quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Balanço de 2021

2021. O ano da peste, parte dois, e em muitos aspetos semelhante ao anterior. Mas, mesmo em tempos de pandemia, de incertezas, confinamentos e até talvez de um certo caos, existem sempre momentos de luz. E querem melhor para nos lembrar de que um livro é sempre um bom amigo do que os momentos em que precisamos da companhia de uma boa história para nos transportar para outras paragens, para nos lembrar o que realmente importa e para nos apresentar gente fascinante? Pois o meu ano não foi propriamente o mais prolífico de sempre em termos de leituras, até porque os dias continuam a ter só vinte e quatro horas, mesmo em anos longos como este, mas, com o simpático total de 176 leituras num ano, também não foi nada mau, pois não? E, como a qualidade é sempre mais importante do que a quantidade, deixem-me que vos diga que não faltaram leituras memoráveis. Principalmente - mas não só - estas dez.


É, de certa forma, inevitável que, quando leio um livro novo deste autor, ele acabe no topo das minhas listas de preferências. É que este livro não foi só a leitura do ano. É mais um belíssimo volume da que é provavelmente a minha série favorita de sempre. Com o seu protagonista brilhante, o enredo complexo, a intriga poderosíssima e uma voz absolutamente singular, tudo neste livro é irresistível. Tudo fica na memória, sejam os momentos de ternura ou os de devastação, os de esperança ou os de desolação. E é sempre um reencontro mágico, belíssimo. Prodigioso.

E por falar em séries favoritas... Tudo nesta série, e especialmente neste volume, é brilhante, a começar pelo facto de ser narrado pelo Mal. (Sim, com maiúscula.) E é diferente em todos os aspetos, do registo ao desenvolvimento das personagens, e sem esquecer a escrita como é natural. Viciante, implacável e todo ele uma enorme surpresa, é daqueles livros que nunca se esquecem, tanto pela história, como pelas estranhas emoções que desencadeia.

Ora, um livro sobre uma pandemia para ler em tempos... de pandemia. Só que esta pandemia é consideravelmente mais catastrófica e a forma impressionante que o autor encontrou para construir esta história, com as medidas certas de esperança e de devastação, mas sem falsas ilusões de um regresso ao antes, torna esta história, além de fascinante em tudo, verdadeiramente relevante na sua atualidade.

E voltamos às séries preferidas. Helen Grace é Helen Grace e jamais poderia faltar numa destas minhas listas. É uma série que nunca desilude e, com o seu ritmo viciante, as suas intrigas internas e o seu caso impressionante e cheio de adrenalina, este novo volume da série é, mais uma vez, M. J. Arlidge em toda a sua glória.

É o que o nome indica, um livro de conforto, sobre os pequenos confortos da vida, sobre os pequenos lampejos de luz que ajudam a seguir em frente quando a nossa própria pele se torna desconfortável, sobre o que nos torna humanos e sobre o que nos faz únicos. Focado no simples e essencial, mas belíssimo nas palavras e na mensagem, é um livro verdadeiramente reconfortante.

É uma releitura, mas uma releitura tão boa, tão satisfatória, que tinha de voltar a aparecer na lista. Afinal, não é todos os dias que uma pessoa se reencontra com o lendário André Marques-Smith. E é maravilhoso descobrir que, à segunda volta, a intensidade, o impacto emocional e a capacidade de surpreender se mantêm absolutamente intactas.

Se o romance original já é brilhante, esta adaptação não lhe fica atrás. Muito fiel ao original, ganha uma nova força com o poderoso impacto visual, que dá uma força explosiva a uma história que já é, por si só, muitíssimo intensa e relevante. É, de certa forma, também um reencontro, mas de uma forma nova e fascinante. Um livro belíssimo, em suma.

Há uma força singular neste livro, na forma como a história serve de base para percursos complexos e profundamente humanos, na beleza das palavras mesmo quando o que descreve é devastador e na forma como a ambiguidade moral abre caminho a uma poderosa reflexão. É um livro que se entranha discretamente, mas que fica na memória. E que, mais por exemplos do que por discursos, abre portas à instrospeção.

Dupla presença, pois claro. Porque, se a releitura nunca desilude, o mesmo acontece sempre que há um livro novo. Supera sempre as expetativas. Este mantém todas as qualidades de sempre: viciante, intenso, cheio de surpresas e de momentos marcantes. Ou não fosse o autor presença habitual nestas minhas listas.

E Monstress, naturalmente. Porque é mais uma daquelas séries que não podia falhar. Visualmente deslumbrante e poderoso nas suas intrincadas intrigas, é o tipo de história a que é sempre um prazer regressar. Mesmo quando o universo continua a expandir-se e o cenário global se vai tornando mais complexo. Porque a emoção está sempre lá, mesmo quando tudo parece estranho.

E foi assim mais um ano em leituras. Para o próximo, como sempre, parto sem grandes planos literários (até porque não faltarão, certamente, boas surpresas para descobrir), mas com a expetativa de continuar a ler coisas boas de todos os géneros e vozes.

Continuaremos a ver-nos por aqui. Até lá, feliz 2022!

domingo, 26 de dezembro de 2021

Jolly Jumper Já Não Responde (Guillaume Bouzard)

Jolly Jumper está diferente. Não reage, recusa-se a responder, parece desinteressado. Por isso, quando Lucky Luke recebe uma missão, conta que a nova aventura possa reatar os laços entre homem e o cavalo. Só que o cavalo continua a não responder. E a aventura não é bem o que parecia...
Provavelmente o elemento mais marcante deste livro é a omnipresença do humor. Carregadinho de momentos divertidos e de situações peculiares, todo ele é leveza e descontração, além de não faltarem diálogos capazes de arrancar gargalhadas. Além disso, esta constante leveza faz com que a história, apesar de relativamente curta, ganhe uma certa singularidade, pois a missão torna-se quase secundária às relações.
Do lado visual, sobressai um aspeto curioso, o de que cada uma destas homenagens tem um traço muito diferente, mas a aura das personagens permanece inconfundível. O rosto deste Lucky Luke é bastante diferente, por exemplo, do de O Homem que Matou Lucky Luke, mas é, ainda assim, perfeitamente reconhecível, ainda que as próprias personagens pareçam achar o contrário. E este traço mais leve contribui também para realçar a leveza do enredo.
Claro que, sendo um livro relativamente breve, e em que a missão parece passar, por vezes, para segundo plano, poderá parecer que alguns aspetos da aventura evoluem demasiado depressa. Mas faz um certo sentido, porque, olhando bem para a história, a verdade é que a missão não é mesmo o mais importante.
Leve, cativante e divertidíssimo, trata-se, em suma, de um encontro singular com o eterno cowboy mais rápido do que a própria sombra. E de uma aventura breve, mas certamente muito interessante. 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Feliz Natal


 Não falte ainda a luz e o calor dos dias
em que há um pouco mais de esperança
e um pouco mais de cor nos sonhos de cada dia.
Não falte o coração para abrir os braços
nem a memória para recordar os que são nossos
de alma, de afinidade, de coragem,
da vida que nos envolve os passos.
Não faltem ainda as histórias que nos confortam,
as palavras certas que nos acordam a alma
e nos lembram que a magia destes dias de luz
perdura um pouco por todos os dias.

Feliz Natal.

