro acrescenta algo de novo,não só pela simples presença de um novo tipo de emoção, mas também pela aparição de novos elementos da família ou do grupo de amigos do Gastão. Claro que, a um olhar adulto, não é difícil prever o rumo geral da história... mas lembram-se de quando bastava a mais simples das aventuras para nos fazer sonhar? Bem, estes livros trazem essa memória ao pensamento, não só por serem tão ternos, mas sobretudo pelo simples toque de magia. Afinal, é um unicórnio! Com uma crina mágica!
E assim, a impressão que fica é basicamente a habitual nestes livros - e bem boa que ela é: a de uma história simples e descontraída, perfeita para abrir aos mais pequenos o estranho e natural mundo das emoções e também para fazer sonhar um bocadinho com as pequenas e ternurentas aventuras do Gastão.

Título: Estou Feliz
Autora: Aurélie Chien Chow Chine
Origem: Recebido para crítica

sábado, 22 de fevereiro de 2020

A Construção do Mundo (Marc Augé)

O mundo é algo em constante mutação e, tal como tudo o resto, também as crenças e ideologias evoluem. Ao debruçar-se sobre as crenças, cosmogonias e movimentos religiosos dos povos africanos, este livro traça, no seu conjunto de artigos, um retrato de uma diferença com bases comuns, em que o factor colonial tem sempre um peso considerável, seja pelas influências ocidentais e pela simples interpretação que fazem daquilo que vêm. E esta visão complexa, apesar da brevidade, deixa uma imagem bastante clara: a de que tudo é mais vasto do que aparenta e há sempre um significado mais profundo a contemplar.
Embora seja um livro relativamente conciso, com as suas cerca de cento e cinquenta páginas, o seu registo académico parte da premissa de algum conhecimento prévio sobre os temas. Quer isto dizer que, apesar da brevidade, não será leitura fácil para quem poucas ideias tiver sobre estes assuntos. Ainda assim, embora ao olhar desconhecedor possa parecer um pouco confuso - e exija algumas pesquisas complementares, - a verdade é que está repleto de informação interessante, não só sobre as crenças e cosmogonias dos diferentes povos africanos, mas também sobre a evolução religiosa e dos modos de vida.
Outro aspecto interessante é que, ao conjugar artigos de vários autores, surgem várias ramificações de um ponto de partida comum. Alguns dos textos são mais complexos e específicos, outros debruçam-se mais sobre uma perspectiva geral. E, embora cada um aborde facetas distintas, formam um todo consistente, na medida em que todos eles abordam de uma forma ou de outra o impacto e a força da crença e da tradição nas culturas e normas de povos e instituições.
Não é uma leitura leve, e exigirá concentração e estudo para ser devidamente assimilado. Ainda assim, são muitos os elementos interessantes. Para os que já conhecem estes assuntos, acrescentará decerto outras perspectivas. Para os recém-chegados ao tema, desperta curiosidade e interesse. Exigirá o seu tempo, sim - mas tem, sem dúvida, muito de interessante para revelar.

Autor: Marc Augé
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Descender, Vol. 4: Mecânica Orbital (Jeff Lemire e Dustin Nguyen)

