sábado, 31 de agosto de 2019

Manual do Bom Fascista (Rui Zink)

Há uma sombra que, nos últimos anos, tem vindo a manifestar-se de forma cada vez mais evidente e cuja presença pode ter consequências desastrosas. Dá pelo nome de Ascensão do Fascismo e, como os leitores deste livro poderão comprovar, pode ser uma senhora muito chata. Mas que critérios definem realmente um bom fascista? As respostas estão neste pertinente e esclarecedor livro que, num conjunto de breves lições, contém todas as pistas necessárias para se reconhecer um.
Não é propriamente uma surpresa - basta ler a sinopse deste livro - , mas uma das principais qualidades deste Manual do Bom Fascista está precisamente na forma como consegue abordar um tema importantíssimo, realçando as suas mais difíceis facetas, de uma forma deliciosamente divertida. Afinal, para quem estiver atento à actualidade, muitas destas características do bom fascista são realmente fáceis de identificar, mas a convicção com que estas personalidades as manifestam ganha outro impacto quando abordada desta forma. Além disso, os muitos paralelismos com a realidade são mais do que pura coincidência e é fascinante reconhecer as múltiplas referências a casos do mundo real - que vão desde acórdãos a caixas de comentários e publicações nas redes sociais.
Até o próprio registo salienta este efeito, pois é fácil imaginar uma espécie de guru do bom fascismo a ditar estas regras com toda a convicção. Convicção essa que, associada ao absurdo das coisas, põe em evidência os problemas de alimentar este tipo de pensamento. Afinal, que melhor forma de combater ideias absurdas do que mostrar o absurdo das ideias? Além do mais, se há quem diga que não se brinca com coisas sérias, este livro é uma bela prova de que brincar com elas é também uma forma de lhes reagir, pois não só realça - com o máximo possível de humor - as múltiplas problemáticas da ideologia destas personagens como consegue, ao longo do caminho, evocar múltiplas questões pertinentes.
Mas manual que se preze tem também de ter ilustrações: até porque (mais uma das curiosas lições deste livro) bom fascista que é bom fascista não lê. E importa por isso salientar as ilustrações relativamente discretas, mas que, tal como o texto propriamente dito, realçam de forma certeira os elementos mais relevantes deste guia. Também aqui é possível reconhecer algumas semelhanças com a realidade, o que só vem confirmar a pertinência do livro.
O que fica, então, desta leitura? Um equilíbrio eficaz entre uma análise certeira aos elementos mais caricatos da tal senhora Ascensão do Fascismo e uma divertida viagem aos seus aspectos mais absurdos. Viciante, actual e deliciosamente divertido, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autor: Rui Zink
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Max Einstein - Uma Experiência de Génio (James Patterson e Chris Grabenstein)

A Max é uma miúda perfeitamente normal - tirando os pequenos pormenores de, aos doze anos, viver numa casa ocupada, frequentar a universidade e ter o apelido Einstein, embora não saiba se é esse o seu verdadeiro nome nem quem são os seus pais. A Max é também mais importante do que julga, e está prestes a descobri-lo. Perseguida por uma gananciosa e sinistra organização, vê-se subitamente resgatada por uma outra, esta com fins bem mais positivos. Mas a aventura está apenas a começar. Um misterioso benfeitor decidiu organizar um concurso de crianças geniais para escolher o seu futuro aliado numa missão de mudança. E a Max é uma forte candidata a essa posição.
Parte do que torna este livro tão cativante é a forma como os autores interligam uma história repleta de aventuras e perigos com um percurso de aprendizagem também muito interessante. Basta o apelido da Max para perceber que a vida e obra de um outro Einstein estarão bem presentes ao longo de toda a história e a forma como os conceitos e citações vão sendo introduzidos, encaixando no ritmo da história sem nunca o prejudicar, fazem com que se chegue ao fim da leitura a saber muito mais sobre Einstein e as suas teorias.
Trata-se, claro, de um livro pensado para os mais novos, pelo que este equilíbrio é particularmente importante. Mas há mais, claro. O ritmo directo da história, cheio de acção e de surpresas, faz com que a leitura facilmente se torne viciante. E se, para um olhar adulto, há certas coisas que podiam ser mais desenvolvidas (como a história do benfeitor ou como foi que a Max foi parar ao local onde a história começa), também é certo que nada lhe falta de essencial e que tudo indica que muitas das perguntas que ficaram sem resposta poderão encontrar explicação no próximo volume da série.
Há, ainda, as ilustrações, que, além de darem mais vida ao enredo, realçando os momentos mais divertidos, providenciando também um esquema visual para algumas das explicações mais complexas, geram uma maior proximidade, pois parecem representar os esquemas e anotações da protagonista. É como ver um pouco mais do mundo da Max através dos seus traços, o que acaba por aumentar a já grande empatia que esta brilhante protagonista desperta.
No fim, fica uma grande vontade de descobrir o mais rapidamente possível que novas aventuras aguardam a Max Einstein e a sua equipa. E a recordação de uma leitura agradável, cativante e com um excelente equilíbrio entre diversão e aprendizagem. Uma boa leitura, em suma, e uma aventura empolgante.

Autores: James Patterson e Chris Grabenstein
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O Pequeno Livro dos Grandes Heróis (Sofia Cochat-Osório)

