terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Quando Servi Gil Vicente (João Reis)

Os nomes são uma coisa estranha e por isso Anrique habituou-se a ajustar o seu às suas circunstâncias, a fim de evitar, tanto quanto possível, os inconvenientes. E sob o nome de Anrique de Viena que se apresenta, mas é na sua função que está a sua verdadeira importância: servo de Gil Vicente, ilustre figura das letras e do teatro, nos seus derradeiros anos. E é enquanto fiel servidor que Anrique conta a sua história e a de seu amo: uma história talvez improvável, talvez ligeiramente bizarra, mas tão cativante e singular quanto surpreendentemente humana.
Sendo todo ele uma unidade coesa e difícil de dividir - como, aliás, o próprio texto, que quase exige ser lido de uma vez só - existem, ainda assim, duas facetas distintas que importa salientar: o estilo de escrita e a construção dos protagonistas. E é por estes que começo, pois é a sua singularidade que torna esta leitura tão surpreendente. Não se espere daqui uma visão adoradora do mestre no alto do seu pedestal. Gil Vicente é aqui um homem comum, ainda que de génio (nos dois sentidos da palavra) invulgar. E quanto a Anrique... bem, a sua condição de servo coloca-o numa posição única, de ter de lidar com o génio (irascível) do mestre e de conhecer ao mesmo tempo o seu génio (brilhante). E assim, a biografia improvável torna-se absurdamente plausível, nos momentos mais comuns e nos mais peculiares.
Quanto à escrita, sobressaem também duas ramificações: o registo individual deste livro e a comparação com outros livros do autor. Individualmente, destaca-se a evidente intenção de dar à voz de Anrique um registo ajustado ao seu tempo, bem como, a espaços, uma quase intenção por parte da personagem de imitar o mestre (o que é particularmente notável se tivermos em conta a forma como tudo termina). No conjunto da obra, destaca-se a capacidade quase camaleónica do autor de dar a cada uma das suas histórias a exacta voz que ela exige. Cada livro é como que um mundo novo, algo de totalmente diferente. E, ainda assim, a identidade está lá.
Da conjugação destas duas facetas, converge uma terceira que importa ainda reforçar: a tal coesão referida no início. É um livro que, sem estar dividido em capítulos, e não sendo, afinal, assim tão breve, pode parecer, ao primeiro folhear, ligeiramente intimidante. Pois bem, não o é. Muito pelo contrário. As páginas quase voam, o que é particularmente notável tendo em conta as suas múltiplas singularidades e a inevitável complexidade associada ao deambular mental de Anrique.
Tudo somado, o que fica é a imagem de uma leitura surpreendente em todos os aspectos. Singular na escrita, singular nas personagens e deliciosamente cativante na sua mistura de humano e de improvável. Estranha e memorável viagem ao passado, eis, pois, em suma, uma leitura a não perder.

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