quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Conto da Sereia (Onofre dos Santos)

Amor. Da primeira paixão da juventude a uma sucessão de fantasias e aventuras mais ou menos imaginadas, passando pelo fantasma dos últimos dias que tão vincadamente evoca o amor à vida. É o amor o cerne deste livro que, apesar de breve, abrange múltiplas facetas, num registo leve quanto baste, mas suficientemente introspectivo para apelar à reflexão.
Diálogos na Areia, o conto que abre este livro, fala do amor juvenil por uma rapariga mais velha e de todos os devaneios e fantasias de um rapaz que se prepara para amar. Bastante simples e centrado sobretudo nos diálogos, destaca-se essencialmente pela forma como retrata a inocência - e inconsequência - do amor na juventude, feito de sonhos e de promessas sem muito fundamento real.
Segue-se A Mulher Imaginária, história de uma relação virtual unidireccional, que começa por um contacto real, mas se vai aprofundando na imaginação do protagonista. Mais denso e introspectivo do que o conto anterior, cativa sobretudo pela forma como reflecte a solidão das ligações do mundo moderno. O homem que fala para a internet e recebe apenas silêncio é uma forma nova - mas, de certa forma, intemporal - de amor aparentemente não correspondido, virtual, mas cheio de emoção, mesmo assim.
Que Esperas de Mim?, o conto seguinte, fala de uma sedução falhada e de um julgamento mais ou menos imaginado. Peculiar, um tanto ambíguo na linha que separa a realidade da imaginação do protagonista, cativa sobretudo pela cadência da escrita e pela forma como, embora não sendo propriamente a mais carismática das personagens, é, ainda assim, possível sentir alguma empatia pelo protagonista.
Segue-se Um Domingo Feliz, história de uma refeição entre amigos pontuada pela presença de uma mulher (possivelmente) imaginária. Mais uma vez, sonho e realidade confundem-se, num registo relativamente ambíguo, mas também estranhamente envolvente com as suas aspirações aparentemente impossíveis.
Blue Moon situa-se em dia de lua azul (e de eleições) e narra mais um encontro do protagonista/narrador com a sua recorrente amada impossível. Mais uma vez, dominam os sentimentos e o ambiente de quase irrealidade, dando voz a um amor com tanto de impossível como de mil vezes visualizado.
Uma História d'O fala de uma amizade de juventude perpetuada através de uma medalha de elevado valor simbólico. Mantém-se o tema recorrente do amor ao longo da passagem do tempo, agora com uma linha mais clara a separar passado e presente, mas com a mesma envolvência introspectiva e um ligeiro rasgo de inocência que prevalece.
Segue-se Meu Amor em Película, outro amor de juventude, feito de olhares à distância e de contactos desastrados, que depois se transforma em distância e... redescoberta. Relativamente pausado, até porque as descrições são bastante extensas, deixa sobretudo na memória a visão detalhada da amada moldada pelo amor na mente do protagonista.
Papagaio Falador faz de um papagaio invasor o ponto de partida para um primeiro e arrebatador encontro. Caricato na peculiar figura do papagaio, cativante na caracterização das rotinas do protagonista e surpreendente na forma como tudo termina, um conto leve e peculiar sobre o inesperado.
Luanda o Primeiro Dia mergulha na história - mais ou menos imaginada, mais ou menos passada de geração em geração - do primeiro homem a pisar o solo de Luanda. É, como habitual, uma história de amor, mas feita também de paisagens e de avanços e recuos nos séculos que lhe conferem um tom algo mítico.
Segue-se o conto que dá nome ao livro. O Conto da Sereia transporta para o futuro o amor juvenil do início deste livro, traçando para ele novas memórias na já familiar ambiguidade entre o real e o imaginado. Ambíguo nos acontecimentos, mas cativante nas palavras, cria um bom elo de ligação com a história do primeiro conto.
E tudo termina em A Porta, história de uma quinta dimensão que inspira a escrita, mas que esconde também os seus perigos. Mais pausado e também mais introspectivo, distancia-se um pouco para outro tipo de amor, sem com isso perder a envolvência, a que acrescenta um poderoso factor surpresa no final.
Terminada a leitura, a impressão que fica é a de uma leve, mas envolvente viagem aos meandros do amor, explorando sobretudo os efeitos que tem sobre aquele que o sente. Simples quanto baste, mas cativante e agradável, uma boa leitura, em suma.

Autor: Onofre dos Santos
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Don't Tell Teacher (Suzy K. Quinn)

Lizzie Riley está a começar uma nova vida com o filho, após ter fugido de um marido violento e a guerra que se seguiu  pela custódia de Tom. Mas os problemas parecem segui-la para toda a parte. Graças aos serviçso sociais, Tom vai começar a frequentar uma escola de prestígio, mas algo não bate certo na Steelfield Academy. E quando Tom começa a agir de forma estranha, a aparecer com marcas de injecção e a revelar problemas de saúde, Lizzie começa a desconfiar. Mas quem acreditará nela quando diz que tudo aquilo deve estar a acontecer na escola?
Feito, em medidas iguais, de mistério e de sentimento, este é o tipo de livro que nos dá a volta à cabeça. Bastam alguns capítulos para gerar sentimentos fortes por Lizzie, a jovem mãe que quer deixar o passado para trás e construir uma nova vida, mas tem agora de lidar com uma mãe excêntrica, uma escola onde as práticas bizarras parecem ter-se tornado lei e o receio constante de não estar à altura das expectativas da sua assistente social. Esta empatia simples contrasta com a ominosa sombra que parece envolver a escola e as estranhas circunstâncias que envolvem Tom. E, neste delicado equilíbrio entre emoção e intriga, as páginas parecem voar, pois é impossível não querer saber o que acontece a seguir - e qual a explicação para muitas das circunstâncias inexplicáveis.
Quanto ao que acontece a seguir... bem, digamos só que este livro está cheio de surpresas. A enorme reviravolta dos capítulos finais dá uma nova perspectiva a todos os acontecimentos anteriores. E, além do óbvio impacto do inesperado, torna-se ainda mais memorável devido a tudo o que aconteceu antes. Lizzie e Olly não são apenas o que é visível no início. São algo mais. E essa percepção, com todas as mudanças que isso implica, gera um inesquecível turbilhão de emoções.
Quando à escrita, é bastante viciante. Os capítulos curtos e o delicado equilíbrio entre presente e passado, percepção e realidade, acção e emoção, molda uma narrativa fluida e intensa, cheia de emoção e de secretismo, mas também de uma forma algo inesperada de amor e de lealdade.
Trata-se, em suma, de um livro impossível de largar. Intenso, viciante, cheio de surpresas e de inocência perdida, é o tipo de história que nos lembra de que às vezes são aqueles que mais amamos a nossa maior ameaça. E que todos os segredos são eventualmente revelados... quando menos esperamos.