Generais, cientistas, presidentes, descobridores. Cada um, à sua maneira, alterou o rumo da história, deixando uma marca que perdurou para lá da sua existência, e o seu nome tornou-se célebre. É das suas vidas e obras que este pequeno livro trata - um livro breve, mas povoado por grandes figuras, cuja história vale sempre a pena descobrir ou relembrar.
Não é propriamente uma surpresa, tendo em conta o título, que a abordagem deste livro a cada um destes protagonistas seja relativamente breve. É, aliás, uma certeza que muito mais haveria a descobrir sobre as vidas de cada um destes heróis - até porque há biografias dedicadas a grande parte deles. O objectivo não é, porém, fazer uma descrição completa do seu percurso, dedicando-se antes aos factores essenciais: a história de vida e os feitos que justificam que cada uma destas figuras sejam tidas como heróis. O resultado é uma exposição relativamente concisa, mas bastante clara, de cada um destes homens.
Tendo isto em conta, bem como o facto de todas estas histórias terem em si algo de fascinante, é inevitável a vontade que fica de saber mais sobre cada uma destas figuras ilustres. Mas, neste caso específico, esta curiosidade insatisfeita acaba por ser uma qualidade, pois dá a conhecer o essencial dos protagonistas, ao mesmo tempo que desperta a vontade de ler mais, ir mais longe, aprofundar conhecimentos. O que é sempre algo muito bom de se ter em mente.
Há ainda dois outros aspectos que importa destacar: a escrita e a diversidade. A escrita, pois consegue criar um relato fluido e cativante, sem se perder em pormenores desnecessários nem dar a impressão de que falta informação (pese embora o já referido facto de a vida de qualquer um destes homens ser muitíssimo mais vasta do que o que cabe em meia dúzia de páginas). A diversidade, pois destaca um aspecto bastante notável: o de que não é preciso entrar num combate propriamente dito para se ser um herói. Há os que desempenharam um papel de relevo na guerra, mas também os que defenderam um outro tipo de resistência ou até aqueles cujo heroísmo vem mais de convicções do que de actos. Realçando que o heroísmo tem múltiplas facetas - tal como a vida.
Cativante, conciso, mas repleto de informação interessante, proporciona uma leitura agradável, ao mesmo tempo que incentiva a aprofundar conhecimentos e a descobrir mais a fundo o papel destes homens que mudaram a história. Lembrando, ao mesmo tempo, que o heroísmo nem sempre é feito de grandes combates, como o provam também algumas destas figuras que vale muito a pena conhecer - ou relembrar.

Autora: Sofia Cochat-Osório
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Depois (Morris Gleitzman)

Há dois anos que Felix vive escondido dos nazis na quinta do seu único amigo, Gabriek. Mas a entrada em cena de um grupo de desconhecidos, seguida do incêndio da quinta, deixa Felix e Gabriek numa situação delicada. A única solução que lhes resta é juntarem-se aos resistentes. Aí, Felix conhecerá Yuli, que tentará protegê-lo e orientá-lo, e o doutor Zajak, que lhe dará um papel para desempenhar. Mas, com a guerra a sofrer uma viragem, os bombardeamentos e o perigo constante de se pertencer à resistência, Felix não sabe com quem pode realmente contar. E as perguntas que o perseguem continuam a ser muitas.
Um dos aspectos mais marcantes deste livro é que, apesar de ser uma história pensada para leitores mais jovens, não tenta suavizar a crueldade e a perda. É uma história que decorre em tempos de guerra e de atrocidades, o protagonista é judeu e todas as personagens têm já uma boa ideia do que realmente se passa. Assim sendo, não faria sentido fugir à arbitrariedade da morte e da brutalidade dos tempos em que a história decorre. O choque torna a história mais real.
Torna também o protagonista ainda mais notável. É impressionante ver, no meio do caos e da morte, uma personagem que já passou por tanta coisa e que, ainda assim, se agarra à inocência e tenta - mesmo quando parece impossível - acreditar em coisas boas. Felix tem agora treze anos, mas mantém a mesma inocência, o mesmo fundo de bondade. E este contraste entre a inocência do protagonista - com o seu coração tão grande - e o sofrimento das suas circunstâncias é algo de particularmente comovente.
Sendo uma história narrada na primeira pessoa, é apenas natural que fiquem algumas perguntas sem resposta, principalmente no que diz respeito ao que acontece às outras personagens quando não estão com Felix. Ainda assim, mais do que a vontade de ver mais de perto esses acontecimentos, fica o impacto que eles têm sobre o protagonista quando ele os conhece. Mais do que a curiosidade em saber o que aconteceu aos outros, fica a marca que deixaram na vida de Felix. E, embora também estas outras personagens tenham histórias muito interessantes, são as marcas que deixam - as aprendizagens que inspiram - que realmente se destacam nesta história.
Tudo somado, fica um delicado equilíbrio entre inocência e brutalidade, entre o caos da guerra e a esperança quase inabalável que move o protagonista. Cativante, comovente e com um enredo cheio de surpresas, um livro aparentemente simples, mas que facilmente se entranha na memória.

Título: Depois
Autor: Morris Gleitzman
Origem: Recebido para crítica

domingo, 25 de agosto de 2019

Mulheres Espias em Tempo de Guerra (Ann Kramer)

Quando se pensa no papel desempenhado pelas mulheres no ramo da espionagem, a imagem que vem ao pensamento é inevitavelmente a de Mata Hari, bailarina exótica e mulher sem inibições. Ou então a imagem ficcional de uma qualquer Bond girl. A realidade é, porém, bastante mais vasta e complexa e o que este livro faz é, em jeito de tributo e homenagem, debruçar-se sobre a história destas mulheres que, com uma coragem excepcional e arriscando as próprias vidas, desempenharam um papel crucial nas duas grandes guerras - papel esse que só viria a ser reconhecido mais tarde.
Um dos primeiros aspectos a salientar sobre este livro é também parte do que o torna tão relevante: o facto de muitas destas mulheres não serem tão conhecidas quanto deveriam. O nome de Mata Hari é lendário (sim, é também uma das protagonistas abordada neste livro). Já os das outras mulheres - Odette Sansom, Violett Zsabo, Noor Inayat Khan - são bem menos conhecidos. E, ainda assim, as suas histórias são não só importantíssimas, mas também fascinantes. O primeiro impacto deste livro é, pois, o de uma descoberta preciosa: a da história destas mulheres de coragem e do importante papel que desempenharam no esforço de guerra.
Também bastante impressionante é o facto de permitir uma visão muito mais clara de como terão funcionado os meandros da espionagem, principalmente - mas não só - durante a Segunda Guerra Mundial. As máquinas, os sistemas de comunicação, os riscos e as consequências da captura, mas também as hierarquias, os erros cometidos do lado supostamente seguro. Há todo um mundo a descobrir sobre este tema e a autora apresenta-o de forma clara e cativante, despertando uma imensa vontade de saber mais ao mesmo tempo que constrói uma visão concisa, mas muito completa, das linhas básicas deste mundo.
Há ainda um último aspecto a destacar no que diz respeito à estrutura do livro. Ao optar por seguir períodos e temas específicos, em vez do percurso particular de cada espia, a autora torna a leitura mais abrangente. Mais do que a história pessoal de cada protagonista - embora elas estejam também bem presentes, - fica a história de um todo: das organizações, dos esforços de guerra, das movimentações de resistência e também do sucedido às desaparecidas. Mais do que o percurso individual, sobressaem os pontos comuns, o que faz com que a marca que fica da leitura seja ainda mais forte. Afinal, é impressionante que tantas mulheres tenham tido tanta coragem - e contribuído tanto para o fim da guerra.
Pertinente, cativante e, acima de tudo, fascinante: assim se poderá, pois, definir este livro que é, em simultâneo, um memorial a várias mulheres corajosas e uma lembrança eficaz de que o mundo da espionagem tal como a ficção o imagina pode estar, afinal, bem longe do mundo real. Vale, pois, muito a pena conhecer estas histórias. E recordá-las.