5 Noites até ao Natal (Jimmy Fallon e Rich Deas)

Já falta pouco para o Natal. As decorações estão por todo o lado, o mundo encheu-se de luz e está iminente a chegada do Pai Natal. E, ante toda esta emoção, como se faz para dormir as poucas noites que faltam? Bem, deixando o entusiasmo fluir... Pelo menos, é essa a estratégia do protagonista deste livro.
Parte do que torna este livro tão ternurento é a forma genuína como reflete o entusiasmo de muitas crianças por esta época do ano. Muitos de nós passaram por essa emoção... ou continuam a passar. E é fácil reconhecer essa expetativa nesta história.  Que é muito breve e muito simples, como seria de esperar, mas reflete perfeitamente o essencial.
Outra fonte de ternura, e é mesmo a ternura a alma deste livro, está nas ilustrações, cheias de expressividade e de emoção nos rostos, de cor e de beleza nos cenários, e de espírito natalício em todos os aspetos. É um livro bonito de folhear e de ler, e também isso o torna perfeito para partilhar com os mais novos.
Ainda uma última nota para referir a cadência do texto, que, apesar da brevidade, reflete com precisão o entusiasmo da espera no ritmo das palavras. É, aliás, uma experiência particularmente interessante lê-lo em voz alta, pois as frases têm um ritmo singular.
Integralmente feito da ternura e da expetativa que tão frequentemente associamos a este período, trata-se, em suma, de um bonito livro para partilhar com os mais pequenos. E para nos recordar a todos de tempos mais inocentes e ternos. Uma bela leitura natalícia, em suma.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Apneias Emocionais (Timothy Hagelstein)

Brilhos de encanto viajante e sombras de traumas passado. Evocações lendárias e históricas e introspeções pessoais e intransmissíveis. Poesia do imaginário e reflexão de convicções bem reais. Tudo isto faz parte deste livro, onde a poesia e as memórias singulares se repercutem em traços de união.
Algo que importa começar por dizer sobre este livro é que é inexoravelmente pessoal. Feito de uma poesia muito intimista, entrelaçada em notas e pensamentos baseados na experiência, é a voz da vida e da experiência do autor. Mas é também uma voz vasta e abrangente, que, na multiplicidade dos seus cenários, terá inevitavelmente algo de próximo. Podemos não partilhar de algumas ideias ou não conhecer algumas das experiências evocadas, mas há sempre um laivo de familiaridade. E, às vezes, torna-se muito próximo.
Também a estrutura contribui para realçar este registo intimista, com uma forma essencialmente livre, mas com a rima a surgir nos momentos certos e uma cadência que embala, a evocar como que uma viagem à memória. E somando a isto as citações e introspeções, fica quase a impressão de algo que, não o sendo, bem poderia ser também um diário.
É naturalmente inevitável que alguns textos deixem uma marca mais intensa do que outros. Mas este aspeto desperta uma impressão curiosa. Lido sequencialmente, este livro assemelha-se quase a uma viagem interior. Voltando aos momentos mais marcantes, é um reencontro e uma meditação.
Pessoal e intransmissível, mas capaz de gerar proximidade e um sentido de identificação, trata-se, em suma, de um livro intimista e envolvente. E principalmente cheio de emoção. 

sábado, 11 de dezembro de 2021

Gente Feita de Terra (Carla M. Soares)

Viúva há relativamente pouco tempo, Filomena não sabe muito bem o que fazer com a sua vida nem como se reconstruir. Por isso, volta-se para o passado, para a história da mãe, tal como a recorda e imagina. Brígida partiu jovem para África, apaixonada e com uma grande história de amor no pensamento. Mas o caminho viria a ser tudo menos fácil e o amor menos fiel e duradouro que imaginava. E será essa a história que a filha tentará reconstituir, procurando um lampejo de verdade onde se encontrar.
Parte do que esta história tem de mais belo é a forma como, numa história de vidas imperfeitas em tempos conturbados, onde não há espaço para trajetos de contos de fadas, há sempre uma capacidade intrínseca de realçar o mais marcante de cada personagem. Mesmo no caso daquelas que são mais fáceis de odiar do que de entender, há sempre um lado vulnerável que as aproxima e que realça uma existência para lá do julgamento inicial. E, por outro lado, as que mais empatia desperta, têm também as sua ambiguidades e imperfeições, o que só as humaniza.
Outra das grandes forças deste livro é, naturalmente, a sua voz singular e a forma como equilibra um registo intimista, nostálgico, poético, até, de vez em quando, com comentos de grande intensidade dramática e outros de surpreendente leveza. Tal como a vida real, também este romance é feito de grandes revelações e pequenos passos, de exteriorização e introspeção, de gritos e de silêncios.
Finalmente, importa ainda salientar a estrutura e a forma como oscila entre diferentes perspetivas e períodos temporais sem nunca perder a fluidez e a envolvência. Na verdade, sendo também um romance sobre memórias, estas deslocações no tempo fazem especial sentido, além de realçar as ligações e semelhanças entre as personagens.
Maravilhosamente escrito e com um enredo sempre cativante, complexo, como as pessoas, mas cheio de intensidade, trata-se, em suma, de um livro memorável em todas as suas facetas. E marcante, como as gentes que nele habitam.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

O Vendedor de Felicidade (Davide Calì e Marco Somà)

E se a felicidade se vendesse em frascos? Todos quereriam um pouco. E é isso que o senhor Pombo faz, vai de casa em casa a vender diferentes frasco
s de felicidade. Mas será mesmo possível? E que preço terá?
Parte do encanto deste pequeno livro - e é deveras encantador - está na assombrosa beleza das ilustrações. São hipnotizantes, cheias de pormenores e singularidades, de pequenas surpresas escondidas e, claro, de expressividade e ternura. É, pois, impossível não tirar prazer das páginas deste livro, da contemplação das imagens e da vastíssima vida que dão a uma história que é, na sua essência, muito simples.
E falemos então da história. É realmente muito breve e muito simples, como se quer num livro infantil, pois isso torna-a perfeita para ser lida em voz alta. E, ainda assim, se olharmos para a mensagem, não é assim tão simples. Paga-se pela felicidade? Quanto? Pouco? Demasiado? É uma questão importante e, curiosamente, talvez tenha mais impacto de uma perspetiva adulta. O que significa que não é só, afinal, um livro infantil.
Eis, pois, um livro muito breve e aparentemente simples, mas cheio de força e de beleza em todos os seus aspetos: história, mensagem e ilustrações. Perfeito para os mais pequenos, mas capaz de encantar qualquer olhar, uma surpresa memorável para leitores de todas as idades.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Dylan Dog - O Número Duzentos (Paola Barbato e Bruno Brindisi)

Antes de se tornar no detetive do pesadelo, Dylan Dog tinha outra vida e um grande amor pela frente. Mas tudo se desfez e agora o único refúgio que lhe resta é o álcool para lidar com as memórias e com a dúvida sobre o que fazer da sua vida. Só que, embora parecendo ter perdido tudo, Dylan não está tão só como imagina. As memórias do passado apontam-lhe uma possível vocação. E os laços que ainda duram do presente podem muito bem bastar para lhe dar razões para continuar... mesmo que essas razões impliquem também uma medida de tragédia.
Há algo de fascinante na forma como as aventuras de Dylan Dog vivem tanto do sobrenatural e do impossível como do absurdamente humano. É, aliás, surpreendente a forma como acabam por ser estas facetas mais humanas a entranhar-se na memória, mesmo quando tudo à volta é estranho e improvável. Ora, este Número Duzentos é provavelmente uma das mais humanas histórias deste detetive sobrenatural, debruçando-se menos sobre mistérios transcendentes e mais sobre as facetas mais duras da vida. É também uma porta para o passado do protagonista. E sendo Dylan Dog quem é... só pode ser impressionante.
Mantêm-se essencialmente as características que tornam cada uma destas aventuras tão interessante. Como habitual, trata-se de um percurso essencialmente independente, embora particularmente enraizado no passado e no futuro do protagonista. Mantém-se também - e a um nível particularmente elevado - o delicado equilíbrio entre humor, mistério e desolação. E, claro, mantém-se o fascínio das imagens, tanto nos cenários mais vastos, como na expressão dos rostos, que adquire neste livro também um impacto particular dadas as situações de várias das personagens.
Mas voltemos ao percurso específico desta história, para salientar, por último, um aspeto particularmente poderoso. É que nas suas sensivelmente cem páginas, carregadas de humor, de leveza e também do inevitável rasgo de aventura, cabem tantas questões e tão sérias que é impressionante a forma como tudo encaixa na perfeição. Do luto ante uma perda ao mergulho no abismo do vício, passando pela ambiguidade de assumir um papel em que não se acredita, há toda uma vastidão de questões relevantes e a intensidade com que surgem e com que se repercutem na história é simplesmente soberba.
Leve, mas profundo. Breve, mas vastíssimo. Cheio de pormenores e de vida, apesar das suas facetas sombrias. Assim é este novo portal para as profundezas da alma de Dylan Dog - intenso, irresistível, fascinante. E inesquecível, como sempre.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Profeta (Kahlil Gibran)