Autora: Suzy K. Quinn
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 25 de agosto de 2020

3020 - A Conspiração de Atlântida (R. C. Colaço)

Ano 3020. A descoberta de uma tecnologia inovadora para a produção de energia fez da Federação Lusitana uma das grandes potências mundais. O mundo, esse, é completamente novo, dominado pela tecnologia em todos os aspectos da vida. Mas o delicado equilíbrio da Federação pode estar ameaçado. O criador das plataformas energéticas acaba de morrer misteriosamente e uma investigação oficial pode atrair atenções indesejadas para a plataforma Atlântida. Numa tentativa de ganhar tempo, o cadete Jonas X é enviado para lá a fim de conduzir uma investigação discreta. Mas o inexplicável esconde muitas vezes algo sombrio: enganos... segredos... e uma conspiração.
Passado num futuro distante, em que tudo é diferente excepto as intemporais intrigas e ânsias de poder, é no seu admirável mundo novo e nas peculiaridades que caracterizam que este livro tem o seu ponto mais fascinante. Há toda um conjunto de desenvolvimentos tecnológicos, de construções futuristas e de possibilidades de contacto, deslocação e até armazenamento de memórias, bem como todo um sistema de hierarquias a descobrir. E, sendo certo que esta abundância de elementos novos torna, inicialmente, a leitura um pouco pausada, pois são muitos os pormenores para assimilar, é também toda esta série de inovações que torna este futuro tão intrigante.
Trata-se também do primeiro volume do que se prevê que será uma trilogia, pelo que não será propriamente uma surpresa que muitas coisas fiquem em aberto. Neste sentido, importa realçar dois aspectos. Primeiro, a forma como, de um ponto de partida relativamente pausado, a história vai crescendo em intensidade à medida que os perigos e intrigas começam a manifestar-se. Depois, a forma com, embora deixando praticamente tudo em aberto, este primeiro volume parece culminar num final adequado, em que tudo fica bem longe da resolução definitiva, mas a fase da procura terminou.
E importa ainda olhar um pouco mais para esse crescendo de intensidade que não deriva só do enredo propriamente dito, em que possibilidades e teorias dão lugar a acções mais dramáticas, mas também da própria escrita, que,apesar de alguns lapsos de revisão, consegue progredir das descrições intrigantes (mas, como já disse, pausadas) para um contraste eficaz entre a serenidade forçada das reuniões de crise e a intensidade crescente de uma situação... perigosa.
Um mundo fascinante, uma intrigante teia de segredos e conspirações e um vasto potencial para o que se poderá seguir na história destas personagens: são estas, em suma, as impressões que ficam deste primeiro volume. Um livro cheio de potencial e de boas surpresas a descobrir.

Autor: R. C. Colaço
Origem: Recebido para crítica

domingo, 23 de agosto de 2020

A Hundred Million Years and a Day (Jean-Baptiste Andrea)

Desde pequeno, Stan sempre sentiu um grande fascínio pelos fósseis. Sem amigos e com uma vida familiar conturbada, costumava encontrar na pedra, no âmbar e nos antigos espécimes os companheiros que nunca teve. Agora, Stan é adulto e conseguiu tornar-se o que sempre desejara: paleontólogo. Mas a realidade não corresponde exactamente aos seus sonhos. Para fugir às rotinas, decide seguir uma lenda, a história de um antigo dragão cujo esqueleto jaz numa gruta. No cimo das montanhas, contudo, há frio e perigos. A gruta não é fácil de encontrar - nem é fácil entrar nela. E o preço pela sua muito aguardada descoberta... pode ser demasiado elevado.
Provavelmente a maior qualidade deste livro é que, apesar da relativa brevidade, parece conter um mundo inteiro. O mundo de Stan, sobretudo, mas também o mundo branco e desolado do seu destino, e até o passado distante do seu lendário dragão se manifesta. Além disso, a vida e a infância de Stan podem ser o centro de toda esta história, mas as personagens que o rodeiam são também bastante impressionantes nas suas singularidades peculiares.
Também a escrita é particularmente fascinante, com o seu delicado equilíbrio entre as memórias de infância de Stan e a crueldade implacável das montanhas. Stan, a criança e Stan, o explorador são duas pessoas diferentes movidas pelas mesmas aspirações. E, assim, há uma espécie de ligação entre os dois lados da história - um elo nascido das memórias e da passagem do tempo, mas também da mesma voz melancólica e introspectiva que conta esta fascinante história.
Um último detalhe que importa mencionar é o facto de, apesar de ser composto por grandes medidas de tristeza, conflito e devastação, existe também neste livro um pequeno, mas bastante delicioso espaço para o humor. Yuri é uma... personagem bastante peculiar, que, além de acrescentar leveza à história, cria um contraste poderoso, ao dizer as verdades que ninguém quer ouvir e ao ser o ponto de viragem que desencadeia uma mudança colossal nos acontecimentos. Um papel bastante grande... tendo em conta quem ele é.
Tristeza e esperança, memória e esquecimento, um objectivo e a absoluta devastação de um sonho - são estes os elementos que compõem esta história. Um livro feito de sonhos e tragédias, grandes e pequenas, escrito com sentimento, alma... e esperança. Uma magnífica história.