Autora: Ann Kramer
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A Rapariga da Carta (Emily Gunnis)

Samantha Harper gosta do seu trabalho de jornalista, mas sente-se presa num local onde não a valorizam e castigada pelo chefe por ter cometido o erro de ser mãe. Mas tudo muda ao descobrir uma carta que a avó está a ler. A autora da carta é Ivy Jenkins e a sua história é a de muitas raparigas que acabaram numa casa de acolhimento para mães solteiras. Enviada para St. Margaret para ter o seu filho, escreveu repetidamente ao homem que a seduzira apelando a que a resgatasse desse local cruel. Mas não seria esse o final da sua história. Agora, St. Margaret está prestes a ser demolida e Samantha tem pouco tempo para descobrir os seus segredos. Segredos esses que estão mais perto do que ela imagina...
Tendo no centro de toda a história uma das infames casas para mães solteiras de Inglaterra, onde a brutalidade das freiras era tida como "expiação dos pecados", escusado será dizer que este é um livro com um registo bastante sombrio. É esse, aliás, o primeiro aspecto a marcar, já que é impossível não sentir compaixão face às provações de Ivy e Elvira e à forma como as mais eminentes figuras de St. Margaret sempre acharam ser os donos da razão.
Não faltará, pois, material para reflexão a acrescentar a este impacto emocional, já que, tratando-se embora de uma obra de ficção, é sabido que muitos destes factos têm paralelismos numa realidade não muito distante. É bastante impressionante a forma como a autora consegue construir uma história pessoal para as suas personagens e equilibrá-la com este todo mais vasto, gerando a proximidade necessária para sentir com as protagonistas e, ao mesmo tempo, evocando questões pertinentes como as crueldades impostas em nome da religião ou dos bons costumes.
Mas há ainda um mistério, vindo do facto de todos os principais intervenientes na história de Ivy terem encontrado um fim estranho, e a forma como a autora gere estes elementos, deixando pequenas pistas, mas revelando as coisas a um ritmo gradual e pautado por múltiplas revelações, contribui em muito para tornar a leitura bastante mais intensa. Há muito a desvendar pelo caminho, não só que diz respeito aos segredos de St. Margaret, mas principalmente no que toca às ligações entre personagens. Ligações essas que, embora insinuadas desde cedo, culminam num final particularmente intenso.
Feito de mistério e intriga, mas também das marcas duradouras que a crueldade deixa ao longo de gerações, trata-se, pois, de um livro que parte de um tema duro e difícil para construir uma história surpreendente e repleta de personagens notáveis. Sombrio e memorável, cativa desde cedo e dificilmente se apaga da memória. E é precisamente isso que o torna tão bom.

Autora: Emily Gunnis
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

As Coisas Mais Delicadas (Matthew Quick)

Nanette O'Hare é uma rapariga aparentemente normal, a estrela da sua equipa de futebol e razoavelmente integrada, apesar das horas de almoço passadas na sala do seu professor favorito. Mas tudo muda quando este professor lhe oferece um livro obscuro e depois se oferece para lhe apresentar o autor. O livro muda a forma de pensar de Nanette e o seu contacto com Booker, o autor, leva-a a conhecer Alex Redmer, um rapaz que partilha a mesma paixão pelo livro, mas cujo comportamento também a assusta um pouco. Nanette e Alex descobrem-se mutuamente, mas a visão libertadora que inicialmente encontraram no livro cedo começa a trazer consequências mais duras. E, mais uma vez, Nanette vê-se obrigada a questionar as suas escolhas e a opção de pertencer ou não a um mundo onde a diferença é factor de exclusão.
Um dos aspectos mais notáveis deste livro é o facto de ser inesperadamente duro. É uma história de adolescentes - de descoberta, de planos, de amor adolescente -, mas é, acima de tudo, uma história de escolhas e consequência. E surpreende, por isso, não só a dureza dessas mesmas consequências, mas principalmente a forma como se repercutem nas personagens, tornando-as mais ambíguas, mais difíceis de entender, mas também mais complexas, vulneráveis e intrigantes.
Há também como que um quebrar gradual da inocência ao longo de todo o percurso. Alex e Nanette começam o seu caminho empolgados pela descoberta de um amor comum, pela possibilidade de olhar o mundo de uma nova maneira e de deixarem a sua marca. O caminho, porém, acaba por ser muito mais árduo e ambíguo, deixando-os à mercê de um isolamento auto-imposto e de convenções que não assim tão fáceis de derrubar. O resultado é que as personagens se tornam talvez um pouco mais amargas e a história vai adquirindo um registo mais sombrio, à medida que as esperanças vão dando lugar a uma visão mais dura - e também mais lúcida - do mundo e dos que nele habitam.
Tudo se torna, então, inesperado. Nem o rumo da história se encaminha para a previsível descoberta do amor e da liberdade, nem as personagens encontram um futuro perfeito. Cedo se torna evidente que isso nunca seria possível. Há, aliás, um contraste interessante neste evoluir do enredo: a escrita do autor acompanha a evolução das personagens, oscilando entre o registo mais directo e simples da voz de Nanette inicial e a terceira pessoa de uma personagem que descobriu facetas mais negras, tornando-se assim mais distante e escondendo-se sob as suas máscaras. Escrita e enredo atingem assim um equilíbrio particularmente marcante, mesmo nos momentos em que não é fácil compreender e simpatizar com as personagens.
À semelhança do livro de Booker, trata-se pois de um "hino à nobre arte de desistir": uma história sobre o que nos faz pertencer ao meio que nos rodeia e as consequências de se ser diferente, mesmo com as melhores das intenções. Cativante, surpreendente e com uma escrita particularmente eficaz, pode não gerar uma empatia perfeita, mas deixa, sem dúvida alguma, a sua marca.