Durante muitos anos, esperou pelo navio que o levaria de regresso à sua terra natal, deambulando entre as gentes e contemplando-as. Agora, é tempo de partir. O povo que o acolheu, porém, tem dificuldades em aceitar essa verdade e pede um último dia da sua sabedoria. Fala-lhes, pois, o profeta. De verdades que, no fundo, já conheciam.
Parte do que constitui a grande beleza deste livro está no seu delicado equilíbrio entre brevidade e vastidão. Não chega sequer às cem páginas e, ainda assim, debruça-se sobre todas as facetas da vida, de forma concisa, é certo, mas precisa, profunda e focada no essencial.
Outra razão de beleza está na harmonia das palavras e em como parecem falar de dentro da página. É absurdamente fácil imaginar o profeta a falar às pessoas, ouvir a sua voz a discursar. E há tanto de beleza e de harmonia neste discurso que as frases facilmente se entranham na memória.
Ainda um último ponto a ponderar prende-se com a inevitável espiritualidade. Envolve uma certa medida de crença, mas sem os limites estritos de uma fé específica. E assim, facilmente fala a todo o tipo de convicções, de forma mais ou menos completa, mas sempre próxima e sempre marcante.
É uma leitura muito breve, mas cheia de material para reflexão. Uma visão singular, mas que fala às nossa próprias perceções. E uma voz belíssima, harmoniosa, sedutora, cheia de palavras e imagens memoráveis. Fascinante, em suma.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Armazém Central: Ernest Latulippe | Charleston (Régis Loisel e Jean-Louis Tripp)

Notre-Dame-des-Lacs sempre foi um sítio pacato... até ao dia em que as coisas começaram a mudar. Agora, há tensões no ar e dúvidas acerca do futuro. A partida de Marie para Montreal, sem qualquer indicação de quando poderá regressar, deixou os habitantes em alvoroço. Uns acham que é apenas justo. Outros sentem a sua falta. E todos começam a ver que a vida sem o armazém é mais difícil do que julgavam. Esperam que ela volte, e em breve. Mas uma coisa é certa: Marie até pode voltar de Montreal, mas levará consigo um pouco da nova liberdade que acaba de descobrir...
Chegados ao sexto e sétimo episódios desta série, existe já um conjunto de características que são, à partida expectáveis: o cenário vasto e tranquilo onde tudo acontece, o meio pequeno e coeso, onde todos sabem tudo e todos têm uma opinião a dar sobre todos os comportamentos, a forma como a mudança é interpretada como uma ameaça, para depois se revelar como algo diferente... É esta, de certo modo, a base de todos os volumes anteriores, e este não é exceção. Partidas e regressos, mudanças e reencontros e a introdução de novos elementos num cenário onde tudo muda, sem nunca perder de vista a base essencial.
Algo que também nunca deixa de cativar nestes livros é que, sendo embora uma história muito específica passada num espaço muito singular, tem, ainda assim, algo de comum a todos os meios pequenos. A união e a entreajuda quando alguém precisa, em contraste com a inevitável circulação de boatos e falatórios sempre que algo ou alguém não está de acordo com os padrões convencionais; a forma como certos locais se tornam ponto de encontro para toda a comunidade; e claro, a proximidade de um meio onde todos se conhecem. É uma história específica, mas onde é fácil reconhecer pontos de familiaridade, o que a torna ainda mais próxima. Além disso, sendo uma história que vive mais das relações entre as personagens do que dos grandes momentos, embora também os haja, esta afinidade emocional torna-se especialmente marcante.
É ainda - o que, aliás, é apenas expectável - uma história que vive tanto da imagem como da linguagem verbal. Claro que não faltam momentos notáveis no diálogo, que tem também as suas singularidades, mas há como que uma alma especial na vastidão dos cenários, na expressividade dos rostos e até na presença discreta, mas sempre oportuna, dos vários animais ao longo da história, que acrescentam um delicioso laivo de ternura. É como se a vida das personagens transbordasse das páginas - ao ponto de alguns dos momentos mais marcantes serem aqueles em que não há diálogo nenhum.
É sempre um prazer regressar a esta aldeia e à sua comunidade coesa. E cada história é não só um novo desenvolvimento na vida dos seus habitantes, mas também uma reflexão sobre a mudança e o progresso. Leva-nos a viajar e faz-nos refletir, em suma. E isso, associado à sua beleza transbordante, é mais do que suficiente para tornar este livro inesquecível. Muito à semelhança dos anteriores, aliás.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Do Rio ao Mar (Manuel Rui)

Do rio ao mar, fluxo eterno e inevitável das águas... mas não só. Também de fluxos são feitas as vidas dos homens e também eles percorrem caminhos de descoberta, de criação e de perda. Como a família que, discretamente, se vai revelando nas palavras deste livro, homem, mulher e criança, plenamente inseridos no costume e na mitologia da comunidade a que pertencem, mas confrontados com a necessidade de migrar, de fluir. São história sem história, caminho feito de falas discretas... mas caminho, ainda assim, do rio ao mar.
Às vezes, ao ler um livro breve, fica a impressão de que tudo é demasiado conciso, de que mais haveria a dizer. Seria, aliás, de esperar essa impressão neste livro, pelo menos até certo ponto, pois vive mais de imagens poética e os acontecimentos insinuam-se nas sombras da imagem. Pois bem, não é assim. A brevidade é a forma perfeita para este percurso, pois traça linhas individuais, mas deixa em aberto percursos comuns. A tribo, os hábitos, as pragas, as guerras, a fuga, são passos muito específicos desta viagem. Mas têm o seu lado universal e o facto de tanto ser deixado à imaginação de quem lê torna essa universalidade mais óbvia.
Outro aspeto que sobressai é, naturalmente, a parte visual. É um livro bonito de folhear, com os seus contrastes de preto e branco. E é também um livro enigmático, já que as ilustrações algo ambíguas, mas estranhamente adequadas, evocam na perfeição a aura a modos que tribal que brota das palavras.
Ainda um último ponto a destacar é a inesperada emotividade que transborda das palavras. Sendo um texto essencialmente poético, em que acontecimentos e visões surgem de forma relativamente ambígua, não deixa de ser notável a forma como estas personagens aparentemente difusas acabam por se entranhar no coração. Além disso, esta voz mais poética, mais vaga, está repleta de frases memoráveis, que acabam por ir para lá do percurso individual das figuras que vão surgindo.
Muito breve, mas muito cativante, é quase tanto o que diz como o que deixa em aberto. Mas essa ambiguidade acaba por ser também uma força, pois funciona como um apelo à imaginação. Afinal, é de fluxos que fala... e o fluxo do imaginário vive em todos nós.

domingo, 21 de novembro de 2021

A Biblioteca da Meia-Noite (Matt Haig)

Nora Seed tem muitos arrependimentos. Ao longo da vida, sente que as suas escolhas nunca foram as melhores e, ao olhar para o que tem agora, sente que ficou aquém em tudo e que falhou a todos os que a rodeavam. Já não vê razões para continuar, e é por isso que decide pôr termo à vida. Mas, em vez do nada ou do além, depara-se com o mais inesperado dos lugares: uma biblioteca. Uma biblioteca entre a vida e a morte, onde o tempo parou na meia-noite e onde cada livro é uma vida alternativa: a vida correspondente a cada arrependimento e ao que teria acontecido perante uma decisão diferente. Nora vê-se, pois ante a possibilidade de viver todas as vidas que não viveu e de escolher, talvez, uma que lhe sirva melhor. Mas será realmente assim tão simples? E estará a vida perfeita a apenas uma decisão diferente de distância?
Parte do encanto dos livros deste autor, e diga-se desde já que este não é exceção, é a forma como transmite uma mensagem positiva sem criar, de modo algum, uma visão demasiado cor-de-rosa. Muito pelo contrário, aliás. Conhece como ninguém as profundezas insuspeitas daquele fundo mais fundo quando julgámos que já batemos no fundo e, por isso, cada uma das suas histórias é uma viagem diferente através do que nos abala e também uma lembrança das razões por que a vida continua... mesmo a partir do fundo. Neste caso, a protagonista está perfeitamente embrenhada nesse abismo e é a partir dessa raiz sombria que a história se vai desenvolvendo. E a viagem de descoberta de Nora - dos sonhos, da imprevisibilidade das coisas, da importância das pequenas coisas, do amor, da vida, enfim - leva-nos a refletir sobre como essas realidades se repercutem em nós.
Outra das grandes forças deste autor é a capacidade de abordar temas sérios com leveza, sem lhes retirar a sua devida importância, mas transpondo-os para situações mais simples, com rasgos de ternura, de emoção e de humor. O caminho de Nora está cheio de momentos intensos e dramáticos, mas também o está de pequenos gestos comoventes e de rasgos inesperadamente divertidos, o que faz com que a leitura seja sempre surpreendentemente leve... mesmo nos momentos inevitavelmente mais sombrios.
E, claro, importa olhar ainda para um outro aspeto da construção desta história: a biblioteca. É ela, afinal, que está no cerne de todo este percurso. É uma ideia singular, e assenta numa teoria fascinante. Mas é sobretudo uma visão especial sobre o nosso lugar do mundo e a vida que nos coube em sorte. Se víssemos a nossa história como um livro, como o classificaríamos? E que opinião teríamos dele, já agora? A ideia de uma biblioteca de (infinitas) possibilidades é particularmente cativante para quem entende os livros como histórias vivas. Porque também nós temos uma história, não é?
Leve, emotiva e cheia de beleza, há algo de único e de irrepetível nesta história sobre vida e morte. Algo que nos fala a todos sobre as nossas imperfeições e arrependimentos e nos leva a viajar com a protagonista e a ver nela um pouco de nós. É uma história memorável, como a biblioteca que lhe serve de base. E carregadinha de emoção, da primeira à última página.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