Não há lugares seguros para TIM-21. Não quando todos o procuram, com diferentes intenções. Mas a situação está prestes a tornar-se ainda mais delicada. Do confronto com TIM-22, o outro robô da mesma série, resultou que Telsa e Quon conseguiram fugir, mas levando um infiltrado. O verdadeiro TIM ficou para trás. Entretanto, também Andy anda em busca de TIM, sem saber que tem os seus próprios fantasmas do passado para enfrentar. Rumos colidem. Verdades vêm à tona. E tudo muda em menos de nada, deixando a sensação de que o fim está mais próximo do que aparenta - e não será limpo nem inocente.
É sempre algo de fascinante a forma como cada novo volume desta série consegue apresentar toda uma sucessão de novos desenvolvimentos - e surpresas, sobretudo - sem nunca perder a aura que a torna tão peculiar. É como que uma mistura de acção e de intriga com uma estranha e triste ternura, evocada em grande parte pelas circunstâncias de TIM, mas também pela imagem de um universo que tombou da sua própria grandeza. É estranho - mas estranhamente fascinante - como tudo é tão diferente, conseguindo ainda assim parecer sempre tão familiar. E é também fascinante a forma como os robôs se humanizam... bem, alguns, pelo menos... e os humanos adoptam a frieza das máquinas.
Claro que não se cingem a este estranho equilíbrio de sentimentos as peculiaridades desta série. A própria arte é invulgar, ainda que nem sempre seja fácil explicar o porquê das impressões que evoca. Talvez o contraste das cores fortes com o movimento. Talvez a expressividade nos rostos das personagens, com o inevitável destaque para a humanidade no rosto de TIM. Talvez a forma como as diferentes linhas do enredo se encadeiam umas nas outras, sobressaindo particularmente o entrelaçado das três partes na fase inicial deste volume. E, claro, basta olhar para esta capa: não parece um coração? Há aqui uma grande metáfora, mesmo ao alcance da mão.
Mas importa, ainda, voltar à emoção, porque há um poderoso efeito secundário nisto de se sentir tanta empatia por estas personagens. É que já são expectáveis as perguntas que ficam em aberto, mas este volume dá todo um outro sentido à expressão "deixar em suspenso". Ao longo do caminho, foram muitas as revelações e as surpresas e tudo culmina num ponto em que qualquer futuro passa a ser possível para estas personagens (exceto, talvez, um limpo e cor-de-rosa). E, assim sendo, só o resultado é previsível: uma vontade praticamente irresistível de descobrir o que acontece a seguir.
É algo de belo e de poderoso, esta história em que máquinas e humanos são capazes de partilhar da mesma crueldade e dos mesmos afectos. E, com as suas tão peculiares características, dos cenários aos enredos, sem nunca esquecer as emoções fortes que evoca, é também uma história que nunca deixa de fascinar - do início ao fim, e para além dele.

Autores: Jeff Lemire e Dustin Nguyen
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Universo Humano (Brian Cox e Andrew Cohen)

Quem somos? Qual a origem do universo? E porque estamos aqui? Que indescritível sucessão de coincidências fez com que a vida brotasse na Terra? E durante quanto tempo persistirá? Eis algumas das grandes perguntas que servem de premissa a este Universo Humano, que, numa abordagem concisa e abrangente, pretende, sem dramatismos nem rasgos de emoção, traçar, através das leis da física, uma carta de amor à humanidade. E é exactamente isso que faz, num registo que, embora possa ser algo desconcertante para quem não tiver grandes conhecimentos prévios da matéria, é, no geral, bastante acessível.
Parte do que torna este livro tão cativante de ler - mesmo para quem não tenha, como é o meu caso, um grande domínio prévio dos temas que aborda - é a forma como está estruturado. Os capítulos curtos, associados às várias reminiscências das experiências de gravação da série e a episódios mais conhecidos como a viagem do homem à Lua, vêm acrescentar leveza a uma leitura onde conceitos complexos da física e da matemática têm um papel dominante. Além disso, embora de forma necessariamente breve, há um evidente cuidado em explicar as linhas essenciais destes conceitos, o que significa que, além de uma carta de amor à humanidade, este livro é também uma ampla fonte de conhecimentos sobre temas tão vastos como a evolução humana, as origens do universo e as possibilidades de vida extraterrestre.
Outro aspecto a realçar é que, embora num tema tão vasto e complexo fiquem sempre perguntas sem resposta e conhecimentos a aprofundar, a imagem que fica uma vez terminada a leitura é a de que todas as bases essenciais estão presentes. Chega-se ao fim com muitas respostas que não se tinham no início e uma visão bastante mais abrangente das origens e complexidades do universo - complexidades essas que são também um pouco simplificadas pela abundância de diagramas que surgem ao longo do texto. Além disso, e embora as equações matemáticas desempenhem um papel crucial em várias das teorias e descobertas abordadas neste livro, sendo por isso útil ter algum conhecimento, é fácil, dada a clareza com que as coisas são explicadas, compreender as bases, apesar da abundância de números, factores e constantes.
Mas voltando à questão da carta de amor... É um livro sobre ciência e, em todos os aspectos que lhe dizem respeito, cinge-se estritamente aos factos científicos. Mas é também a tal assumida carta de amor à humanidade e a forma como é escrita retrata também na perfeição esse deslumbramento pela maravilha que é, aos olhos dos autores, a humanidade. Seja pelos discretos mas certeiros rasgos emocionais, seja pelas muitas citações que vêm complementar o texto científico, há como que uma proximidade com os temas que contribui também para tornar a leitura mais envolvente. É que as coisas podem ser complexas - e são - mas a sensação de espanto ante o resultado é algo de fascinante.
Vasto nos temas, acessível na abordagem e muito interessante na soma das partes - assim é, em suma, este Universo Humano. Um livro que exige o seu tempo, mas com muito de fascinante para ensinar.