Autor: Matthew Quick
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro As Coisas Mais Delicadas, clique aqui.

domingo, 18 de agosto de 2019

Crónicas à Volta do Mundo (Rui Daniel Silva)

Viajar pelo mundo de mochila às costas pode parece um projecto perigoso e intimidante, principalmente se prestarmos atenção às notícias que todos os dias nos chegam sobre a insegurança de certos países. Mas pode também ser uma experiência reveladora, quer pela beleza dos locais - naturais e construídos pelo homem, - quer pelas diferenças culturais e pela inesperada simpatia dos habitantes de alguns desses países. O que este livro conta é, acima de tudo, a experiência pessoal de uma viagem através desses locais, com as peripécias mais estranhas e alguns elementos inesperados.
Crónicas à Volta do Mundo: à partida, o título diz tudo. Mas é também desta dualidade que surge um equilíbrio intrigante. Sendo um livro de crónicas, faz todo o sentido que cada texto seja relativamente breve. Sendo um livro de viagens, talvez fosse de esperar um maior desenvolvimento em termos de descrição dos locais e da cultura. Onde entra o equilíbrio? Bem, no facto de, apesar de uma certa vontade de descobrir mais a fundo os traços característicos de cada um destes locais, cada crónica ter precisamente a mistura certa de informação objectiva e de experiência pessoal.
Outro aspecto interessante é que parece não haver grandes planos ou limites. Há uma ligação entre as viagens a países próximos, mas não uma região específica ou uma temática a servir de base ao plano de viagem. São viagens pelo mundo, abrangendo locais tão diferentes como o Togo e a Suíça, a Moldávia e o Iraque. E, mais do que a impressão dos próprios locais - para a qual contribuem também as fotografias, - fica uma imagem de experiência pessoal. Talvez também por isso sejam os episódios bizarros que ficam na memória, como por exemplo o desmontar da ideia de que aquela coisa de oferecer uns quantos camelos pela namorada é apenas um mito urbano.
E, claro, há a mentalidade positiva. Pode não ser o mais importante, mas é algo que sobressai ao longo de toda a leitura: a sensação de uma aventura em que, a cada passo, se procura ver o melhor das culturas e das pessoas, mesmo nos locais em que outros interesses parecem falar mais alto. Não faltam as situações delicadas, os enganos, os momentos mais tensos... mas nota-se uma clara intenção de guardar sobretudo o lado bom. E isso é também algo bastante notável.
Mais que um livro de viagens, trata-se, pois, da história pessoal de um viajante, que, embora sucinta na descrição de cada paragem, consegue, ainda assim, realçar o fundamental e transportar o leitor para os momentos mais únicos. Basta isto para fazer com que a leitura valha a pena. Isto... e a sensação de ter viajado sem sair do sítio.

Autor: Rui Daniel Silva
Origem: Recebido para crítica

sábado, 17 de agosto de 2019

Um Mundo Ideal (Liz Braswell)

Agrabah. Cidade esplendorosa, cujo ponto de máxima beleza reside no deslumbrante palácio do sultão, mas onde há demasiada pobreza nas sombras e muita gente que só roubando consegue sobreviver. É o caso de Aladdin, um ladrão invulgarmente escrupuloso, que rouba apenas aquilo de que precisa para sobreviver. A sua relativa tranquilidade está, porém, prestes a terminar. Primeiro, cruza-se com uma rapariga bonita na cidade, que acaba por se revelar ser a princesa real. E, em consequência desse contacto, vê-se atirado para uma masmorra, seduzido pela promessa de um tesouro e usado para pôr nas mãos de Jafar, o tenebroso grão-vizir, um poder capaz de o tornar praticamente invencível. É então que se torna evidente que a cidade não era, afinal, assim tão má. E a única hipótese de salvar alguma coisa é derrotar Jafar, que, graças à lâmpada mágica, se tornou não só sultão, como o feiticeiro mais poderoso do mundo...
Para quem, como eu, cresceu com filmes como o Aladdin, este livro começa por ser uma encantadora viagem ao mundo da nostalgia. O início da história é bastante semelhante ao filme, o que faz com que a primeira impressão seja a de uma agradável familiaridade, tanto com o cenário como, principalmente, com as personagens.
É, porém, quando a história começa a seguir um rumo diferente que a leitura se torna verdadeiramente cativante. Primeiro, porque o desenrolar dos acontecimentos rapidamente cria uma vontade irresistível de descobrir o que acontece a seguir. Depois, porque, embora não seja difícil prever certos desenvolvimentos, há muitas surpresas ao longo da história, bem como muitos momentos marcantes. E finalmente, porque há na construção das personagens um equilíbrio tão eficaz entre o que já conhecíamos dela e esta versão alternativa que acompanhar os seus passos acaba por ser ainda mais notável. É uma nova viagem com companheiros que conhecemos bem.
Há ainda espaço para outros contrastes: entre o cenário sombrio e os deliciosos rasgos de humor protagonizados por diferentes personagens (com inevitável destaque para o próprio Aladdin); na leveza de uma escrita que é pensada para leitores jovens, mas suficiente cuidada e complex para cativar leitores de todas as idades; e entre a aparente despreocupação do mundo dos Ratos de Rua e as importantes mensagens escondidas nos grandes momentos da história.
Cativante e divertido, embora cingindo-se, em vários aspectos, à história original, marca pelo o seu equilíbrio entre novidade e nostalgia e pela forma como, num mundo completamente novo, consegue gerar uma tão grande proximidade com personagens que, embora bem conhecidas, têm aqui uma forma um pouco diferente. A impressão que fica é, pois, a de um agradável regresso a um lugar onde já fomos felizes. E de uma boa leitura.