Título: A Hundred Million Years and a Day
Autor: Jean-Baptiste Andrea
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

10 Minutos e 38 Segundos Neste Mundo Estranho (Elif Shafak)

Há quem diga que, após a morte, o cérebro pode permanecer activo durante dez minutos e trinta e oito segundos. O que dá forma um enigma: o que passará pela mente do morto durante esse período de tempo? E se a mente ainda está activa, estará realmente morto? Leila Tequila acaba de descobrir as respostas, ainda que jamais possa vir a partilhá-las com alguém. Foi assassinada. E, nos seus últimos dez minutos e trinta e oito segundos, vê a história da sua vida e os momentos que a definiram. Mas a história não acaba com o esgotar do seu tempo. Apesar de tudo, deixou cinco amigos para trás. Cinco amigos que não estão dispostos a aceitar que a sua melhor amiga acabe num cemitério para rejeitados...
Embora tenha no cerne um homicídio, não é em torno desse mistério que esta história é construída. O crime em si é apenas um ponto de partida: para as memórias de Leila, para a acção dos amigos e para o retrato de uma sociedade onde aqueles que são diferentes não só não têm lugar como se tornam alvos a abater. Não se trata, pois, da resolução do grande mistério de quem matou Leila Tequila, sendo que esta parte da história acaba até por passar para um segundo plano que, gradualmente, se transforma em esquecimento (o que não quer dizer que não haja respostas). Mas faz todo o sentido que assim seja, tendo em conta a história da protagonista e sobretudo o mundo em que se move.
Outro ponto particularmente marcante é a teia de laços e de memórias que é o verdadeiro cerne deste livro. De laços familiares conturbados, feitos de segredos e fundamentalismo, de tradições obscuras e de fugas que acabam por conduzir a sítios piores. De laços de amizade também, do tipo profundo e inabalável que une os rejeitados, os que não pertencem e que, por isso, precisam de todas as forças que consigam encontrar. E de um amor condenado ao fracasso, feito de idealismo e do duro choque com a realidade. Laços profundos, memórias marcantes e uma história que não termina apenas na morte anunciada das primeiras páginas.
Mas há ainda um outro laço a unir todos os elementos: o laço das palavras. De uma escrita que é ao mesmo tempo poética e fluida, nostálgica e intensa, capaz de empolgar nos momentos de perigo e de mergulhar nas profundezas das mais conturbadas emoções. Há beleza e equilíbrio nas palavras e uma espécie indescritível de alma que faz com que as personagens ganhem vida, quase como se fossem velhas conhecidas.
E assim se forma uma imagem notável, de um livro que é ao mesmo tempo o retrato de uma sociedade de tradições e julgamentos constantes, a história de uma vida feita tanto de sombras como de exuberância e a construção de uma amizade que perdura para além da morte. Melancólico e fascinante, misterioso e surpreendente, e acima de tudo maravilhosamente escrito, um livro memorável em todos os aspectos. Muito bom.

Autora: Elif Shafak
Origem: Recebido para crítica

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Kick-Ass: A Miúda Nova (Mark Millar e John Romita Jr.)

Patience Lee acaba de regressar do Afeganistão para descobrir que, antes de fugir com a nova namorada, o marido lhe deixou a vida virada do avesso. Com dívidas astronómicas para pagar, Patience vê-se reduzida a duas opções: trabalhar para os criminosos da sua zona ou tirar-lhes o dinheiro de outra forma. Com um fato, uma máscara e os conhecimentos que adquiriu no exército, Patience constrói uma nova identidade e começa a fazer planos. O problema é quando os criminosos começam a retaliar...
Apesar da inevitável relação com o Kick-Ass original - que implica, obviamente, o fato, a máscara e o nome - esta é uma história totalmente independente, ainda que haja algumas semelhanças entre os dois protagonistas. Patience está bem longe de ser uma miúda vulnerável, pelo menos no aspecto físico, mas tem grandes problemas para resolver e também o coração no sítio certo. E, não havendo qualquer relação em termos de história, não é preciso conhecer o outro Kick-Ass para desfrutar deste livro, mas não deixa de ser interessante ver os pontos em comum.
À semelhança do outro Kick-Ass, também Patience tem tendência para se meter em situações das quais é complicado sair, o que significa que também aqui há uma boa dose de pancadaria envolvida. Mas, mais do que as cenas de acção, que se destacam sobretudo pelo movimento e... bem, pela ocasional abundância de sangue... é o percurso pessoal que envolve estas cenas dramáticas que faz com que, além de ser empolgante, esta história sobressaia também pelo lado emocional forte (ainda que relativamente discreto). O regresso para junto dos filhos acaba por se tornar em algo diferente - e é difícil não sentir também um pouco do desalento da protagonista.
É, aliás, deste desalento que nasce a ambiguidade moral que se manterá ao longo de toda a história, ainda que também presente de forma discreta, dada toda a dimensão das confusões em que Patience se mete. A decisão de roubar criminosos para benefício próprio (ainda que parcial) não é fácil de situar em termos de barreira entre o bem e o mal. E, curiosamente, esta mesma ambiguidade parece surgir também noutra personagem que, bastante impiedosa no geral, toma uma decisão peculiar quanto a modos de pagamento.
É, ainda assim, sobretudo a acção que se destaca, pelo que importa salientar uma vez mais dois aspectos a nível visual: o movimento, que faz com que as cenas de pancadaria quase pareçam saltar da página, e a expressividade das feições, que, no caso de Patience, é muitas vezes mais eloquente do que qualquer diálogo. Numa história em que sangue, explosões e porrada contrastam com uns quantos dilemas interiores, esta vida que transborda das páginas e que contrasta com o sombrio dos tons é crucial para o impacto da leitura.
Cheio de acção e de intensidade, trata-se de uma história de super-heróis em que a protagonista não tem super-poderes nem julga ser assim tão heróica. E é precisamente isso que a torna tão interessante - e também o que torna tão memorável esta agitada e empolgante aventura.