Título: Universo Humano
Autores: Brian Cox e Andrew Cohen
Origem: Recebido para crítica

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Narval: O Unicórnio dos Mares! (Ben Clanton)

Um narval chamado Narval e uma alforreca chamada Alforreca, com um gosto comum por waffles e o mesmo espírito de aventura: tem tudo para correr bem, certo? Precisamente. E as aventuras podem ser simples, mas a amizade, essa, é grande. Além do mais, o Narval é... um narval, o que significa que é um animal peculiar. Por isso, há também algo a aprender desta amizade entre o Narval e a Alforreca. E aprender é sempre mais fácil - e interessante - quando é também divertido.
Muito breve, muito simples - e, no entanto, estranhamente cativante. Poder-se-ia resumir assim este pequeno conjunto de aventuras. Sim, porque o livro abrange três histórias diferentes, com os mesmos protagonistas, naturalmente, mas envolvendo percursos distintos. E, claro, são todas muito sucintas e simples, o que as torna perfeitas para leitores mais novos, e também muito divertidas, o que expande o seu apelo a leitores de todas as idades. Além de didácticas, claro, porque, entre waffles, festas e imaginação, há ainda espaço para descobrir alguns factos interessantes sobre a espécie destes curiosos protagonistas.
É também interessante reparar que, embora a palavra simplicidade se aplique realmente a todos os aspectos do livro - incluindo a arte - é também essa simplicidade que torna o conjunto tão eficaz. Sem grande margem para pormenores elaborados - ainda que com alguns laivos surpreendentemente reais, como a waffle e o morango, - o desenho complementa na perfeição a natural concisão de tudo o resto. Os diálogos são breves, as aventuras são quase inocentes - e a parte visual espelha na perfeição esta simplicidade.
Breve, lê-se num instante. Divertido, proporciona bons momentos de leitura. E, com o seu interessante equilíbrio entre os elementos didácticos e o simples espírito de aventura e imaginação, torna o impossível natural e faz da simplicidade a medida certa. Capaz de cativar leitores de todas as idades, o Narval é, sem dúvida, uma personagem que vale a pena conhecer.

Autor: Ben Clanton
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Crime no Expresso do Oriente (Benjamin Von Eckartsberg e Chaiko)

Célebre pelo seu luxo e conforto, o Expresso do Oriente vai invulgarmente cheio para aquela altura do ano, mas, ainda assim, ter amigos em posições de destaque ajuda e o famoso detective Poirot consegue um lugar para a viagem. Longe está ele de imaginar que conseguirá também um caso. Na mesma noite em que o comboio fica preso num banco de neve, um passageiro particularmente irascível é encontrado morto. E, dado que não falta ninguém nem havia propriamente uma abundância de vias de fuga, há uma coisa que é certa: o assassino continua no comboio. É, pois, hora de Poirot por as suas celulazinhas cinzentas a trabalhar... no que pode muito bem ser o mais desconcertante dos seus casos.
A primeira reflexão a emergir desta leitura é, sobretudo, de curiosidade: curiosidade com a forma como, através de um formato diferente, a mesma história pode ganhar outra vida. Não se trata propriamente do meu romance favorito de Agatha Christie, em grande parte devido à resolução final, mas é interessante notar que, ao dar às coisas uma versão visual, esse final ganha todo um outro impacto, o mesmo se aplicando à envolvência e à sucessão de pistas. Além disso, tendo em conta essa mesma resolução, os rostos das personagens - e particularmente a sua expressividade - ganham especial importância.
Outro aspecto a sobressair desta adaptação é que, sendo relativamente breve, e deixando parte dos elementos de contexto e caracterização (principalmente dos cenários) à parte visual, os momentos mais reveladores acabam também por ter outro impacto. Junte-se a isto o contraste entre o ambiente luxuoso e os tons sombrios que envolvem a revelação final e é como se a história se tornasse mais ominosa, mais intrigante. Mais memorável, enfim.
E, claro, importa referir que, apesar desta impressão divergente, o rumo do enredo é essencialmente fiel ao original, o que talvez possa esbater parte do factor surpresa para quem já sabe como a história termina, mas não lhe retira nenhuma da envolvência e da muito agradável aura de mistério. Além disso, é sempre agradável reencontrar Poirot e - neste caso específico - vislumbrar um laivo de humanidade por entre as sombras da sua frieza racional.
Fiel ao romance que lhe serve de base, mas capaz de lhe acrescentar profundidade e impacto através do desenvolvimento dos cenários e, sobretudo, da expressividade das personagens, trata-se, pois, de uma interessante e cativante adaptação.Para os fãs do original e também para os recém-chegados a esta história.