O Combate Quotidiano - Volume Um (Manu Larcenet)

A vida é feita, muitas vezes, de expetativas, e é com base nelas que construímos as nossas vidas. Até ao dia em que o que parecia ser a escolha de uma vida deixa de ser assim tão agradável. Esta é a história de um fotógrafo que, cansado da vida que construiu, decide deixar tudo para trás e tentar descobrir o que realmente quer e quem realmente é. Só que esse caminho não é tão fácil como parece. Até o amor mais incondicional do mundo tem os seus limites na inevitabilidade da morte. E as novas relações que vão surgindo também não são imaculadas - todos carregam sobre os ombros a sombra de um passado e das suas consequências. E a vida vai passando... e as coisas vão mudando... e a busca da identidade começa a revelar menos certezas e mais ambiguidades.
Parte da beleza deste livro está na forma como, partindo de uma história muito pessoal e singular, transmite situações e pensamentos com que qualquer leitor facilmente se poderá identificar. Escolhemos uma profissão, mas a vida leva-nos por outros rumos. Esperamos construir relações, mas nunca conhecemos realmente ninguém. Julgamos que alguém é uma boa pessoa, ou que determinadas escolhas fazem com que seja impossível sê-lo, mas há mais vida para além dessa escolha. Idolatramos a obra de alguém, mas o criador é tudo menos perfeito. E somos... somos o que somos, apesar de tudo isto. Tal como o protagonista deste livro.
Outra das grandes forças desta história, e da forma como está construída, é a forma como vive das pequenas coisas. Não é propriamente um livro que viva de grandes dramas, pois até as inevitáveis perdas assumem o seu lugar na inevitabilidade do percurso. Mas dá alma e emoção até aos mais pequenos momentos, do primeiro encontro com alguém à aceitação das suas falhas. E, ao longo de todo este percurso, há todo um leque de emoções, da ternura ao humor, da nostalgia à revolta, da angústia à esperança. A angústia acaba, aliás, por ser quase uma personagem, e uma personagem que nos aproxima inesperadamente da história.
Visualmente falando, fica, mais do que uma impressão específica, a sensação de que repercute na mente a pegada emocional das personagens. Os rasgos vermelhos da angústia, o azul da melancolia, as expressões contemplativas da perda que se reflete nas personagens... é como se as emoções falassem através dos traços. E, numa história que vive tanto do interior das personagens como do seu exterior quotidiano, este retrato visual das emoções é particularmente importante.
Um combate quotidiano... é disso que se trata, de facto. Contra a angústia, contra a tristeza, contra a desorientação, contra o que nos faz sentir menos vivos enquanto o estamos. E um combate que todos conhecemos de alguma forma. É essa, no fundo, a verdadeira marca desta história em que não somos o protagonista, mas entendemo-lo. Ou o que ele reflete de nós.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Nós Tínhamos de Acontecer (Gayle Forman)

Tal como o pai, Aaron julgava que os livros eram milagres... até ao dia em que o seu mundo colapsou. Agora, são apenas o cerne de uma crise que tem de resolver para se libertar. E é por isso que decide vender a livraria da família, mesmo sabendo que isso irá partir o coração do pai. Só que é nesse exato momento que começam a acontecer coisas inesperadas. E Aaron começa a descobrir que nem todos os inevitáveis são negativos.
Provavelmente o aspeto mais marcante deste livro prende-se com o contraste entre os temas mais sérios e a leveza geral da história. Fala de situações duras como o vício, as dificuldades financeiras e o luto, mas constrói uma história cheia de momentos leves e divertidos. Tanto que começa por parecer um pouco exagerada, mas vai ganhando força com o evoluir dos acontecimentos.
Outra das grandes forças deste livro é, naturalmente, a sua relação com os livros e as histórias em geral. Qualquer leitor assíduo se identificará facilmente com a visão da leitura enquanto milagre, e esta perspetiva cria também uma proximidade mais profunda, mesmo quando as escolhas das personagens não são fáceis de entender. Além disso, se é certo que as personagens se mostram por vezes caricatas, também o é que têm o coração no sítio certo, e que as suas imperfeições e vulnerabilidades as tornam também mais humanas.
Finalmente, importa destacar o crescendo de emoção que se vai desenvolvendo ao ritmo do enredo e que culmina num final que, não sendo perfeito, tal como a vida não é, acaba por ser, ainda assim, perfeitamente adequado. Não há finais absolutamente felizes, mas há a felicidade possível e a superação. Como na vida, não é?
Leve e com o seu lado caricato, mas muito cativante e cheio de emoções fortes, trata-se, pois, de uma história de descoberta sobre o que somos e o que nos ajuda a viver. Uma bela viagem, em suma.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Initium Magia! (María J. Cuesta)

Todos nós já lemos histórias de magos e feiticeiros, histórias que nos transportaram para mundos de poderes insondáveis ao alcance de uma palavra ou do agitar de uma varinha mágica. Mas sempre entendemos a magia - ou pelo menos a partir de uma certa idade - como fruto da imaginação, como algo que só existe nas histórias. Será assim? Ou será mais o contrário? Talvez as histórias e a imaginação sejam as bases da magia e possa haver magia nas coisas mais inesperadas: no lápis que faz aparecer figuras e palavras numa folha em branco, nas viagens que nos levam à aventura, nos objetos do quotidiano que podem ser base para a imaginação e até nos números e no muito que podemos fazer com eles. Este livro fala-nos de magos e de magia. De vassouras, feitiços e varinhas mágicas. Mas fala-nos sobretudo da magia da imaginação.
Provavelmente um dos aspetos mais interessantes deste livro é a forma como desperta a nostalgia, a lembrança das muitas histórias de magia que fomos conhecendo ao longo da vida, construindo a partir delas um tipo de magia diferente. São fáceis de reconhecer as muitas referências que surgem ao longo do livro, mas são particularmente notáveis os contrastes entre estas referências e um tipo de magia mais simples: a da vida quotidiana e das suas infinitas possibilidades.
Outro aspeto marcante tem a ver com o facto de, apesar de ser um livro muito simples, deixar também a impressão de ser bastante completo. Faz sentido, aliás, que seja simples, ou não fosse um livro pensado para os mais novos. Mas é completo sobretudo por isto: porque aborda as múltiplas facetas do que imaginamos ser a vida de um mago e porque cada uma destas facetas reflete um aspeto da nossa vida (alegadamente) não mágica. Em suma, transpõe para a realidade as potencialidades da imaginação, o que dificilmente poderia ser mais positivo, principalmente tendo em conta o público a que se destina.
Importa destacar, por último, os muitos "truques de magia" sugeridos ao longo do livro, que, além de estabelecerem uma certa interatividade, podem também ser um belo ponto de partida para despertar a curiosidade para esse tipo muito específico de magia que é a ciência. Brincar com os números e com os objetos pode ser um belo ponto de partida para despertar a curiosidade sobre como o mundo funciona, e este aspeto educativo contribui também para fazer deste livro uma descoberta cativante.
Tudo se resume, portanto, a uma conjugação eficaz entre a misteriosa e fascinante magia de outros mundos e outras histórias e a tão conhecida mas tão surpreendente magia deste mesmo mundo em que vivemos. Perfeito para despertar a curiosidade e a imaginação dos mais novos... e a magia da memória naqueles que entre nós já não o são assim tanto.

sábado, 13 de novembro de 2021

Confia em Ti (Ralph Waldo Emerson)