Título: Kick-Ass: A Miúda Nova
Autores: Mark Millar e John Romita Jr.
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O Enigma do Quarto 622 (Joël Dicker)

Um cadáver encontrado num quarto de hotel após a grande festa anual de um conhecido banco suíço. Uma sucessão de laços e suspeitas que acaba por desvendar outro tipo de crimes, mas deixa sem resposta a identidade do assassino. E um escritor que, quinze anos após os acontecimentos, vai passar férias a esse mesmo hotel para lidar com um recente desgosto amoroso e a também recente morte do seu editor, acabando por se ver arrastado para esse antigo mistério. Três linhas que convergem para um mesmo mistério: o que aconteceu, afinal, no quarto 622? E quem é o assassino? A resposta virá de onde menos se espera - tal como todos os passos até a alcançar.
Antes do mistério central propriamente dito - e que mistério! - há um aspecto que importa salientar em toda esta história, pela forma como transforma tudo num percurso mais pessoal. A história central pode girar em torno do banco Ebezner e das suas intrigas, mas desde a primeira aparição do escritor - que, curiosamente, se chama Joël - que se torna evidente que haverá também um percurso pessoal para este autor tornado personagem. Das memórias do editor à imersão no processo criativo, este livro é ao mesmo tempo criação e porta de entrada para a mente do criador. E isso é, por si só, algo de fascinante.
Também absurdamente fascinante é a sucessão de segredos, intrigas e revelações que define o ritmo de todo o enredo. Desde os primeiros parágrafos que tudo está envolto em mistério, mas cada novo desenvolvimento vem acrescentar mais camadas de intriga, mais suspeitas, mais possibilidades. E, como se não bastasse esta alucinante sucessão de reviravoltas nos acontecimentos, também as próprias personagens vão sofrendo mutações - na forma como as vemos e na sua própria natureza. A mais camaleónica de todas é, naturalmente, Lev Levovitch, por razões que só a leitura poderá revelar sem estragar demasiadas surpresas. Mas todos têm os seus mistérios, desde Macaire com a sua vida dupla a Anastasia com os seus laços passados (e, sim, também com uma vida dupla), passando pelo aparentemente inofensivo Jean-Bénédict Hansen. E, além de muitos segredos, têm também personalidades marcantes, passados fascinantes e a capacidade de despertar sentimentos fortes, sejam de afeição, ódio ou aquela estranha impressão da literatura que é a personagem que "adoramos odiar".
E, finalmente, a escrita, com a sua capacidade de envolver tudo numa aura de mistério, de conferir aos grandes movimentos uma intensidade quase tangível e de evocar as emoções certas nos momentos certos, seja na intensidade de um grande confronto ou na profunda nostalgia de uma introspecção. Também nas palavras há beleza e mistério, movimento e coração - e aquele estranho fascínio que faz com que, pouco a pouco, a leitura se nos vá entranhando no pensamento para nunca mais de lá sair.
Tem mais de seiscentas páginas, mas é um daqueles livros em que as páginas parecem voar, tal é a vontade de continuarmos embrenhados nesta teia de intrigas, mistérios e emoção. Uma fascinante teia de segredos que, associada ao percurso pessoal das personagens e à revelação de outro tipo de mistério - o da criatividade -, torna este enigma absolutamente brilhante. Foi o primeiro livro que li deste autor. Não será certamente o último.

Autor: Joël Dicker
Origem: Recebido para crítica

domingo, 16 de agosto de 2020

The Witch House (Ann Rawson)

Aviso prévio: esta opinião faz parte da minha participação na blog tour do livro The Witch House, daí que esteja escrita também em inglês. Para a versão portuguesa, basta andar um bocadinho mais para baixo.

Alice Hunter has just recovered her freedom after a mental breakdown, but her life is, once again, about to collapse. Harry Rook, a good friend and one of her trustees, has been murdered and Alice found the body. Given her past and her financial situation, Alice soon becomes prime suspect. But how can she prove her innocence when her mind might very well be playing tricks on her? And there are so many secrets in her grandmother’s past. Secrets that now seem to have invaded her life until she can solve them.
It’s unbelievably easy to enter this story and its main character's mind. The hard part is actually to get out. A few paragraphs are enough to get us hooked on Alice’s story, with her doubts, vulnerabilities and secrets. And, as the plot progresses, the intensity of it all keeps growing, culminating in an absolutely brilliant ending, that shows every character’s true colours while still leaving a few little things for us readers to imagine.
There’s also a delicate balance of many different elements. The supernatural part coexists in a quite effective equilibrium with plots and acts that are a lot more mundane, but also quite unexpected. Alice’s personality, a perfect mix of strengths and vulnerabilities, makes her the kind of character that is simultaneously a well of possible mysteries and the kind of soul that easily generates empathy. And every other character has its own share of humanity: strengths and flaws, things that inspire love and hatred. As for the relationships... well, they are full of surprises.
And there’s the writing itself. Alice’s perspective shows us a vulnerable, sometimes perplexed woman in the middle of a chaos that might – or might not – be of her own making. This transpires not only from the events, but from the words themselves. There is beauty, introspection, doubt, confusion, love, nostalgia... and fear. There’s feeling, in other words, in every paragraph of this book. And this, associated with the intensity of the plot and the emotional bonds that unite the different characters... makes for a quite brilliant book.
Dark, intense and full of mysteries, but also full of courage, vulnerability and affection, this is not just a tale of murder or witches. It is that too, but, above all, it is the tale of a young woman finding her place in the legacy of her memories. Beautifully written, with a fascinating cast of characters and surprising from the first to the last page, this is definitely a book to remember. Absolutely brilliant.