Título: Um Mundo Ideal
Autora: Liz Braswell
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

O Livro dos Gatos (Cláudia Cabaço)

Não faltam histórias sobre cães que ficaram famosos, seja por gestos heróicos, pelo seu protagonismo em grandes aventuras ou pela mera presença na vida de um dono famoso. Então e os gatos? Não terão também muitas dessas mesmas histórias? A resposta é sim e a prova disso está neste livro, cujas histórias vão desde a primeira gata astronauta a um gato que sentia a morte, sem esquecer sucessos reais como a Grumpy Cat e imaginários como o intemporal Garfield. Porque aquela ideia de que os gatos são bichos traiçoeiros e de pouca confiança... não podia estar mais longe da verdade.
Sendo certo que o mais importante de um livro é sempre o conteúdo, e ainda mais em casos como este em que os protagonistas são maioritariamente figuras reais (e não importa se, neste caso, não são humanos), importa, ainda assim, começar por destacar o aspecto visual, nomeadamente as secções coloridas dedicadas a gatos de figuras famosas. As histórias enquadram-se na perfeição com as restantes histórias do livro, mas acrescentam algo de novo, pois debruçam-se também mais a fundo sobre a história dos donos (ou dos criadores, no caso da última secção). E surge assim um contraste que, diferenciado por cor, realça o equilíbrio entre o protagonismo dos donos e o dos gatos, figuras maiores deste livro.
Não é difícil reconhecer alguns dos protagonistas deste livro, até porque muitos deles tiveram direito ao seu próprio livro. Ainda assim, há dois efeitos que se destacam desta leitura: primeiro, ver todas estas histórias juntas cria uma imagem global mais ampla, que desmente o já mencionado mito de que os gatos são "menos amigos" que os cães; segundo, conta o essencial da história de cada um destes gatos, o que significa não fica propriamente uma curiosidade insatisfeita, mas sim uma vontade de os conhecer mais a fundo. O que implica chegar ao fim com uma lista de livros para pesquisar - o que é sempre bom.
E há ainda a diversidade de temas em torno de um cerne comum. Todas as histórias são histórias de gatos, mas há espaço para um pouco de tudo: gatos heróicos, gatos sensitivos, gatos de biblioteca, gatos estrelas do palco, gatos da internet... Parece que estão em toda a parte, não é? E o maior elogio que se lhes pode fazer é esse: afinal, são mais companheiros do que se diz. 
Cativante, sucinto, mas bastante completo e divertido, cativa pela forma como conta estas surpreendentes histórias... e surpreende, acima de tudo, pelos seus protagonistas. Somados todos estes aspectos, a impressão que fica é, pois, inevitável: a de um livro imperdível para quem gosta de gatos. 

Autora: Cláudia Cabaço
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Quinas e Castelos (Miguel Metelo de Seixas)

As quinas, os castelos, a esfera armilar, a cruz de Cristo... todos conhecemos estes símbolos que, de uma forma ou de outra, se tornaram parte da identidade nacional. Mas do que falamos realmente quando falamos em brasões e, especificamente, do escudo de armas do rei? Este livro traça um retrato da evolução, em termos de heráldica, das armas reais e da forma como estas reflectem contextos, alianças e até mesmo mudanças de regime. Porque o símbolo pode ter-se tornado comum aos nossos olhos, mas isso não significa que não tenha uma história complexa.
Para quem, como eu, chega a este livro com escassos conhecimentos de heráldica, a leitura pode parecer inicialmente um pouco confusa, dada a abundância de regras e termos específicos. Para estes, a solução está no glossário final, que permite compreender melhor os elementos a que o autor se refere. Já as primeiras, vão-se captando aos poucos à medida que a leitura avança. Sim, a confusão inicial torna o arranque um pouco mais pausado e seria interessante ver uma explicação geral prévia. Mas tudo se torna claro no fim.
Há também vários aspectos interessantes além das normas e construções propriamente ditas. Destaca-se, por exemplo, o facto de o simbolismo dos vários elementos nem sempre ser tão linear como aprendemos na escola, havendo até casos em que o significado é múltiplo, alterando-se consoante o contexto e a época em que é visto. E também a evolução dos símbolos, com as respectivas justificações e contexto histórico a darem toda uma nova perspectiva ao que é, afinal, muito mais do que um simples elemento visual.
É um livro que, apesar da relativa brevidade, exige atenção constante para assimilar todos os pormenores. Entre símbolos, regras, intervenientes, mudanças de cenários, de estatuto, de regime, há todo um conjunto de variantes a surgir, trazendo consigo novas motivações e contextos. Assim sendo, é um livro que, apesar de breve, é bastante exigente.
Vale a pena o esforço? Vale, com certeza, até porque uma coisa é certa: chega-se ao fim com um conhecimento mais amplo sobre o tema, e com vontade de saber ainda mais. E, se a desorientação inicial dá lugar a um vasto conjunto de conhecimento, então a impressão que fica não pode ser outra que não a de uma boa leitura.

Autor: Miguel Metelo de Seixas
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Quando a Terra Era Plana (Graeme Donald)

A ciência está em constante evolução, o que significa que aquilo que há algum tempo era visto como uma certeza absoluta acabou por ser desmentido por descobertas posteriores. Além disso, há teorias "científicas" que se tornaram mitos e que, mesmo depois de desacreditadas, perduraram na mente de muitas pessoas. O que dizer dos ainda existentes devotos da teoria da terra plana? Ou do fenómeno dos tratamentos de irrigação do cólon? Este livro, simples e divertido, debruça-se sobre algumas célebres teorias que se revelaram erradas, mas cujas ramificações se prolongaram ao longo do tempo - com resultados por vezes dramáticos.
Sendo um livro relativamente breve, mas que se debruça sobre vários temas, uma das primeiras coisas que importa dizer é que não é, nem pretende ser, uma análise completa a cada uma destas teorias. O que apresenta é uma descrição em linhas simples destas ideias, origens e propagação, debruçando-se depois sobre as descobertas que desmentiram a sua validade e também sobre o impacto que tiveram na história. E, porque algumas delas são hoje bastante óbvias, o que este livro consegue, além de traçar um retrato bastante interessante sobre a evolução da ciência, é proporcionar também uma leitura divertida. Até porque, além das teorias mais rebuscadas, o próprio registo leve e cativante - com algumas observações deliciosamente certeiras - contribui também para lhe conferir esse tom.
Importa também destacar a estrutura do livro, em que cada capítulo é acompanhado por várias ilustrações e caixas com informações complementares. As ilustrações permitem uma imagem mais clara de algumas explicações mais bizarras - nomeadamente no que toca a... aparelhos. A informação extra, além de acrescentar pequenos detalhes a alguns dos temas expostos, traz também uma secção de mitos "científicos" que ainda perduram actualmente e que esta leitura vem desmentir.
Podia ser um livro mais extenso? Provavelmente não faltariam teorias para acrescentar a este conjunto ou até mais a dizer sobre as que são, de facto, abordadas. Ainda assim, parece ter a medida certa, dedicando-se a várias teorias sobejamente conhecidas e abordando-as e forma concisa quanto baste e sem deixar de fora nada de essencial. Para aprofundar cada tema, haverá certamente outros livros. Este forma um todo bastante eficaz tal como é.
Trata-se, pois, de uma bela leitura para descobrir os meandros mais bizarros da ciência passada - e também para desconstruir algumas teorias que, apesar de tudo, persistem em voltar a aparece. Cativante, divertido e muito, muito interessante, um livro que não posso deixar de recomendar.