A ideia de confiança pode parecer algo muito simples, mas é tudo menos isso. E, embora possa parecer que o mais difícil é confiar nos outros, pois não se sabe realmente que resultados se poderão obter, a autoconfiança não é necessariamente mais fácil. Vivemos num mundo de interações, de ruído, de multidões que influenciam e arrastam. E manter a serenidade e a confiança em nós próprios num mundo em permanente turbilhão é tudo menos simples. É sobre essa confiança - nas escolhas, na ação, na nossa própria natureza - que este pequeno livro nos fala.
Sempre que se discute o que faz de um livro um clássico, um dos termos inevitavelmente evocados é a intemporalidade: a forma como uma história ou visão do passado se repercute com precisão nos nossos tempos. Bem, este livro cumpre plenamente esse requisito. As referências podem ser específicas do seu tempo, mas a mensagem transcende-o e as suas ideias são tão pertinentes para os nossos dias como foram no passado. E a sua capacidade de nos fazer refletir sobre o que somos - e principalmente sobre como nos vemos - não podiam ser mais atuais.
Trata-se de um livro muito breve, o que significa que, apesar do seu registo algo contemplativo, se lê praticamente de uma assentada. Mas isso não se deve apenas à brevidade. Há na forma como este livro está escrito como que uma voz que nos fala por dentro: facilmente o podemos ouvir como um discurso à medida que as páginas vão passando. E, assim, o efeito que fica, logo ao primeiro contacto, é como que uma vontade de ouvir a lição até ao fim para depois a assimilar.
Trata-se ainda de um texto repleto de citações memoráveis, de ideias expressas de forma tão clara que quase poderiam surgir como mantras. E, tendo isto em vista, importa salientar um aspeto particular desta edição: além de visualmente bonito, põe em evidência muitas destas citações mais pertinentes, o que facilita os inevitáveis regressos às ideias memoráveis do texto. Sendo certo que todo ele é propício a um regresso, pois, além de muito marcante na mensagem, é também uma leitura muito agradável.
Finalmente, destaca-se um último ponto curioso: sendo um texto sobre autoconfiança e sobre não nos deixarmos influenciar demasiado pelas opiniões e determinações dos outros, é interessante notar a presença de possíveis pontos de discordância. Ao longo deste texto, são afirmadas convicções fortes, e é inevitável não se estar absolutamente de acordo com tudo. Mas, tendo em conta o tema, é também inevitável que estes pontos de divergência surjam como ainda uma nova base para reflexão.
É uma leitura muito breve, mas cheia de aspetos memoráveis, desde a escrita à mensagem, sem esquecer a forma natural e fascinante como nos conduz à reflexão. E é, por isso, de certa forma, também um início de caminho... O resto cabe-nos a nós percorrer.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

O Comboio da Esperança (Gill Thompson)

Eva tinha um futuro brilhante pela frente, até à noite em que, ao optar pelo caminho mais curto para casa, acabou por ser atacada por um grupo de jovens alemães e todos os seus sonhos ficaram destruídos. Casada à pressa com um homem mais velho, conseguiu, ainda assim, reconstruir-se um pouco e constituir em Praga uma família razoavelmente feliz. Só que também essa tranquilidade é frágil e, quando os nazis invadem o seu país, Eva vê-se confrontada com a mais difícil das decisões: manter a filha ao seu lado, sabendo que o risco é enorme, ou enviá-la para Inglaterra contra a vontade do marido, sabendo que aí estará segura, mas que é possível que nunca mais a volte a ver. Entretanto, em Londres, Pamela sente-se segura e é por isso que dedica todos os seus esforços em proteger as crianças judias que todos os dias chegam ao seu país. Mas a guerra não está tão longe como julga e também a sua família pode vir a ser novamente abalada pela perda.
Provavelmente a maior força deste romance é a forma como entrelaça as vidas das diferentes personagens, num contexto que é por natureza complexo e sem nunca seguir pelas soluções mais simples, mas também sem nunca perder de vista a proximidade emocional que faz com que toda esta história transborde de intensidade e de emoção. Basta o contexto em que decorre para perceber que não faltarão momentos dramáticos e dolorosos, mas a autora tem uma capacidade natural para fazer brotar emoção tanto das pequenas coisas como dos grandes momentos.
Outro aspeto marcante é que, ao acompanhar diferentes personagens, abre espaço também a diferentes perspetivas do que está a acontecer. Pamela surge de um ambiente de relativa segurança, enquanto Eva está no cerne de um crescendo de perigo. Miriam encontra refúgio, carregando, porém, consigo a sombra da perda. Will representa a impetuosidade, mas também as consequências que resultam, por vezes, de fazer uma escolha corajosa. E todos eles - e mais - representam personalidades muito próprias num mundo cheio de complexidades e ambiguidades, onde nada pode ser perfeito e os finais felizes parecem mais difíceis do que nunca de imaginar.
Ainda um último ponto notável surge da própria escrita e do equilíbrio entre os seus momentos quase poéticos, carregados de uma emotividade transbordante, e a lucidez com que descreve a brutalidade dos factos. Quando as próprias personagens são confrontadas com escolhas ambíguas, a perceção clara de que certo e errado não deixaram de existir, mesmo em situações impensáveis, é algo de particularmente relevante numa história como esta.
Trata-se, portanto, de um livro carregado de emoção e de intensidade, com uma história complexa, mas sempre fascinante, e personagens marcantes em todas as suas facetas. Uma leitura notável, e uma história de música e de afeto que brilham mesmo no meio da mais densa escuridão.

domingo, 7 de novembro de 2021

Jane Goodall (Beatrice Cerocchi e María Isabel Sánchez Vegara)

A história de Jane Goodall é sobejamente conhecida, sobretudo no que diz respeito ao seu estudo dos chimpanzés e às suas ações pioneiras na defesa do planeta. Mas, como muitas outras histórias, também esta parte de um grande sonho de criança. É desse sonho e dessa história que esta livro nos fala, contando de forma concisa e cativante, as origens e o crescimento de um grande percurso.
Parte do que cativa nesta coleção é a capacidade de resumir de forma muito sucinta - ou não fosse este um livro infantil - um percurso sempre vasto e notável. Este caso não é exceção. De forma muito, muito breve, mas também muito cativante, com a rima a contribuir para lhe dar também um ritmo agradável, este livro reduz ao essencial um vasto percurso, apresentando aos mais novos a sua protagonista e despertando desde logo a curiosidade em saber mais.
Outro aspeto particularmente bem conseguido prende-se com as ilustrações, cheias de cor e de criatividade, mas também fiéis à realidade que lhe serve de base. Basta, aliás, consultar a breve nota biográfica no final para reconhecer certas semelhanças entre as fotografias de Jane Goodall e as imagens deste livro, o que contribui também para criar uma ligação mais forte.
Ainda um último ponto, comum aos vários livros desta coleção e também bem presente aqui, é a forma como cada história individual contribui para transmitir uma mensagem muito clara: a de que os grandes sonhos de infância se podem converter em realidades, com esforço, prática, dedicação e crescimento. Alimentar as aspirações dos mais novos pode ser o ponto de partida fulcral para as grandes figuras do futuro, e este livro é uma bela forma de recordar isso.
Muito breve e simples, mas muito cativante e cheio de cor e vida, trata-se, pois, de um belo livro para dar a conhecer aos mais novos a grande figura que o protagoniza. E, tal como os outros volumes da coleção, de uma boa forma de partilhar conhecimento e aventuras.

sábado, 6 de novembro de 2021

Dante - Uma Vida (Alessandro Barbero)

De fama incontornável devido à sua Divina Comédia, o nome de Dante Alighieri é conhecido por todos. Menos conhecida será certamente a história da sua vida, até porque existem múltiplas teorias e menos certezas do que as desejadas a esse respeito. Ainda assim, há linhas que podem ser traçadas, relações que podem ser admitidas, hipóteses que se afiguram como mais prováveis. E é a partir destes elementos e mais que nasce esta biografia memorável.
Parte do que sobressai nesta biografia é a sua abrangência às vezes exaustiva (sobretudo nas notas) e a forma como, apesar da vastidão de informações que contém, consegue ser uma leitura acessível e até mesmo empolgante. Acompanhando os passos conhecidos - e explorando as teorias sobre os menos conhecidos - da vida de Dante, traça um percurso completo, dentro das possibilidades do conhecimento, para uma vida que é mais do que o se reflete na obra.
Faz também o contrário, encontrando nas diferentes obras bases para fundamentar os factos biográficos. E assim, partindo de uma vida inevitavelmente envolta em mistério, dada a escassez de documentos e a abundância de teorias, consegue traçar um retrato completo do poeta e da sua vida. Vida essa cuja base pública assenta curiosamente mais na política do que na poesia que lhe granjeará a fama imortal.
É um livro relativamente longo e, dada a abundância de informação, exige o seu tempo para ser devidamente assimilado. Mas nunca se torna monótono ou cansativo. Há momentos, aliás, em que se lê quase como um romance, tal é a capacidade do autor de juntar as peças para formar uma imagem coesa. E tem ainda um agradável o efeito secundário: o de despertar uma profunda vontade de reler a Divina Comédia, agora tendo em mente os conhecimentos transmitidos nesta obra.
Vasto, mas acessível; extenso, mas sempre cativante; carregado de informação, mas capaz de intrigar como um mistério dadas as inevitáveis lacunas da história. Assim é esta biografia, história de uma vida complexa e misteriosa num tempo igualmente misterioso e fascinante. Recomendo.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