Alice Hunter acaba de recuperar a sua liberdade após uma crise de saúde mental, mas a sua vida está mais uma vez prestes a desabar. Harry Rook, um bom amigo e um dos responsáveis pelo seu fundo fiduciário, acaba de ser assassinado e foi Alice a encontrar o corpo. Tendo em conta o seu passado e a sua situação financeira, Alice não tarda a tornar-se a principal suspeita. Mas como pode provar a sua inocência quando é bem possível que a sua mente lhe esteja a pregar partidas? E há tantos segredos no passado da sua avó. Segredos que parecem ter agora invadido a sua vida até que ela os possa resolver.
É incrivelmente fácil entrar nesta história e na mente da protagonista. Na verdade, difícil é mesmo sair. Bastam alguns parágrafos para se ficar viciado na história de Alice, com as suas dúvidas, vulnerabilidades e segredos. E, à medida que o enredo avança, a intensidade continua a crescer, culminando num final absolutamente brilhante, que mostra quem são realmente as várias personagens, deixando, ainda assim, algumas pequenas coisas à imaginação do leitor.
Existe também um delicado equilíbrio entre vários elementos diferentes. A parte sobrenatural coexiste num equilíbrio bastante eficaz com enredos e acções bastante mais mundanas, mas também bastante inesperadas. A personalidade de Alice, uma mistura perfeita de forças e vulnerabilidades, faz dela o tipo de personagem que é simultaneamente um poço de possíveis mistérios e o tipo de alma que facilmente gera empatia. E todas as outras personagens têm também a sua parte de humanidade: forças e fraquezas, coisas que inspiram amor e ódio. E quanto às relações... são cheias de surpresas.
E há depois a própria escrita. A perspectiva de Alice mostra-nos uma mulher vulnerável e, por vezes, desconcertada no meio de um caos que pode - ou não - ter sido criado por ela. Isto torna-se evidente não só a partir dos acontecimentos, mas também das próprias palavras. Nelas, há beleza, introspecção, dúvida, confusão, amor, nostalgia... e medo. Há sentimento, por outras palavras, em cada parágrafo deste livro. O que, associado à intensidade do enredo e aos laços emocionais que unem as diferentes personagens... dá origem a um livro bastante brilhante.
Sombrio, intenso e cheio de mistério, mas também cheio de coragem, vulnerabilidade e afecto, não se trata apenas de uma história de bruxas ou de homicídio. Também o é, mas, acima de tudo, é a história de uma jovem em busca do seu lugar no legado das suas memórias. Maravilhosamente escrito, com um fascinante conjunto de personagens e surpreendente da primeira à última página, é decididamente um livro para recordar. Absolutamente brilhante.

Título: The Witch House
Autora: Ann Rawson
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa (Rosa Maria Martelo)

Poder-se-á, talvez, imaginar a poesia como um acto solitário de criação, mas, se percorrermos a obra dos diferentes autores ao longo do tempo, haverá certamente pontos de ligação. Nalguns casos, serão mais discretos, noutros um diálogo aberto e franco. E é este diálogo mais ou menos evidente que serve de base a esta antologia, onde os poemas de diferentes autores (ou, por vezes, diferentes poemas de um mesmo autor) criam laços de proximidade e comunicação. O resultado é uma forma um pouco diferente de ler poesia, em que cada poema vale por si mesmo, mas surge também como parte de uma relação maior.
Um dos aspectos mais interessantes desta antologia - além da própria premissa, naturalmente - é a visão de intemporalidade que resulta da leitura deste conjunto. A diferença entre as partes de alguns destes diálogos chega a ser de séculos e, ainda assim, o elo de ligação continua a ser claríssimo. Forma-se, pois, uma impressão marcante: a de versos, imagens e cadências que perduraram ao longo dos séculos para adquirir depois novas formas nas mãos de outros autores.
Nem todos os diálogos têm um intervalo tão vasto a separá-los, havendo inclusive casos em que os dois poemas pertencem ao mesmo autor. Ainda assim, podem as diferenças ser menores em termos de linguagem, mas a sensação de partes comunicantes - e a resultante familiaridade - continua bem presente. Do poema inicial partem novas construções, novos ritmos e novas imagens, mas existe sempre um sentimento de pertença no todo.
E há, claro, a sempre fascinante sensação de descoberta que se tem ao ler uma antologia. Alguns poemas podem ser já conhecidos, mas nem todos o serão certamente. Também neste aspecto este livro é uma revelação, onde, a par dos nomes mais que conhecidos estudados até na escola, surge um vasto conjunto de autores e de obras e uma grande vontade de as descobrir.
Vasto e fascinante na sua evocação de diálogos poéticos, trata-se, pois, de um livro cativante em múltiplos aspectos: na intemporalidade dos diálogos, na conjugação de tempos e de estilos e sobretudo na mistura de familiaridade e descoberta que fica da leitura destes poemas. Para ler de ponta a ponta e para revisitar muitas vezes - ao ritmo da vontade de dialogar também com a poesia.

Autora: Rosa Maria Martelo (escolha e apresentação)
Origem: Recebido para crítica

Divulgação: Novidades Saída de Emergência

Inglaterra, 1879. Annabelle Archer, uma jovem inteligente mas sem posses, é das primeiras estudantes femininas da conceituada Universidade de Oxford. A bolsa de estudos que lhe foi atribuída exige que ela recrute homens de influência para defender a causa do movimento sufragista. O seu alvo: o frio e calculista duque de Montgomery, responsável pela política da Grã-Bretanha.
O duque fica horrorizado ao descobrir que um esquadrão sufragista se infiltrou na sua casa, mas a real ameaça são os seus sentimentos impossíveis pela bela Annabelle. No entanto, Montgomery não seria o maior estratega do reino se não conseguisse virar a situação a seu favor e confrontar Annabelle com uma proposta muito diferente…
Presa numa batalha entre desejo crescente e atracção impossível, Annabelle terá de aprender exactamente o que é necessário para… derrubar um duque. 