Autores: Benjamin Von Eckartsberg e Chaiko  
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Intocável (Tahereh Mafi)

O mundo está em ruínas e a única forma de sobreviver parece ter sido entregar todo o poder nas mãos de uns poucos que assumiram o controlo de tudo e ditam todas as regras - do que cada um pode comer aos sítios onde têm de viver. Mas claro que Juliette não sabe grande coisa sobre isto, pois passou os últimos meses fechada num asilo para proteger os outros do seu toque, que, inexplicavelmente, é capaz de matar. Mas o seu isolamento parece ter chegado ao fim, com a chegada de um rapaz à sua cela. Juliette lembra-se de Adam dos tempos em que tinha uma vida, ainda que ele pareça não a reconhecer. Mas o ténue conforto da sua presença traz consigo um grande perigoso: aproximar-se dela pode ser letal para Adam. Abrir o seu coração ao seu novo companheiro pode acabar de destruir o coração de Juliette. E o mundo da sua cela está prestes a expandir-se de formas inesperadas.
O primeiro aspecto a chamar a atenção neste livro terá inevitavelmente de ser a escrita. Narrado pela voz da protagonista, reflecte também o seu hábito de rasurar partes do que escreve no seu bloco de notas, além de adoptar um registo que parece fluir ao ritmo dos seus pensamentos. Assim, sobressai sobretudo a forma como a história se divide entre um ritmo de acção frenética e uma imersão total nos pensamentos de Juliette, que reflecte tanto os seus momentos de introspecção como a confusão que a invade perante as grandes revelações. Sobressai a diferença, em suma, na forma como a história é contada - diferença que reflecte a diferença da própria protagonista.
Destaca-se também que, não sendo um livro particularmente pequeno, são tantas as coisas a acontecer e as revelações a virem à superfície que facilmente poderia ter sido ainda mais extenso. Claro que parte da razão para as muitas perguntas sem resposta que ficam no fim deste primeiro volume tem a ver com o facto de a história ser contada da perspectiva de Juliette - e o que a protagonista não sabe, também o leitor não pode saber. E, se é verdade que alguns momentos parecem progredir de forma ligeiramente apressada (nomeadamente no que toca à relação entre Juliette e Adam), também o é que as circunstâncias não são propriamente normais, o que talvez justifique uma evolução mais rápida.
É também certo que a história vive muito dos momentos de acção e das grandes surpresas, entrelaçadas com uma grande dose de emoção. Mas importa ainda realçar que, ao longo desta história muito pessoal dos protagonistas, há também espaço para alguma reflexão: sobre o mundo, e as consequências de descurar os sinais de calamidade; sobre o que acontece quando o poder se torna autoritário; e sobre o sempre actual medo da diferença e a forma como se lida com ela. São elementos que surgem naturalmente e de forma discreta ao longo do enredo - mas não deixam de estar presentes e de lhe conferir maior profundidade.
Tudo somado, o que fica é a imagem de uma leitura empolgante, cheia de acção e de grandes relevações, mas também com um fundo emocional particularmente marcante. Um início promissor para uma história que, com tantas perguntas ainda por responder, só pode prometer ainda mais surpresas e mais emoções para o que se seguirá.