Título: Quando a Terra Era Plana
Autor: Graeme Donald
Origem: Recebido para crítica

domingo, 11 de agosto de 2019

O Milagre Espinosa (Frédéric Lenoir)

Educado no seio da religião judaica, Baruch de Espinosa cedo começou a fazer perguntas desconfortáveis - perguntas essas que o levariam a ser primeiro visto com desconfiança e depois abertamente repudiado por diferentes religiões. Da religião, passou para a filosofia, e seria esta a gravar o seu nome na história. Este livro aborda de forma sucinta e esclarecedora não só os passos essenciais da sua vida e pensamento, mas principalmente a sua obra maior, transpondo-a para uma visão actual e realçando o que nela existe de intemporal.
Sendo o próprio autor quem descreve como "árida" a leitura da Ética de Espinosa, uma das primeiras coisas a destacar neste livro será necessariamente o registo. É um livro mais breve, pelo que será inevitável que conceitos e visões sejam necessariamente simplificados. Não é, porém, um livro simplista. A voz que confere ao texto - tanto nas descrições biográficas como nas explicações filosóficas - é clara e concisa, mas não deixa nada de essencial de fora. E a divisão entre os diferentes de aspecto consegue também dividir a muita informação em fracções mais fáceis de assimilar.
Outro aspecto a destacar é, claro, a actualidade das ideias e o contraste que existe entre este todo intemporal e certos conceitos desfasados do nosso tempo. Não deixa, aliás, de ser particularmente interessante ver a admiração e o fascínio que o autor professa por Espinosa e reparar que, ainda assim, assume claramente os pontos de discordância, nomeadamente no que toca à opinião do filósofo sobre as mulheres e os animais. É estranhamente fascinante ver como alguém cujo pensamento foi tão inovador para o seu tempo - ao ponto de fazer inimigos de religiões inteiras - acaba por se cingir, em certos aspectos, aos limites do pensamento da época.
E, se este pensamento diverge da obra, já no que diz respeito à vida deixa marcas profundas. Se a filosofia em si tem muito de interessante, já a história do filósofo, nas partes abordadas neste livro, tem também muito de surpreendente, desde as cartas dos amigos católicos apelando ao arrependimento a uma expulsão que, séculos depois, se manteve por... falta de arrependimento. E é notável a forma como os laços entre vida e obra ganham forma neste livro: a visão de Espinosa sobre Deus e a Bíblia é indissociável da forma como as religiões reagiram a este pensamento. A ideia é inseparável do homem.
Fica, pois, esta surpreendente imagem: a de um livro em que a história das ideias é também a história do seu autor. E a de uma revitalização para novos tempos de um pensamento com muito de intemporal. Completo, esclarecedor e também muito acessível, um belo livro para conhecer ou recordar a vida e o pensamento de Baruch de Espinosa.

Autor: Frédéric Lenoir
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Há Algo Estranho na Água (Catherine Steadman)

Erin e Mark têm tudo para ser felizes. Prestes a casar, decidem que está também na altura de começarem a pensar em ter um filho. Mas eis que tudo começa a mudar. Primeiro, Mark perde o emprego, o que obriga a uma alteração dramática nos planos para o casamento. E a lua de mel, o único luxo que decidiram manter, leva-os a uma decisão irreparável. Durante a sua estadia em Bora Bora, descobrem algo estranho na água. Algo capaz de mudar as suas vidas, desde que consigam guardar em segredo aquilo com que se depararam. Mas decidir manter esse segredo abre também caminho a uma sucessão de perigos, capazes de comprometer não só a sua já frágil união enquanto casal, mas também as suas vidas...
Provavelmente o aspecto mais notável deste livro é que, embora não sendo particularmente emotivo, até porque as personagens são bastante ambíguas no que toca à empatia, há, ainda assim, uma sensação de perigo quase palpável. Cedo se torna evidente que a relação entre os protagonistas está longe de ser perfeita, mas há, ao longo de todo o enredo, um ténue fio entre proximidade e diferença, e isso faz com que seja impossível prever que resolução haverá para cada um dos vários problemas que Erin e Mark têm em mãos.
Esta aura de risco e de mistério torna a leitura estranhamente viciante. Não é propriamente um livro de ritmo compulsivo. O registo é relativamente pausado, havendo amplo espaço para análises pessoais, para as questões com que Erin se confronta na realização do seu documentário e para a visão dos múltiplos problemas de uma vida a dois. E, no entanto, há uma sombra que paira constantemente sobre as personagens. Primeiro, o desemprego de Mark cria uma situação de tensão. Depois, a descoberta em Bora Bora acrescenta um novo elemento de risco, parecendo unir os protagonistas nos seus planos e decisões. E a partir daí... Bem, a partir daí a intensidade vai crescendo, as reviravoltas sucedem-se e o que inicialmente era um avanço gradual abre caminho a um pico de intensidade e a um final particularmente marcante.
Tendo isto em vista, a ambiguidade das personagens acaba por fazer todo o sentido, pois, além de brincar com as emoções do leitor, deixando em aberto o verdadeiro papel de cada uma delas, ajusta-se na perfeição a uma situação de perigo e de consequente adaptação. Erin é apenas uma pessoa normal - até que se vê perante a necessidade de tomar decisões impossíveis. Mark... bem, Mark é cheio de surpresas. E se os desenvolvimentos - bem como as decisões tomadas - fazem com que este casal seja tudo menos um duo de personagens modelo, também é certo que o facto de não o serem torna tudo muito mais interessante.
Intrigante desde o início e sempre cativante, apesar do início um pouco mais pausado, trata-se, pois, de um livro que se vai entranhando aos poucos, à medida que história e personagens revelam gradualmente o seu verdadeiro potencial. Misterioso e surpreendente, um livro que vale a pena descobrir.