Depois da morte do rei Alfredo, os seus dois filhos governam os territórios do Wessex e da Mércia, que vivem numa frágil paz. Uhtred, o grande guerreiro, controla a parte norte da fortificada cidade de Chester. Mas ninguém os poderá preparar para a tempestade que está prestes a abater-se sobre eles.
Liderados por Ragnall Iverson, o temido guerreiro viking e líder implacável, os nortenhos, aliados aos irlandeses, aproximam-se em força a coberto da noite, mas ninguém sabe o que pretendem. Atacar Chester? Pilhar a Mércia? Controlar o conturbado reino da Nortúmbria?
Na luta entre dever familiar e lealdade aos guerreiros, entre ambição pessoal e compromissos políticos, não há um caminho fácil. Mas se há uma saída, só um homem com a coragem de um verdadeiro guerreiro é capaz de a encontrar.Este homem é Uhtred, e este momento é decisivo para o seu destino.

Quando Gabriel e Julia Emerson vêem pela primeira vez a filha recém- -nascida, Clare, percebem que a sua vida nunca mais será a mesma. A prioridade de Gabriel é a família, especialmente a filha, mas um convite súbito e inesperado para dar uma série de conferências no estrangeiro – uma oportunidade única para a sua carreira – coloca-o perante um dilema. Hesitante em aceitar, uma vez que isso significa deixar a mulher e a filha em Boston, Gabriel oculta esta oportunidade de Julia, ignorando que a sua mulher também esconde um segredo. Quando surge uma situação assustadora que ameaça os Emerson, ambos terão de fazer sacrifícios. Com a família em perigo, a questão iminente permanece: será que Gabriel vai partir para o estrangeiro, deixando Julia e Clare vulneráveis em Boston, ou deixará passar uma oportunidade única de forma a garantir a segurança da sua família?

Os romanos derrotaram a aliança rebelde, deixando Calgus, senhor das tribos do Norte, prisioneiro dos líderes tribais que antes liderara. Mas o novo líder romano não lhes dará descanso. Ele concebe um plano audacioso para capturar Dinpaladyr, a fortaleza de lanças, e entregá-la nas mãos de um aliado.
Marcus Aquila – movido pelo desejo de vingar a morte de um dos seus melhores amigos – faz parte de um grupo de infantaria especialmente escolhido para tomar a fortaleza antes que o exército rebelde a alcance. O jovem acredita que o seu disfarce como Centurião Corvus da Segunda Coorte dos Tungros permanece intacto. Mas nada detém a engrenagem do Império. De Roma foram enviados dois agentes para matar o centurião, assassinos impiedosos que sabem quem ele é e quem são os seus amigos.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Raízes (The Lisbon Studio)

Raízes. As que moldaram aquilo em que nos transformámos. As que fizeram com que o tempo parasse e voltasse a andar. As de um legado passado através das gerações. Ou as das plantas que nos dão vida e que o caos do mundo parece querer destruir. Quais são as mais importantes? Quais as que nos movem? É destas e de outras raízes que é feito este conjunto de histórias que, através de paisagens reais e emocionais, presentes, futuras ou mitológicas, nos leva a questionar e a revisitar as nossas próprias raízes.
Uma das primeiras coisas a despertar curiosidade neste livro, antes mesmo de iniciar a leitura, é o potencial das possibilidades. Reúne diferentes autores em torno de um mesmo tema, o que só pode resultar em visões muito diferentes. É, por isso, inevitável não querer descobrir as diferenças, tanto a nível de temas explorados e de histórias construídas como do aspecto visual. E há um pouco de tudo: um futuro distópico, um crescimento pessoal, um silencioso passar do tempo em imagens (e em imagens marcantes), um mundo construído em visões proféticas e até a descoberta de que nada nem ninguém é o que parece.
Também a arte reflecte esta diversidade. Nalguns casos, nem sequer há texto e são simplesmente as imagens que nos contam uma história. Noutros, o texto ocupa mais espaço, contrapondo à memória descrita um conjunto de memórias visuais fáceis de reconhecer. Noutros ainda, o misticismo ganha vida em imagens tão herméticas quanto fascinantes. Mas em todos há equilíbrio. Não importa se há mais ou menos texto, mais ou menos diálogos - tudo tem a medida certa para a história que representa.
Claro que, sendo uma antologia, é inevitável que as histórias que a compõem sejam relativamente curtas, o que, nalguns casos, deixa uma certa curiosidade insatisfeita relativamente ao futuro das personagens. São, ainda assim, histórias completas, todas elas com princípio, meio e fim adequados, deixando possibilidades em aberto, mas alcançando uma conclusão essencial. E quanto ao que fica por dizer... bem, podemos sempre imaginar.
Simples quanto baste, mas fascinante na sua multiplicidade de visões, trata-se, pois, de uma belíssima oportunidade de ficar a conhecer alguns dos talentos da BD nacional. Além, claro, de uma leitura cativante, surpreendente em múltiplos aspectos e bastante memorável nos seus melhores momentos. Vale bem a pena conhecer estas histórias.

Título: Raízes
Autores: The Lisbon Studio
Origem: Recebido para crítica

domingo, 9 de agosto de 2020

Pérola do Dia: Reflexão (Marcus Garcia de Almeida)