O Humor da Minha Vida (Paz Padilla)

A morte é uma das grandes inevitabilidades da vida e, por mais que julguemos o contrário, estamos muito longe de estar preparados para lidar com ela. Com a nossa e sobretudo com a dos que nos são mais queridos. Paz Padilla sofreu duas grandes perdas num curto espaço de tempo, mas esse percurso ensinou-a a ver a morte - e a vida, sobretudo - de uma forma diferente. Esta é a história da sua viagem, a narrativa das perceções que foi construindo e a sua própria visão de como lidar com a iminência da morte e com o peso do luto: com força, humor e muito amor.
Quando pensamos na morte, o que vem inevitavelmente ao pensamento são imagens sombrias, sentimentos tenebrosos, a mais que conhecida imagem da figura encapuzada a segurar uma foice. São também emoções difíceis, sensações desconfortáveis e muitas, muitas perguntas. Quem nunca se questionou, afinal, sobre a sua própria mortalidade? Por isso, uma das primeiras coisas a surpreender neste livro é necessariamente a sua leveza. Com um sentido de humor muito próprio, que contrasta com a gravidade do tema, e também com uma visão muito abrangente, com uma certa medida de espiritualidade, mas sem se cingir a crenças específicas, trata-se de uma leitura surpreendentemente leve e descontraída, com momentos verdadeiramente divertidos e uma visão bastante positiva da continuidade da vida face à morte.
Tendo como objetivo assumido a possibilidade de ajudar pessoas a lidar com a mesma experiência, este livro pode ser classificado de várias formas. Tem o seu quê de livro de autoajuda, embora assumindo uma forma bastante diferente do comum, mas é também a história de um percurso pessoal, uma espécie de livro de memórias, pontuado ainda por algumas análises a ideia da morte dos pontos de vista filosófico, religioso e espiritual. Reúne todo um conjunto de elementos diferentes, e fá-lo sem perder a leveza e a proximidade do que é, acima de tudo, uma partilha de experiências pessoais. E é essa proximidade, associada ao já referido sentido de humor, que torna a leitura tão envolvente.
É fundamentalmente uma história pessoal, ainda que carregadinha de aspetos com que muitos leitores se poderão identificar. E, se juntarmos a isto um contexto muito próprio e um sentido de humor também peculiar, haverá momentos de maior proximidade e outros também de uma certa estranheza. Mas domina a proximidade e o que, desta história individual, pode ser transposto para outras. E, assim, torna-se mais do que um testemunho singular; torna-se um ponto de partida para as reflexões de cada um.
Surpreendentemente leve para a história que conta e para as questões que aborda, trata-se, em suma, de um percurso pessoal e intransmissível que abre portas a uma visão mais serena e mais natural da morte e do luto. E basta isso - essa capacidade de expandir horizontes mesmo numa questão tão delicada - para fazer com que esta leitura valha a pena.

sábado, 30 de outubro de 2021

A Última Coisa que Ele Queria (Joan Didion)

Elena McMahon está habituada a reconstruir a sua vida sempre que se apercebe de que a que tem se transformou em fingimento. É, pois, quase por impulso que decide abandonar a campanha eleitoral que estava a acompanhar como jornalista a fim de ir visitar o pai. O que não sabe é a dimensão da intriga em que está prestes a entrar. O pai de Elena faz negócios de um tipo altamente secreto e duvidoso, mas uma doença imprevista acaba de o deixar incapaz de assumir o seu papel. Elena assume, pois, o seu lugar, longe de imaginar a magnitude do esquema em que acaba de se envolver. E não tarda a que tudo comece a descarrilar, num jogo de interesses e conspirações políticas onde não há verdadeiros inocentes e cada passo pode ter consequências fatais.
Apesar de não ser um romance particularmente extenso, este livro tem como uma das suas principais caraterísticas a complexidade. Complexidade na intriga, complexidade na dimensão das forças em jogo e complexidade na construção das próprias personagens. Assim, não é de admirar que a impressão inicial seja de alguma confusão, pois são muitas as coisas que há para assimilar e a autora tem uma forma muito própria de as descrever, ao ritmo da consciência da voz que narra e não numa linha temporal linear.
Ora esta singularidade torna a leitura um pouco pausada, principalmente na fase inicial, contribuindo para isso também a relativa ambiguidade, moral e não só, das personagens. Ainda assim, à medida que o enredo vai evoluindo e as ligações começam a tornar-se mais claras, a estranheza é substituída pela curiosidade e a ambiguidade inicial vai dando lugar a uma estranha empatia. Estranha porque todas as personagens têm uma faceta menos clara, mas intensa, a espaços, e sobretudo a partir do momento em que se torna evidente que uma história como esta jamais poderia ter um final perfeito e cor-de-rosa.
É certo que ninguém é totalmente inocente, mas não deixa de haver casos em que as personagens se envolvem em algo muito maior do que julgavam, o que desperta também uma certa simpatia face à sua posição. Mas há ainda um outro ponto marcante: é que o cerne da história pode estar na intriga política e nas teias dos negócios obscuros, mas há espaço para pequenos momentos pessoais que são particularmente poderosos. Acabam, aliás, por ser esses os que mais ficam na memória, ainda que entrelaçados numa intriga muito mais vasta.
Tudo somado, o que fica é a impressão de uma leitura singular, inicialmente desconcertante, mas que se vai entranhando pouco a pouco, abrindo caminho para a revelação das verdadeiras forças destas personagens e da desolação dos meandros em que se movem. Exige o seu tempo, sim, mas compensa. Amplamente.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Manifesto pela Leitura (Irene Vallejo)

Ler é uma espécie singular de magia, uma base para o crescimento, um conforto por entre as sombras, a possibilidade de viver mais vidas na brevidade de uma só. É companhia, é descoberta, é fuga e encontro, é potencial e materialização. É vida, em suma. E, se estão a ler isto, é provável que partilhem deste meu sentimento. Mas é também um espelho, uma forma de nos vermos refletidos noutras histórias, noutras pessoas (reais ou fictícias). E é um pouco isso que acontece ao ler este pequeno, mas maravilhoso, livro. Vemo-nos refletidos enquanto leitores e vemos que não estamos sozinhos na nossa paixão.
Chama-se Manifesto pela Leitura, e faz sentido que assim seja, pois é essencialmente um apelo à proteção desta tão nossa maravilha. "O que nos salva não pode desaparecer." Mas é também uma belíssima declaração de amor aos livros, daquelas que falam às profundezas do coração. Não faltam frases memoráveis, pensamentos que parecem avassaladoramente familiares, visões fáceis de entender e de reconhecer. Até porque, enquanto leitores, todos partilhamos muitas delas. E, além do apelo que constitui todo este livro - Salvemos o milagre -, há também nele uma muito viva lembrança do porquê de a leitura ser efetivamente um milagre.
A mensagem é, no fundo, muito simples: ler é essencial. Este livro faz, aliás, parte de uma iniciativa da editora que tem esse mesmo nome. E é particularmente impressionante como tudo neste pequeno livrinho nos recorda esse mesmo facto. Ao debruçar-se sobre as múltiplas vertentes da leitura - escapismo, propagação e preservação do conhecimento, conforto, descoberta, partilha - a autora lembra-nos o infinito potencial destes objetos tão simples mas, oh, tão vastos. E, assim sendo, fica uma dupla perceção desta muito breve leitura: para quem ainda não descobriu a força deste prodígio, é um convite à descoberta; para nós que a conhecemos e amamos, é uma lembrança de que não estamos sós neste amor.
Maravilhoso na escrita, inspirador na mensagem e reconfortante no que nos mostra de nós, trata-se de um apelo à ação e também ao coração. E de uma visão que, por ser tão próxima e tão bela, fica na memória para sempre.