Título: Intocável
Autora: Tahereh Mafi
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Os Outros (C. J. Tudor)

Gabe sabia que o seu casamento estava a passar por dificuldades, mas não esperava ver a sua vida desabar em tão pouco tempo. Preso no trânsito a caminho de casa, vê a filha no banco de trás de um carro desconhecido. Pouco depois, surge a notícia de que perdeu tudo. A mulher está morta e todos dizem que a filha também. Mas ele não acredita. Ele viu-a naquele carro. E podem ter passados três anos, mas continua a procurar. E é depois de todo esse tempo que a primeira pista surge finalmente. Com a ajuda de um aliado invulgar, Gabe encontra o carro - com um cadáver lá dentro. E encontra também a primeira pista para algo de enigmático e tenebroso... na forma de duas palavras: Os Outros.
Ao terceiro livro de uma autora tão consistentemente brilhante - e diga-se logo à partida que a qualidade não pára de melhorar - há certas coisas que são, à partida expectáveis. O ritmo viciante, o aura de mistério, o elemento inexplicável que parece, porém, encaixar na perfeição em tudo o resto e, sobretudo, o delicado e poderosíssimo equilíbrio entre as trevas do mistério e as trevas da desolação interior das personagens. Este livro não é excepção, sendo que o que mais se destaca é a forma como - mais uma vez - a autora consegue elevar tudo isto a um nível ainda mais alto. O impacto emocional é ainda mais intenso. A sucessão de surpresas é ainda mais imprevisível. E há um sentido tão grande na forma como as múltiplas peças do puzzle se encaixam que são inúmeras as palavras para descrever a impressão que fica - sendo, ainda assim, possível resumi-las num grande e estrondoso UAU.
Há, ainda assim, aspectos que são muito próprios desta história específica. Basta, aliás, o conceito dos Outros, uma organização de pedidos e favores que é tudo menos caritativa. E o mais impressionante nesta premissa é que, além de lidar com mestria com as complexidades da perda de um ente querido e de todos os sentimentos contraditórios que essa perda pode despertar, principalmente quando envolve violência, traça também para as suas personagens uma ambiguidade moral que as humaniza. É que Gabe pode ser a vítima, mas tem um passado a expiar. Já o Samaritano é o exemplo perfeito da expressão que diz que olho por olho, dente por dente é uma forma de o mundo acabar cego. E há mais. Cada personagem desperta sentimentos diferentes, que se vão alterando com o desfiar das revelações, criando uma proximidade profunda que faz com que o impacto do final seja ainda mais poderoso.
E, claro, há a escrita. C. J. Tudor tem uma voz notável, tão capaz de empolgar pelo ritmo directo dos momentos de perigo ou dos diálogos mais tensos como de nos conduzir ao âmago mais desolado das suas personagens. E, pelo caminho, são tantas as frases memoráveis, tantos os rasgos de génio a dar à história a voz de que mais precisa, que é quase irresistível a vontade de continuar a ler... e o desejo de que a história nunca acabe.
Só uma coisa é expectável neste livro: que será brilhante. E é-o, de facto, em todos os aspectos. Intenso, profundo, com um intrigante mistério a contrastar com as histórias de perda e de morte que são também a sua força motriz, cativa da primeira à última página e entranha-se bem fundo na memória e no coração. Maravilhoso.

Título: Os Outros
Autora: C. J. Tudor
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Já não me deito em pose de morrer (Cláudia R. Sampaio)

As sombras e os enigmas de uma mulher da cor de um lírio, de um coração que parece não saber muito bem onde pertence, mas sabe que sente, de mulheres individuais que podiam ser todas as mulheres e de uma sombra raiada de luz que é tanto de morte como de libertação. As sombras de uma poesia que, sendo tão peculiar como indescritível, deixa poucas alternativas para a descrever além de uma linguagem também ambígua e poética, pois é mais de imagens e de impressões do que de regras concretas e cenários claros que vive este livro de poesia. E é precisamente isso que o torna notável.
Se todo o livro é diferente consoante o ponto de vista de quem o lê, mais ainda isto se aplicará à poesia. E muito especificamente a esta poesia. Não há normas, não há regras estritas, não há uma estrutura imposta a determinar rimas ou métricas. O que há é uma cadência fluida e natural que se ajusta, na sua máxima liberdade, a um conteúdo que não segue também normas nenhumas, deixando fluir imagens muito concretas, rasgos de locais específicos, por entre uma teia de abstracções algo sombrias e algo melancólicas de onde é possível retirar todo o tipo de sensações. Alguns dos poemas parecem falar directamente ao coração, sem ser, contudo, possível apontar qual é o elemento que neles os torna tão próximos. É poesia feita de sentimento - sem por isso perder nenhuma da complexidade evocada pelas suas imagens mais obscuras.
É também um livro com um curioso efeito sinestésico, ainda que relativamente discreto. É que, partindo da tal mulher da cor de um lírio, nasce no pensamento como que uma impressão de cor, ainda que não seja propriamente um elemento recorrente nos poemas. Talvez sejam os laivos de sombra dos poemas mais soturnos, ou então a própria primeira impressão que se prolonga para o resto, mas a cor do lírio permanece na memória ao longo de toda a leitura, mesmo quando as mulheres dos poemas são já outras e diferentes.
E há ainda um último contraste, o que resulta do equilíbrio entre as abstracções complexas que vão sendo tecidas a partir das imagens peculiares (começando, uma vez mais, pela mulher da cor de um lírio) e a simplicidade de outros versos e imagens que, na sua brevidade, parecem tornar normais até os elementos mais absurdos. O resultado é uma voz muito única, muito própria, mas capaz de criar, a espaços, laços de identificação estranhamente profundos.
É, de certo modo, uma poesia de sombras - mas sombras com cor. E é essa dança de sombras, tão peculiares e tão próximas, que faz com que, mesmo nos rasgos mais estranhos deste conjunto de poemas, haja sempre algo de efémero e de frágil que fala, ainda e sempre, ao coração. Cor de lírio, como a mulher. Cor de coração, como a capa. E memorável, sempre.