Autora: Catherine Steadman
Origem: Recebido para crítica

Para mais informações sobre o livro Há Algo Estranho na Água, clique aqui.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Koiza (David Walliams)

A Magda sempre conseguiu que os pais acedessem a todos os seus pedidos. Mas, para alguém tão mimado como ela, tudo não chega. Quer sempre mais. E que mais pode querer uma criança a quem é dado tudo? Bem, a Magda quer mais uma Koiza. E o que é uma Koiza? Segundo a Monstropédia, é uma criatura terrível que vive na floresta mais escura, mais profunda e mais selvagem. E, para fazer a vontade à filha, é aí que o Sr. Manso vai ter de se aventurar em busca de Koiza. E se pensa que encontrá-la será a solução para todos os seus problemas... está redondamente enganado.
Sendo um livro pensado para os mais novos - e especificamente voltado para o espírito de aventura e de rebeldia - , uma das primeiras coisas a destacar-se neste livro será necessariamente o equilíbrio entre o texto e a ilustração. As abundantes ilustrações, as variações que o texto apresenta e até a mudança de cor das páginas (afinal, há coisas que acontecem numa selva muito escura) fazem com que, apesar de tudo o que tem de peculiar e de estranho, seja surpreendentemente fácil entrar no ritmo desta aventura. E se não é propriamente fácil simpatizar com a autoritária Magda... bem, digamos que o evoluir dos acontecimentos lhe faz a devida justiça.
Outro aspecto interessante é que não há praticamente nada nesta história que não seja estranho, a começar pela própria Koiza, mas tudo parece fluir com uma igualmente estranha naturalidade. Tanto a Koiza como os outros animais da Monstropédia são do mais improvável que se pode imaginar, mas encaixam perfeitamente nesta peculiar história - até porque é a Magda a criatura mais difícil de conter. Além disso, a improbabilidade de tudo torna também a leitura mais divertida e cativante, pois é impossível não sentir curiosidade ante que bizarrias e aventuras (ou desventuras, no caso do Sr. Manso) surgirão a seguir.
Claro que, de uma perspectiva adulta, surgirão também outras questões, que acabam por ter também o seu impacto. Ou que melhor forma de abordar a necessidade de regras e de saber dizer não do que o monstro criado pela... bem, mansidão do Sr. e da Sra. Manso? É impossível não ter isto em mente, pois, embora a história siga por outros rumos (e também esta situação tenha uma resolução surpreendente), são as exigências de Magda a base de toda esta aventura.
O que fica é, pois, a impressão de uma história cheia de estranheza e de bizarria, mas também estranhamente cativante e divertida. Viciante, cheia de surpresas e com uma imaginação vastíssima, uma boa aventura para cativar os mais novos... e não só.

Título: Koiza
Autor: David Walliams
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Se Sentes, Não Hesites (Manuel Clemente)

Às vezes, parece que a vida é uma correria constante. Da agitação do trabalho a uma vida pessoal que parece ter de corresponder cada vez mais a uma expectativa idealizada, não necessariamente por nós. E o que devia ser um milagre quotidiano torna-se um fardo a carregar. Talvez nem todos os problemas se resolvam internamente, mas olhar para o interior, para o que realmente queremos, para os sonhos, para o caminho a percorrer, pode abrir caminho a uma visão mais simples e fortalecedora. É essa a visão deste livro, que, através dos seus pequenos textos, não aponta caminhos infalíveis, mas sim a via da auto-reflexão.
Surge, por vezes, neste género de livros, a tendência para uma de duas coisas: ou uma visão demasiado fácil, de basta querer para conseguir e só não consegue quem não quer; ou um caminho demasiado estrito, de regras invioláveis cujo incumprimento resultará em desastre. Felizmente, este livro não segue nenhuma destas vias. A linha fulcral é uma e uma só: olhar mais para o que somos, para o que queremos, para o que nos torna melhores, e agir em função disso. O resto é uma visão pessoal, da qual podemos tirar muito material para reflexão, tomando depois as nossas próprias decisões.
É também um livro que não se cinge a uma crença específica, centrando-se mais na percepção da própria natureza de cada um e partindo daí para a transmissão das várias mensagens positivas. Claro que há aspectos que, à primeira vista, poderão evocar a tal sensação de que a realidade não é assim tão simples: afinal, nem todos os problemas dependem apenas de nós. Não deixa, ainda assim, de haver muito de bom a retirar desta visão optimista e empenhada. Talvez não seja a solução para todos os problemas - nem pretende sê-lo, diga-se - mas é certamente um belo motivador para os enfrentar com mais coragem.  
E importa ainda referir a que acaba por ser a qualidade mais marcante desta leitura: a escrita. Num registo intimista, pessoal, de quem conta a sua própria experiência, partindo dela para transpor potenciais conselhos e possibilidades, abre portas ao delicado equilíbrio entre a sua visão específica e pessoal e a visão que cada leitor poderá construir a partir destes temas. Há, além disso, um ritmo nas palavras - e na própria estrutura do livro - que torna a leitura mais fluida, mais cativante, conferindo a cada texto um toque de quase poesia que o torna mais memorável.
Não é um daqueles livros de auto-ajuda que prometem milagres - e ainda bem. Pois, com a sua visão pessoal, a abundância de material para reflexão e a escrita cativante e harmoniosa a remeter para a simplicidade ideal, é mais um caminho do que um destino. E principalmente uma inspiração.

Autor: Manuel Clemente
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Vila Medieval (Marta Lalanda Prista)

Preservar um local histórico implica necessariamente umas quantas imposições em termos de construção e até de forma de vida. E nem sempre essas normas serão bem vistas, principalmente por quem lá habita e tem de conviver com as consequências económicas, com o movimento de turistas e com o conhecimento de que o aspecto histórico do património foi, em tempos, desenvolvido com fins de propaganda. Através de uma viagem a uma vila medieval anónima, a autora traça um olhar sobre todas estas questões, olhando-a não como base de história, mas da perspectiva dos actuais habitantes.
Pese embora o castelo na capa e o facto de ter como cerne uma vila medieval, desengane-se quem espera deste livro uma viagem ao passado longínquo. Não é disso que se trata. E, embora faça efectivamente algumas ligações ao passado, nomeadamente no que diz respeito às influências do Estado Novo na preservação e restauro, é no presente que este livro se foca: na forma como a preservação de uma vila medieval obrigou os habitantes a sair, num cenário turístico feito de locais específicos, mas de lojas que vendem objectos "típicos" de muitos outros locais e na visão e divisão das pessoas entre habitantes, turistas e trabalhadores pendulares. É presente a viagem a esta vila medieval não designada - e são as questões actuais que são abordadas.
Também o facto de ser um retrato construído a partir da viagem individual da autora torna as coisas mais interessantes. É certo que a perspectiva global será um pouco mais limitada, não só por ser uma visão única, mas principalmente pelos limites do tempo. Ainda assim, é também uma visão mais próxima, assente não só nas impressões causadas pelos locais, mas também nas conversas mais ou menos abertas tidas com habitantes e turistas. As questões ganham outro impacto ao serem apresentadas da perspectiva de quem tem de viver com elas. E a presença das pessoas torna o retrato mais próximo.
A impressão que fica é, por isso, de uma viagem surpreendentemente próxima a um local preservado do passado: uma viagem que se debruça sobre questões actuais tendo por base não só o património histórico, mas principalmente as pessoas que o mantêm vivo. Haveria mais a explorar? Certamente. Mas o essencial da viagem está lá e lê-lo é, à sua maneira, também como viajar um pouco. Vale a pena, pois, descobrir esta vila sem nome - e a sua história.