NOTA: Para conhecer a iniciativa na origem da publicação deste livrinho, espreitem este site: https://www.lereessencial.pt/LerEEssencial/Index

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Está Quase! (Maryann Cocca-Leffler)

Conseguir fazer algo de novo implica os seus desafios, principalmente quando somos pequenos e ainda estamos apenas a aprender a viver. Todos nos lembramos da sensação de querer fazer tudo, mas, citando a publicidade, "faltar um bocadinho assim". E é sobre isso que fala este pequeno, sobre todas as vezes em que "está quase" e o que é preciso fazer para passar do quase à realização.
Sendo muito obviamente um livro infantil, ao lê-lo de uma perspetiva adulta, é quase inevitável que a primeira coisa a sobressair seja o facto de a mensagem não se esgotar nos mais pequenos. Todos temos - ou tivemos, pelo menos - alguma aspiração, algum sonho a realizar. E todos conhecemos a fase do quase, em que queremos, acreditamos que conseguimos, mas falta sempre qualquer coisa e temos de descobrir o que é preciso fazer. É verdade, não é? E se, na infância, estas coisas eram mais simples, agora já não o são tanto. Mas este pequeno livrinho lembra-nos o essencial: paciência, prática e determinação.
Por mais que apele ao lado inocente dos leitores adultos, não deixa, ainda assim, de ser um livro para crianças. E, assim sendo, há certas caraterísticas que são essenciais e em que este livro não desilude. A começar, naturalmente, pelas ilustrações, cheias de cor e de expressividade, transbordantes de ternura e de emoção. É impossível não ver as emoções a transbordar da página, pois, se os gestos são muito simples, as expressões da personagem dizem tudo. E são também como que uma muito rápida viagem à infância, pois evocam grande parte das primeiras aprendizagens: escrever, fazer contas, aprender a andar de bicicleta, a fazer um puzzle e simplesmente crescer.
Quanto ao texto, é muito simples, até porque as ilustrações dizem quase tudo, mas complementa-as na perfeição. Além disso, entre a rima e o ritmo, é basicamente perfeito para ler em voz alta, o que significa que também pode funcionar como uma belíssima ferramenta de incentivo e iniciação à leitura.
Muito simples, mas muito terno e cheio de cor e de emoção, trata-se, pois, de um livro carregadinho de inocência e de ternura. Perfeito para os mais pequenos e também muito agradável para recordar a infância.

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Verões Felizes 1 - Rumo ao Sul! | A Calheta

Nem todas as histórias são feitas de grandes dramas, de teias de intrigas e de violência, de conspirações, segredos e acontecimentos apocalípticos. Não, algumas histórias são feitas de vidas normais, das pequenas alegrias, do amor, da amizade, da família, do quotidiano de um ano inteiro de trabalho e do auge de cada ano - as férias! Esta é a história de uma família com todas as suas tribulações, mas também com um espírito de união e de afeto capaz de pôr de lado as dificuldades para partir à aventura. Rumo ao Sul... e à felicidade.
É impossível falar de uma história como esta sem começar por referir algo que, não sendo propriamente tangível, basicamente transborda das páginas: ternura. E ternura de todas as formas e tamanhos, desde a inocência das crianças à emoção de uma união sólida na perda, passando pela capacidade de ver tímidos raios de sol mesmo perante sucessivas derrotas. Ternura, sempre e em toda a parte, feita de pequenos gestos, de simples expressões e de inesperadas figuras. Ternura que surpreende, que cativa, que comove... E, oh, se comove.
Começa, pois, pela emoção a lista de caraterísticas notáveis deste livro. Mas não se fica por aí. Visualmente, temos uma expressividade deliciosa nos rostos das personagens (que, às vezes, quase parecem estar a falar diretamente connosco). No enredo, temos um equilíbrio perfeito entre os momentos de humor, a simplicidade das pequenas coisas numa vida que é, apesar de tudo, complexa, e a já referida ternura transbordante. E na construção das personagens, temos o contraste entre sonho e realidade, as personalidades singulares e a relação coesa e marcante que se vai revelando aos poucos.
Ainda um último ponto que importa destacar é que, ao reunir duas histórias num só volume, os contrastes tornam-se mais acentuados. Cada verão é único à sua maneira, embora existam também paralelismos evidentes entre ambos, o que resulta num cativante equilíbrio entre coesão e singularidade. Além disso, ao não haver uma ordem cronológica linear, cria-se também outra impressão curiosa, no contraste entre o que a mesma personagem era em diferentes momentos e também na forma como a mesma caraterística acaba por se manifestar em diferentes personagens.
História de coisas simples que são, no fundo, as mais importantes, eis, pois, um livro que nos lembra o que verdadeiramente importa, levando-nos, ao mesmo tempo, à aventura com uma curiosa, cativante e deliciosamente enternecedora família. Muito bom.

domingo, 24 de outubro de 2021

Ofício (João Rasteiro)

A poesia, tal como o amor, tem razões que a razão desconhece. E tem meandros, labirintos, profecias, evocações, visões sagradas e profanas, promessas, introspeções, abismos. Mente, alma, coração, corpo, mundo, vácuo, eternidade. Tem tudo em mil formas insuspeitas - e atinge o auge da sua força quando todas estas coisas e mais ganham vasta e abrange voz nas palavras de um só poeta. Vinte anos de poesia - é isso que abrange este Ofício. E são vinte anos vastíssimos.
Não é, por natureza, fácil descrever um livro de poesia, e mais difícil se torna quando o conjunto é tão vasto e as imagens que contém vivem mais de impressões e de evocações do que de algo de concretamente descritível. Há referências familiares, um ambiente tangível: bíblico, a espaços, shakespeariano, por vezes, e outras ainda algo que diverge de tudo e se torna próprio e singular. Mas há, acima de tudo, imagens que se transpõem para a mente e que não são uma forma designável, mas mais como uma evocação mental no interior.
Não é fácil de descrever, portanto, e também não lhe faltam complexidades. Na linguagem, na estrutura, nas sinuosas imagens projetadas. É, de certa forma, como entrar num labirinto, difícil de assimilar por vezes, mas fascinante em todas as suas facetas. E é sinuoso, de facto, mas também muito coeso. Há laços que se replicam através desta longa viagem e uma sensação de que, mesmo que variem as formas, as temáticas, as imagens, a voz é una e singular. E facilmente reconhecível.
Importa referir, por último, ainda um outro ponto singular: a forma como, mesmo nos seus momentos mais crípticos, as palavras parecem adquirir uma vida própria. Não no sentido em que fluem levemente, pois há demasiada densidade para isso, mas no sentido em que se entranham, em que se projetam para o pensamento, em que evocam algo maior nos seus rasgos de brilhantismo. E assim, mais do que uma corrente fluida, fica como que uma figura multifacetada, com um lado indefinível, mas estranhamente cativante.
Vinte anos de poesia abrangem múltiplas obras, muitos temas, inúmeras evocações. E, ainda assim, a imagem que fica é de um todo coeso e completo. De um todo que é mais do que a mera soma das suas partes e que, na sua infinita complexidade, é mais que digno de uma atenta descoberta.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

História de Portugal à la Carte (António Botto Quintans)

