Rosa sempre ouviu a avó dizer que devia deixar o Alentejo e ir para Lisboa. Mas é naquela terra, que é tudo o que conhece, que está tudo o que lhe resta. Os tempos são de dificuldades, as gentes lidam com a estagnação da única maneira que sabem - uns orando, outros pintando poesia nos muros alheios, outros ainda encontrando o amor nas pequenas coisas - e Rosa tem bem presente o grande sonho da sua velha avó. E se é impossível levar Antónia à Terra Santa, então que se leve a Terra Santa até Antónia. Ou a melhor imitação que for possível fazer.
Há algo de estranhamente fascinante - e de estranhamente... estranho - na forma como este livro, com todas as suas peculiaridades, se entranha na memória. Com um cenário onde a simples universalidade da miséria se conjuga com um conjunto de figuras e acontecimentos únicos, parte de um conjunto de personagens invulgares para lhes criar uma história onde muito pode ser familiar, mas nada é previsível. E é tudo tão estranho, mas tão incrivelmente equilibrado, que até o mais incompreensível se torna natural.
A história assenta na realidade de uma aldeia pequena, e é fácil reconhecer nela as bases de qualquer meio semelhante. Mas, da aparente normalidade, surgem as peculiaridades, sejam elas as estranhezas da forma de vida da inglesa ou as invulgares aspirações intelectuais do professor. Mais uma vez, tudo é estranho, mas tudo é cativante. E, de estranheza em estranheza, as coisas vão evoluindo, abrindo caminho a um final que, tão intenso e inesperado, mas tão ajustado ao percurso das personagens, facilmente se torna memorável.
E depois há a escrita. Também ela repleta de peculiaridades, de frases invulgares; reflectindo a estranheza da narrativa a que pretendem dar voz, mas de uma fluidez viciante, confere à história toda a vida de que precisa para realçar os seus melhores traços. E espelha na perfeição as falhas e vulnerabilidades de um meio feito de gente imperfeita.
Trata-se, pois, de um livro em que tudo se conjuga num equilíbrio delicado. Estranheza e universalidade, a simplicidade das gentes e a complexidade das suas circunstâncias, uma escrita que tanto é directa como poética, e uma narrativa em que o percurso de cada indivíduo dá forma à história do todo. A soma de tudo isto nunca poderia ser menos que memorável. Recomendo.
Título: Jesus Cristo Bebia Cerveja
Autor: Afonso Cruz
Origem: Recebido para crítica
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