Autora: Cláudia R. Sampaio
Origem: Recebido para crítica

sábado, 8 de fevereiro de 2020

A Menina que Queria Desenhar o Mundo (Adélia Carvalho e Sérgio Condeço)

Era uma vez uma menina que queria desenhar o mundo. Mas como, se o mundo é tão grande? Bem, começando pelo princípio: com um traço. E é a partir de um traço que cresce, que se expande e que viaja que o mundo se torna desenho. Porque afinal é mesmo verdade que o mundo é grande e só soltando o traço - a imaginação - é possível englobar o mundo inteiro. Basta voar... querer... e não desistir.
É curioso notar que a grande impressão que fica deste pequeno livro é exactamente à semelhança da história que ele contém: a de um mundo grande contido num pequeno espaço. O traço que viaja por muitos lugares para desenhar o mundo é um pouco como este livro, que, nas suas poucas páginas, contém mundos inteiros e grandes mensagens, transmitidas de uma forma tão simples quanto encantadora. E é mesmo possível desenhar o mundo: um mundo onde as diferenças fazem parte da realidade e não são motivo de medo; onde os sonhos se constroem em conjunto; onde a vida ganha encanto precisamente pela sua diversidade; e onde sonhar - e voar - é sempre, sempre possível.
Ora, tendo tudo isto em conta, não será propriamente uma surpresa este outro contraste peculiar: é que é um livro infantil, sim, mas capaz de arrancar sorrisos e até de fazer pensar os leitores mais adultos. Há tanto para explorar nesta pequena história que, mesmo que a infância já tenha ficado lá longe, continua a haver muito em que pensar nesta pequena leitura. E claro, esta universalidade tem ainda o condão de o tornar um excelente livro para ler e discutir com os mais novos - até porque lições para meditar são coisa que não lhe falta.
Sendo certo que o mais importante é sempre o conteúdo, importa ainda lançar um breve olhar à forma, nomeadamente ao equilíbrio entre um texto muito breve, mas com uma fluidez notável e até um certo toque de poesia, e as ilustrações também aparentemente simples, mas que enfatizam na perfeição os melhores aspectos desta pequena história. Além de uma história bonita, é um livro bonito de se folhear - e também isso faz parte do que o torna memorável.
O que fica é, então, tão simples e tão vasto como o traço com que a menina deste livro desenhou o mundo: uma história breve, mas belíssima, com ternura e encanto nas medidas certas e tanto, mas tanto de importante em que pensar... Bonito, cativante e muito bem construído, um livro infantil para... crianças dos oito aos oitenta.