O pensamento é uma constante. Molda tudo o que fazemos, as questões que nos colocamos, o tipo de decisões que tomamos e a forma como interagimos com o mundo e com o nosso próprio interior. O pensamento molda atitudes e acções - e é esse o ponto de partida para este livro, que, através de um conjunto de breves reflexões, procura ponderar as múltiplas facetas da vida.
Antes mesmo de mergulhar no conjunto de reflexões que compõem este livro, é o aspecto visual que fica na retina. A abundância de ilustrações, que vão de paisagens a expressões de rostos e cenas do quotidiano, torna o livro apelativo ao primeiro contacto. Além disso, as imagens conseguem complementar o texto e acrescentar profundidade ao que é, essencialmente, uma reflexão concisa, apelando não só ao aprofundamento, mas também à interpretação pessoal do equilíbrio entre texto e imagem.
Quanto aos textos propriamente ditos, sobressai, em primeiro lugar, a relativa brevidade, que, ao cingir-se aos pontos essenciais, permite despertar a ponderação, levantar alguns pontos de vista pertinentes e deixar o resto à avaliação do leitor. Afinal, é quase inevitável que, destas perspectivas gerais, surjam pontos de vista divergentes, consoante o ponto de vista de cada leitor. Fica, pois, uma impressão de equilíbrio entre a concisão das ideias expressas e as amplas possibilidades de aprofundamento que são deixadas ao cuidado de quem lê estas reflexões.
Importa, por último, referir que se trata do primeiro volume do que pretende ser uma colecção maior em que, ao que tudo indica, serão aprofundados temas mais específicos após esta visão mais geral. Assim, se é certo que certos temas parecem estranhamente ausentes do que parece ser uma ampla reflexão sobre a vida, é porque tudo indica que haverá outros volumes para os explorar mais a fundo.
Visualmente apelativo, cativante na escrita e bastante equilibrado na forma como associa às linhas essenciais de um texto conciso o apelo à reflexão do próprio leitor, trata-se, pois, de um livro interessante e do início de uma colecção que promete sê-lo ainda mais. Uma boa leitura, em suma, das que nos fazem pensar.

Título: Pérola do Dia: Reflexão
Autor: Marcus Garcia de Almeida
Origem: Recebido para crítica

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A Filha do Comunista (Aroa Moreno Durán)

Katia é a filha mais velha de um casal de emigrantes espanhóis que decidiu esquecer o passado e construir uma nova vida na Berlim Oriental. Nunca conheceu outra vida, pelo que tudo lhe parece relativamente normal. Mas, pouco a pouco, Katia vai crescendo, notando as pequenas estranhezas da sua vida familiar. E, um dia, o seu olhar pousa num homem que pertence claramente ao outro lado e com quem sabe que não deve estabelecer contacto... mas não consegue evitar. Quase sem dar por isso, Katia tornou-se mulher e está agora a descobrir o amor. Mas amar Johannes significa deixar para trás a sua família e passar também para o outro lado - independentemente das consequências que isso possa ter...
Provavelmente o aspecto mais marcante deste romance é a capacidade de abranger, nas suas cerca de cento e trinta páginas, uma história pessoal, um entrelaçado de relações familiares e também uma visão bastante precisa, ainda que deliberadamente limitada pela perspectiva da protagonista, do contexto político em que decorre. A história é, acima de tudo, pessoal, mas o contexto político assume um papel de relevo, não só devido às origens da família, mas também ao peso que atribui às derradeiras revelações.
Outro aspecto particularmente bem conseguido é a forma como o próprio registo vai acompanhando o crescimento da protagonista. A pequena Katia dos primeiros capítulos compreende muito menos do que a rodeia do que a Katia das últimas páginas, o que é bastante evidente na voz que a autora lhe confere. Tem também uma cadência peculiar que parece reflectir o ritmo dos pensamentos de Katia, incluindo frases aparentemente incompletas - ou premeditamente inacabadas - que espelham na perfeição o profundo caos mental que, às vezes, se apodera da protagonista.
Claro que esta perspectiva pessoal implica, por vezes, algumas questões aparentemente deixadas em aberto. O passado dos pais de Katia é maioritariamente deixado na penumbra e mesmo o que acontece depois da sua partida é visto de forma algo parcial - ainda que haja efectivamente umas quantas revelações poderosas à espera no final. Fica, ainda assim, uma curiosa impressão: a de que, embora fique uma certa curiosidade insatisfeita sobre estas outras personagens, esta ausência de respostas faz todo o sentido... pois também Katia não as tem.
Breve, mas surpreendentemente complexo. Pessoal, mas curiosamente preciso na construção do contexto em que as personagens se movem. Soturno, mas com rasgos de profunda emotividade. Assim é este romance de crescimento e de perda, feito das medidas certas de amor e de introspecção. Breve, sim, mas memorável. E uma boa leitura, sem dúvida.

Autora: Aroa Moreno Durán
Origem: Recebido para crítica

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Harrow County 8 - Um Último Regresso (Cullen Bunn e Tyler Crook)

Convencida de que os seus poderes não bastariam para enfrentar a temível Hester Beck, Emmy fez uma escolha terrível - e, ao fazê-lo, acordou a bruxa. Agora, o confronto há tanto tempo previsto tornou-se finalmente inevitável. Mas também Hester adquiriu novos poderes e a sua capacidade de controlar os habitantes de Harrow County faz com que Emmy tenha de enfrentar até os seus amigos. Só há uma forma de vencer a bruxa de maneira a que ela nunca mais consiga voltar... mas implica um grande sacrifício...
Desde os primeiros volumes que todo o percurso desta série era, de certa forma, um prenúncio do derradeiro confronto que estava para vir. Inicialmente considerada como sendo Hester renascida, teria de ser Emmy a conduzir esta história à derradeira conclusão. Mas importa dizer que este facto é mesmo o único elemento previsível desta história e que o caminho que conduz até lá sempre esteve repleto de surpresas. Este volume final não é excepção. Com um alucinante crescendo de intensidade, em que o horror se funde com rasgos de surpreendente ternura e melancolia, conduz a história aos seus derradeiros momentos de uma forma verdadeiramente inesquecível.
Sendo o confronto final, é apenas natural que esteja repleto de grandes momentos - e também de movimento. Não é propriamente fácil destacar os momentos mais marcantes a nível visual sem fazer também referência a certos desenvolvimentos decisivos, mas sobressaem, com a necessária ambiguidade, certos rasgos de vermelho que realçam alguns dos actos mais terríveis, a penumbra dominante que anuncia que as trevas chegaram finalmente e os surpreendentes rasgos de cor - e de passado - que vêm inspirar em Emmy a breve quietude necessária para tomar as suas decisões. Quanto ao confronto em si... bem, é bastante impressionante, não só pelos grandes planos que realçam o poder das protagonistas, mas também pela surpreendente e algo perturbadora expressividade das diferentes assombrações.
E há o final, naturalmente, que dificilmente poderia ser mais adequado. A profunda ligação de Emmy a Harrow County, associada a tudo aquilo por que passou, criam um elo emocional que confere a esta história sombria e misteriosa uma estranha profundidade emocional. E é precisamente essa ligação que faz com que a forma que Emmy encontra para pôr fim a toda a situação seja tão adequada: já antes houve conflitos e resoluções. Mas este tem de ser o último... certo?
Foram oito volumes de mistério, horror, fascínio e ternura. Oito volumes daqueles que se devoram num ápice. E, terminada esta história, ficam sobretudo duas coisas: a inevitável saudade, face à personagem forte e emocionalmente intensa que é Emmy, e a sensação de uma aventura bem vivida, cheia de momentos marcantes e de gente memorável. Termina aqui esta série... mas vai ficar na memória durante muito tempo.