Título: Vila Medieval
Autor: Marta Lalanda Prista
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Está Tudo F*dido (Mark Manson)

Vivemos tempos bizarros. Embora as coisas estejam longe de ser perfeitas, dizem as estatísticas que nunca estivemos melhor: há mais saúde, mais segurança, mais paz e mais liberdade, embora certos factores emergentes pareçam apontar para o contrário. E, ainda assim, apesar de tudo o que parece estar melhor, o mundo parece caminhar a passos largos para o desespero. Como se - parafraseando o título - estivesse realmente "tudo f*dido". Então qual é o problema? Para o autor, parece ser a esperança. E, uma vez terminado este livro, uma coisa é certa: nunca mais a esperança será vista da mesma forma.
Sendo um livro classificado como de auto-ajuda ou de desenvolvimento pessoal, há duas coisas que se destacam e surpreendem. A primeira é o facto de ser uma abordagem completamente diferente da que aprendemos a esperar do género: não é simples, não é motivacional, não é um conjunto de dicas fáceis, nem sequer é uma defesa da busca da felicidade. É, pois, um livro que, além de surpreendentemente complexo, segue uma abordagem bastante inesperada e, com isso, consegue apresentar toda uma vastidão de matéria para reflectir. A segunda é o conceito em si: é um livro sobre esperança em que a esperança é basicamente a vilã da história. E o mais estranho em tudo isto é que essa perspectiva faz realmente um certo sentido.
Surpreendente é, pois, uma boa palavra para começar a descrever este livro. Mas há mais qualidades. Há o registo, que oscila entre a afirmação dramática do título e uns quantos laivos de humor verdadeiramente deliciosos (vejam-se as citações de... bem, Einstein). Há a forma como complementa as ideias com dados, factos e também com histórias de grandes figuras, acrescentando exemplos às questões que pretende abordar. E há a organização, que parte de um exemplo de heroísmo para depois se debruçar sobre as diferentes facetas do mundo e das coisas e construir uma nova base de ideais: menos busca de felicidade, mais evolução.
Não é necessariamente fácil assimilar uma visão do mundo construída em torno de uma Verdade Desconfortável, onde quase tudo funciona como uma religião e em que a esperança é contraproducente. Ainda assim, se esta visão desperta uma estranheza inicial, a verdade é que no fim tudo faz um certo sentido. Haverá sempre possíveis pontos de discordância, visões diferentes, uma certa divergência de posições. Mas o que fica é, acima de tudo, muito material para reflexão. E é esse que torna esta leitura realmente notável.
Está muito longe de ser o habitual livro de auto-ajuda que ensina a viver melhor. Mas, à sua maneira, talvez abra portas à possibilidade de viver de forma mais lúcida. E, com as suas ideias peculiares, o seu registo delicioso e a sua visão filosófica e cheia de questões pertinentes, uma coisa é certa: não será um livro fácil de esquecer.

Autor: Mark Manson
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Gramática para Todos (Marco Neves)

Todos trazemos connosco as memórias das aulas de Língua Portuguesa e das aparentemente infinitas regras gramaticais - nomes, verbos, adjectivos, conjugações, preposições, orações... Mas será a gramática assim tão complexa como recordamos? Bem, se quisermos ir a fundo, provavelmente. Mas a verdade é que este aspecto tão essencial da língua não é assim tão difícil de compreender nos seus fundamentos. E o que este livro nos dá é uma visão simples, mas bastante completa, das regras fundamentais que nos permitirão escrever melhor. Afinal, chama-se Gramática para Todos. E o nome diz tudo.
Nunca será fácil escrever sobre um livro destes, até porque, ao fazê-lo, cria-se uma estranha espécie de ciclo: escrever sobre um livro que ensina a escrever. Há, ainda assim, algumas características que importa destacar e que fazem deste livro uma excelente ferramenta para ter à mão sempre que for preciso esclarecer alguma dúvida ou relembrar alguma regra.
A primeira, surpreendentemente, é o registo. Contrariamente a algumas gramáticas, este livro está longe de ser uma leitura maçadora, pois a clareza e a simplicidade com que expõe as coisas, associada aos abundantes exemplos, torna este livro muito acessível e até divertido de se ler. Quando as coisas são claras é mais fácil assimilá-las. E quando o registo é cativante, aprender - ou recordar - torna-se mais divertido.
Outro aspecto é a estrutura do livro, dividido não só entre categorias, mas principalmente num grau de complexidade crescente. Primeiro, surgem as coisas que todos sabemos (ou pensamos saber), mas que é sempre preciso recordar para assimilar o que virá a seguir. Depois, surgem facetas potencialmente mais traiçoeiras - que já não parecem assim tão traiçoeiras, agora que as bases estão mais frescas. E, assim, o que acontece é que este exercício de aprendizagem ou de refrescamento da memória, flui com uma maior naturalidade, deixando as coisas mais vivas no pensamento.
Por último, destaca-se o facto de ser uma gramática com um objectivo para lá da simples exposição das regras. O objectivo é ser uma ferramenta para escrever melhor e, assim sendo, faz todo o sentido os aspectos complementares do estilo e da voz própria. Serão, talvez, aspectos mais subjectivos, mas não deixam de ser também muito importantes num livro como este.
Fica, pois, a impressão de um livro que cumpre plenamente todos os seus objectivos, explicando os fundamentos gramaticais de forma acessível e de fácil assimilação e complementando-os com uma série de dicas importantes para quem pretende escrever - e escrever bem. Cativante, relevante e uma óptima ferramenta para quem se aventura no mundo da escrita, um livro que não posso deixar de recomendar.

Autor: Marco Neves
Origem: Recebido para crítica