Autores: Adélia Carvalho e Sérgio Condeço
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Os Meus Heróis Foram Sempre Drogados (Ed Brubaker e Sean Phillips)

Ellie sempre teve uma visão romantizada da droga e isso não mudou agora que está fechada numa clínica de reabilitação. Mas é onde menos espera que vai encontrar sentimentos como nunca antes sentiu. Não é a primeira vez que Skip está numa clínica daquelas, na esperança de que será desta vez que a sua vida vai entrar nos eixos. Mas, além de ser uma má influência, Ellie traz consigo um grande segredo. E o que parece ser um amor que começa a nascer - ainda que do tipo louco, capaz de desencadear fugas e deixar o mundo do lado de fora - esconde afinal um lado mais cruel.
Talvez fosse de esperar, tendo em conta a informação prévia de que é uma história enquadrada no universo Criminal - ou, bem, o nome dos autores - mas a verdade é que nada nos prepara para a sucessão de emoções que o rumo desta história desperta. É esse, aliás - mais do que os diálogos certeiros, mas do que um monólogo interior tão poético como implacável, mas do que os tons claros que apelam à nostalgia ao mesmo tempo que lançam as bases de uma desolação impiedosa - o factor que faz com que esta história tão breve se crave tão profundamente na memória. Sugere uma história de amor, de amor jovem, irresponsável, "sob a influência" talvez. Mas o que acaba por ser no fim de tudo é todo um rasgar de inocência que, além de ser uma surpresa praticamente absoluta, põe tudo em questão: amor, lealdade, confiança, justiça. Mas o mundo não é justo, pois não? Pelo menos o destas personagens.
É efectivamente uma história muito breve. Tudo acontece bastante depressa, ao ponto de quase não dar para pensar - ou preparar - o impacto das coisas. Mas o mais interessante é que também esta brevidade faz sentido. Para o contexto maior, há o universo de uma série mais vasta (e é verdade que a revelação final ganha outra familiaridade tendo já lido o primeiro volume de Criminal). Para o percurso individual desta história, tudo o que ela tem de essencial está lá: o contacto, a delicada dança à volta dos segredos, a promessa de um amor a desabrochar em contraponto a um passado solitário (e é tão impressionante a forma como isto é transporto para a arte no contraste entre cinza e pastel e nos cenários à sombra de Van Gogh) e, no fim... bem, o fim. O fim que desperta emoções tão fortes, mas do qual é impossível dizer muito sem estragar a força do impacto que ele tem.
E importa ainda voltar à arte, para realçar ainda um outro aspecto que contribui para o impacto desta imensa surpresa. É que, para uma história vinda do universo de Criminal - e, mais uma vez, destes autores - os tons são surpreendentemente claros, as expressões surpreendentemente inocentes (e, no caso de Skip, surpreendentemente genuínas), o que só faz com que seja mais profundo e inesperado o impacto de uma escuridão que vem, afinal, de dentro. Mas que está lá, ainda assim.
Amor e crueldade num percurso tão breve quanto impiedoso: poder-se-ia talvez definir assim a viagem que é este livro. Uma viagem pessoal e cheia de sentimentos fortes, de promessas de cor e de negrume... e uma história de inocência quebrada, da mais implacável das maneiras. Todo ele uma surpresa e todo ele memorável, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autores: Ed Brubaker e Sean Phillips
Origem: Recebido para crítica

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Princesas que Mudaram a História (Virginia Mosquera e Lydia Sánchez)

Nem todas as princesas vivem num castelo... e muito menos ficam à espera de um príncipe que as salve. Não. As princesas deste livro são também, por direito próprio, protagonistas do seu conto de fadas, mas são elas que constroem a sua história e o seu reino. Conhecemos os seus nomes e talvez até um pouco da sua história. Mas o que este livro faz é mostrá-la como o conto de fadas que realmente é: o da princesa que tinha um sonho, lutou por ele, superou as barreiras e realizou-o. E a história, tal como é contada aqui, pode não ser absolutamente verdadeira, mas a princesa e o sonho são.
Partir da história de um conjunto de grandes mulheres, vindas de diferentes meios e com ambições igualmente distintas, e construir para elas uma história que é, ao mesmo tempo, um conto de fadas e assente na realidade pode parecer um desafio, mas se há coisa que este livro confirma é que resulta. Ler as histórias destas protagonistas contadas desta forma acrescenta-lhe um toque de magia sem tirar nenhuma da importância do percurso real. E, por isso, além de ser uma boa forma de apresentar aos mais novos a história destas grandes mulheres, é também uma leitura cativante e intrigante, pois pode não haver castelos mas nem cavaleiros andantes, mas ninguém disse que não havia magia.
Claro que, sendo um livro infantil, é inevitável uma certa brevidade, mas embora seja evidente a um olhar adulto que há muito mais para contar sobre estas princesas (até porque, nalguns casos, foram elas mesmas a escrever essa história) a verdade é que nunca falta nada de essencial. As linhas gerais do caminho estão lá e complementadas com o toque de magia e de encanto que faz de cada um destes pequenos contos um reino à parte. E a simplicidade... bem, a simplicidade faz sentido, não só pelo tipo de leitores a que se destina, mas porque enfatiza a força da mensagem global.
Há ainda um último ponto a sobressair nisto de pintar a realidade com magia: as ilustrações, claro. São lindas, cheias de cor e de magia. Sem se desviarem demasiado do aspecto real das protagonistas, complementam-no com cores, flores, cenários radiantes. E dão expressividade aos rostos e aos sentimentos contidos - o que, mais uma vez, enfatiza a mensagem do sonho, do esforço e da realização.
É um daqueles livros infantis que facilmente encantam também os adultos, e é mais actual do que nunca na mensagem de força, de perseverança e de poder feminino que transmite. Com a sua mistura de realidade e magia, parte de histórias reais para fazer sonhar. E isso é mais do que suficiente para que valha muito a pena esta descoberta.