Título: Harrow County 8 - Um Último Regresso
Autores: Cullen Bunn e Tyler Crook
Origem: Recebido para crítica

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Kitty e a Perseguição nas Copas das Árvores (Paula Harrison e Jenny Løvlie)

Desde que começou a viver aventuras ao luar com a sua equipa felina, Kitty sente-se cada vez mais confortável com os seus poderes. E vem aí uma nova surpresa, com a entrada em cena de Ozzy, um rapaz com poderes semelhantes aos da Kitty. Desta vez, Kitty e os seus gatos vão ter companhia na sua aventura... e bem precisam. Há um cão a espalhar o caos na padaria e Kitty precisa de perceber porquê...
Ler as aventuras da Kitty é como um breve regresso a tempos mais inocentes. Tudo nestas histórias é muito simples, desde o motivo da aventura à forma como os elementos peculiares são introduzidos. E, ainda assim, flui tudo de uma forma tão natural que é quase impossível não sentir, durante a leitura, que tudo é perfeitamente possível, incluindo uma menina com poderes felinos e um rapaz com poderes de ave nocturna, capazes ambos de falar com os animais e de resolver, sem que ninguém se aperceba, o tipo de confusão que pode não ser globalmente grave, mas que influencia o equilíbrio das coisas.
Existe também uma boa dose de ternura, a começar pelos gatos da Kitty, passando pela criação de uma nova amizade (altos e baixos incluídos) e sem esquecer os surpreendentemente fofos protagonistas desta aventura específica. Além da aventura em si, esta abundância de afecto consegue reforçar em simultâneo a envolvência do enredo e a sempre presente mensagem positiva sobre a importância da amizade e a construção de laços fortes.
E, claro, as ilustrações são sempre belíssimas, com os seus tons nocturnos e rasgos de laranja felino a dar mais vida a uma história a que, apesar da relativa brevidade, nunca falta movimento e emoção. Além de cativante, trata-se também de um livro visualmente bonito, em que as ilustrações complementam na perfeição a simplicidade do texto.
Simples, ternurenta e visualmente encantadora, trata-se, pois, de uma história que, com o seu equilíbrio entre emoção e aventura, facilmente nos transporta de regresso à infância. E, sendo assim, é também, naturalmente, uma belíssima história para despertar a imaginação dos mais novos. E o gosto pela leitura, claro!

Autoras: Paula Harrison e Jenny Løvlie
Origem: Recebido para crítica

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Perdida (P.C. Cast + Kristin Cast)

Kevin regressou ao seu mundo, decidido a assumir o papel que lhe está destinado e a juntar-se ao combate contra Neferet, sejam quais forem as consequências. Mas o caminho não será fácil. Primeiro, tem de convencer a Resistência de que é, de facto, diferente. Depois, tem de inventar um plano. Entretanto, o mundo de Zoey parece ter regressado à normalidade, mas algo persiste em atormentá-la. Não saber como vão os progressos do irmão gera em si uma preocupação constante - até porque Zoey sabe como ninguém aquilo de que Neferet é capaz. E, quando começa a sentir que Kevin está a enveredar por caminhos perigosos, Zoey vê-se sem escolha: desta vez, tem de ser ela a viajar para o Outro Mundo.
Parte do que torna esta nova série tão interessante é o delicado equilíbrio entre familiaridade e evolução que se sente em comparação com a série anterior. Mantêm-se muitas das mesmas características: a leveza, as peculiaridades da relação entre as personagens, os rasgos de humor e dramatismo e a fórmula essencial dos rituais. Mas há como que uma evolução global, não só na expansão para dois mundos - diferentes, ainda que com paralelismos óbvios - mas sobretudo no crescimento das personagens. Claro que as figuras do Outro Mundo são novas, embora tenham também um interessante percurso de crescimento, mas é nas que vieram da série original - Zoey, Afrodite, Stark, Refaim - que se nota uma verdadeira evolução. Evolução essa que, conjugada com a existência de homólogos no Outro Mundo, cria contrastes bastante poderosos.
Com o crescimento, vieram também responsabilidades, por isso é também particularmente notável a percepção de relações e comportamentos mais adultos. E, ainda assim, não deixa de haver espaço para o humor e para a camaradagem, mesmo quando a situação parece sombria. É esta, aliás, uma das maiores forças destes livros: a capacidade de introduzir leveza nas situações mais inesperadas, que acabam por ser também, surpreendentemente, as mais adequadas.
Também a própria escrita mantém a leveza, com um registo directo quanto baste, mas particularmente expressivo no que toca às descrições de seres e rituais e, sobretudo, nos grandes momentos de emoção. Há uma estranha beleza na forma como a magia é descrita e também isto cria um contraste: auras de poder que parecem emanar das partes mais dramáticas e de ligeireza nos momentos de simples amizade.
Familiaridade e evolução num equilíbrio certeiro e cativante: assim se descreve mais este regresso ao mundo da Casa da Noite. Um mundo feito de magia e de mistério, de sombras e de luz e, acima de tudo, de amizades profundas e amor... sempre amor. É sempre um prazer regressar à companhia destas personagens. Que estão cada vez melhores.

Título: Perdida
Autoras: P.C. Cast + Kristin Cast
Origem: Recebido para crítica