Feita de grandes explorações e de igualmente grandiosas batalhas, dos meandros da sucessão dinástica e de intrigas que levam a alterações no poder, a história de Portugal é vasta e repleta de episódios notáveis. Mas e se os tempos colidissem? Se figuras, acontecimentos e referências dos nossos dias fossem transpostos para o passado, exercendo aí a sua peculiar influência? Quem sabe? Mas o resultado bem poderia ser este: uma série de episódios peculiares, sem qualquer semelhança com a realidade, mas, ainda assim, estranhamente divertidos e cativantes.
O primeiro aspeto a chamar a atenção para este livro, e provavelmente também a sua grande força, é o facto de ser absolutamente inusitado. Figuras da atualidade a conviver com figuras históricas? Tem tudo para ser estranho. Desde a influência do Bollycao na fundação do reino à cooperação entre Jorge Jesus e Vasco da Gama (não, não é o clube de futebol), passando por toda uma série de elementos caricatos que vão surgindo nas diferentes histórias, tudo neste livro é inaudito. Mas o que torna tudo tão divertido é o equilíbrio entre surpresa e naturalidade: tudo é improvável, claro, mas lê-se como se não o fosse.
Outro ponto interessante é que todas estas reconstruções da história são relativamente breves, o que confere uma certa leveza à leitura. Além disso, não faltam referências fáceis de reconhecer, tanto na parte histórica, como na parte atual. E, sendo certo que as histórias são bastante simples, há algo de estranhamente delicioso em reconhecer as várias referências que vão surgindo quando menos se espera.
Ainda uma última nota para referir outro agradável equilíbrio: é que cada episódio é essencialmente independente, mas existem pequenas ligações - e não, não vêm da própria linha cronológica da história real - a criar uma sensação de coesão. Ora, essa sensação é particularmente agradável no meio deste conjunto de cenários caricatos, pois, mais do que a sucessão de dinastias, ou a mera inevitável passagem do tempo, coisas como o estalo que se torna referência durante gerações ou o regresso constante aos mesmos inesperados lugares fazem deste conjunto de histórias também uma história própria.
Breve e descontraído, caricato e cativante, eis, pois, um livro que parte da história para fazer... bem, histórias. Histórias simples, mas de leitura muito agradável, e em que não existe qualquer semelhança com a realidade. Nem mesmo por coincidência.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Festa de Anos Mortal (Sue Fortin)

Carys, Zoe, Andrea e Joanne costumavam ser grandes amigas, mas as dificuldades dos últimos dois anos fizeram com que as relações se tornassem tensas. Assim, quando Joanne as convida para a festa de aniversário que preparou, um fim de semana cheio de aventura e de surpresas, as amigas sentem-se obrigadas a aceitar, na esperança de que a intenção seja restaurar a relação do passado. Só que as intenções são outras. Joanne guarda grandes ressentimentos e pretende confrontar as amigas. E não é a única com planos dramáticos para esse fim de semana...
Narrado maioritariamente na primeira pessoa, e com um enredo que é todo ele uma sucessão de mistérios e de reviravoltas, é na imprevisibilidade que está a grande força deste livro. Desde o início que é bastante óbvio que há planos tenebrosos em curso, mas essa é mesmo a única certeza ao longo de todo o enredo. Além disso, o desenrolar das circunstâncias e a abundância de segredos guardados pelas várias personagens fazem com que a suspeita seja uma constante, incidindo até sobre a própria narradora. O que significa que a leitura facilmente se torna viciante, pois é impossível não querer desvendar a verdade por trás desta teia de intrigas e de segredos.
É certo que a perspetiva de Carys implica algumas limitações, pois a sua visão pessoal significa que o que move as outras personagens acaba por ser visto apenas na medida do que ela sabe. Ainda assim, este menor desenvolvimento de alguns aspetos secundários acaba por ser compensado pela intensidade das surpresas e pelas muitas reviravoltas que se seguem a cada revelação. Além disso, Carys é deliberadamente pouco fiável enquanto narradora, o que significa que nada é o que parece... incluindo o que ela vai relatando.
A história vai, pois, crescendo em intensidade e abrindo caminho para um final vertiginoso. E também particularmente adequado, tendo em conta o desenvolvimento das personagens. É que é esta é uma história onde ninguém é propriamente inocente, e onde são inevitáveis os sentimentos ambíguos sobre as personagens e as suas escolhas passadas e presentes. Esta ambiguidade moral torna, porém, tudo mais intenso, pois onde todos têm segredos, todos podem estar dispostos a tudo para os esconder. E isso contribui para adensar o mistério.
Intenso, viciante e carregadinho de surpresas, eis, portanto, um livro que prende do início ao fim. Com um núcleo de personagens nem sempre fáceis de entender, mas com uma sucessão de intrigas e de ações que culmina num final poderoso e memorável, vale bem a pena descobrir esta história. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

A Criatura do Lago (Bruno Matos e Raquel Carrilho)

A Mizé está a precisar de sossego. E por isso decide ir passar uns dias com os seus amigos da Família Monstro. Só que, em Monstrópolis, nunca há dias aborrecidos e, sendo assim, é certo que tem à sua espera uma bela aventura. Tudo começa com uma visita a um primo da Mamã Ogre, que vive numa casa humilde junto ao lago. Mas essa casa humilde transformou-se na fortuna do proprietário, através da inesperada de um monstro cuja fama atravessa mundos: a Nak'ia... ou Nessie. E há muitos interessados nela, nem todos com boas intenções.
Parte do que torna estas histórias tão cativantes é a forma como, de forma simples e divertida, conseguem proporcionar sempre uma bela aventura sem perder de vista as mensagens e valores que se pretende realçar. Neste caso, temos vários, desde o medo da diferença à forma como traumas passados levam a generalizações erradas, sem esquecer, claro, a forma como a ganância leva a atos censuráveis, e também que as aparências iludem. Tudo isto está presente nesta história e é refletido da mais eficaz das formas: pelo exemplo. Ora, tendo em conta que se trata um livro infantil, esta forma de transmitir a mensagem é, evidentemente, a mais eficaz.
Mas a mensagem não é tudo. Importa olhar para a história e para a forma como é construída. Ao terceiro volume da série, há um conjunto de características que são, à partida, expectáveis: as ilustrações cheias de cor e de expressividade, a relativa brevidade de uma história a que, apesar disso, não falta ação nem coisas interessantes a acontecer, e um núcleo de personagens surpreendentemente fofas, dada a sua natureza. Mas há também elementos novos: novas personagens, novos desenvolvimentos e uma nova aventura para descobrir, o que significa que as histórias nunca se tornam repetitivas.
Importa, finalmente, referir que, apesar de ser uma história pensada para um público jovem, daí a relativa simplicidade, tem o cuidado de não se tornar demasiado simples. E isto aplica-se não só à história, mas também à escrita, havendo um claro incentivo ao desenvolvimento de um vocabulário maior. Além, claro, de alguns pormenores deliciosos, como a existência de uma personagem chamada Baaz Ofya.
Simples e divertido, com uma história cativante e uma mensagem forte, trata-se, em suma, de um livro perfeito para os mais novos, mas perfeitamente capaz de cativar também os que... já não o são. É sempre bom reencontrar esta curiosa família, e ir com ela à aventura.

sábado, 16 de outubro de 2021

Diário de Uma Miúda como Tu - Sem Dramas, Please! (Maria Inês Almeida e Manel Cruz)

Mais um aniversário, mais umas férias... e, como sempre, não faltam à Francisca coisas a que se dedicar. Desde a melhor festa de aniversário de sempre (bem, quase) ao campo de férias de teatro, passando pelas suas iniciativas em prol do ambiente, não lhe falta com que ocupar a cabeça. Além, claro, das amigas e das paixonetas. Mas há ainda um mistério a pairar. Andam a desaparecer coisas do teatro. Será um fantasma? Ou algo mais mundano?
Ao sétimo volume de uma série, e sobretudo de uma série em que o quotidiano desempenha um papel tão importante, não são propriamente de esperar grandes surpresas em termos de qualidades. Mas são precisamente as expetativas, e a forma como cada novo volume lhes corresponde sempre, um dos aspetos que tornam estes livros tão cativantes. Sempre simples, sempre divertidos e sempre com uma componente didática que flui com naturalidade por entre os ritmos do enredo, podem seguir essencialmente um percurso comum, mas nunca deixam de proporcionar uma leitura envolvente, não só por haver sempre algo de novo nas aventuras da protagonista, mas porque, chegados a este ponto, já é quase como se estivéssemos a vê-la crescer.
Sendo uma série juvenil, há caraterísticas que são quase inevitáveis, e que importa sempre salientar, desde a relativa simplicidade do texto e do enredo às ilustrações também simples, mas que se ajustam perfeitamente ao que imaginamos ser... bem, o diário de uma miúda. Vista da perspetiva adulta, sobressai ainda outro aspeto: a dos vários temas importantes que vão sendo abordados de forma bastante concisa, mas também muito certeira. E que não são, de todo, importantes apenas para os mais jovens.
Não deixa de ser a história de uma miúda de onze anos. O que significa que, além das preocupações globais, tem também as suas aspirações e dramas pessoais - como, aliás, é anunciado pelo próprio título. E este equilíbrio entre as duas facetas torna a personagem mais real, mais próxima. E se o faz da perspetiva de um adulto, fá-lo-á ainda mais, certamente, junto do público a que se destina.
Leve, divertido, educativo e cativante: assim se resume, basicamente, este novo diário da Francisca. Que continua igual a si mesma e igualmente digna de acompanhar nas suas sempre descontraídas e envolventes aventuras.