Autoras: Virginia Mosquera e Lydia Sánchez
Origem: Recebido para crítica

sábado, 1 de fevereiro de 2020

As Senhoras de Missalonghi (Colleen McCullough)

Filha de uma viúva empobrecida num lugar onde as relações familiares parecem servir de pretexto para a perpetuação do fosso entre ricos e pobres, Missy Wright não tem grandes perspectivas de casamento, até porque não é propriamente uma beldade, muito menos aos olhos de toda uma vasta família de louros. Mas a sorte aparece quando menos se espera e a vingança de uns pode muito bem ser o conto de fadas de outros. A entrada em cena do misterioso John Smith vem pôr a sociedade de Byron em sobressalto, até porque alguém parece estar a comprar misteriosamente as acções da empresa da família. E um estranho, imagine-se! Mas também a própria Missy está pronta para começar a surpreender: farta da monotonia e da resignação ante a vida, começa a descobrir dentro de si uma centelha de desafio que já não a deixa estar quieta. E talvez a intrigante presença de John Smith tenha acendido algo dentro de si...
Uma das primeiras coisas a sobressair nesta história, e provavelmente a sua maior qualidade, é como, ao centrar a narrativa no percurso de Missy, facilmente vêm à tona as injustiças e dificuldades do tempo em que esta história decorre. O meio fechado, em que as coisas se fazem em família porque sempre assim foi (nem que isso implique deixar-se roubar por familiares com mais fortuna e menos escrúpulos), o desprezo dos afortunados que não querem ajudar em contraposição ao orgulho dos pobres que não querem aceitar essa ajuda, a própria visão dos papéis aceitáveis para uma senhora e do comportamento expectável em sociedade - tudo isto são aspectos que, dominantes na história da protagonista, ganham outro impacto pela sensação de opressão quase palpável que é possível sentir em torno de Missy. 
É, por outro lado, uma história relativamente breve, e com espaço mais do que suficiente para momentos caricatos e deliciosamente divertidos. O resultado é um equilíbrio muito eficaz entre os temas sérios, como a visão da sociedade da época e as situações mais problemáticas da vida pessoal das personagens, e uma leveza quase que de conto de fadas que promete romance e aventura.
Claro que, ao centrar-se em Missy, deixa, por vezes, certas facetas das outras personagens para segundo plano. Teria, talvez, sido interessante saber mais sobre o futuro da insuportável Alicia após os derradeiros desenvolvimentos ou sobre a vida de John Smith antes de Byron. E é impossível não ficar com alguns sentimentos ambíguos relativamente a algumas decisões de Missy. Ainda assim, a verdade é que todos os elementos essenciais estão lá e conjugados de uma forma tão envolvente que é praticamente impossível parar de ler.
Simples quanto baste, mas com um equilíbrio muitíssimo eficaz entre as histórias de adversidade e as promessas de aventura, trata-se, pois, de uma história que, passada num tempo diferente, conjuga temas que nunca deixam de ser actuais e sentimentos intemporais. Poderia, talvez, ser um pouco mais longo? Sim, mas resulta lindamente tal como é.

Autora: Colleen McCullough
Origem: Recebido para crítica