segunda-feira, 12 de abril de 2021

O Salteador da Infância Perdida (José Jorge Letria)

É na infância que se começa a moldar aquilo em que nos tornaremos, em que influências, presenças e afectos começam a dar forma aos valores que nos acompanharão durante a vida. É também na infância que a imaginação se abre, pois tudo é possível, todas as explicações são aceitáveis e até a mais simples das histórias nos pode fazer sonhar. É a infância que, chegados à idade adulta, nos transporta, nas asas da nostalgia, de regresso à inocência e ao tempo dos grandes sonhos. E é para uma infância pessoal e transmissível - mas capaz de evocar todas as infâncias - que este livro nos transporta também.
Sendo embora um relato muito pessoal, das memórias do autor e das suas próprias experiências, um dos aspectos mais cativantes deste livro é a facilidade com que apela às nossas próprias memórias. Todos tivemos uma infância e todos guardamos tesouros - ainda que apenas em pensamento - desse tempo. E assim, embora estas memórias sejam pessoais, há nelas uma certa familiaridade, não nos acontecimentos, mas nos sentimentos e nas percepções. Até porque a história pode ser muito diferente para cada um de nós, mas há sempre elos comuns: laços de família, imaginação hiperactiva, a descoberta das palavras e do amor aos livros, aos animais, aos valores que nos fazem mover. É uma memória singular, mas com um toque de universal. E é esse delicado equilíbrio o que mais de marcante existe neste livro.
É, talvez, surpreendentemente breve, já que, atrás do fio destas memórias, parecem existir outras histórias - a começar pelo óbvio percurso posterior - que ficam apenas pela sugestão. Ainda assim, faz um certo sentido que assim seja, pois é da infância que se trata e das recordações necessariamente fragmentárias que ficam desse período. Além disso, embora feitas de momentos, estas memórias não deixam de convergir num todo coeso, que, construído a partir das memórias, projecta, ainda assim, como quase personagem, a figura do passado do autor.
Finalmente, importa referir a própria voz do texto, introspectiva e nostálgica, além de bastante poética, mas sem perder de vista o equilíbrio entre a narração das memórias e os sentimentos por estas evocados. Não faltam frases memoráveis e momentos enternecedores, apesar da relativa brevidade do texto. E há, além disso, um claro cuidado em abrir espaço para a reflexão e a imaginação, mas sem perder de vista a realidade.
Tudo somado, fica a impressão de uma leitura breve, mas vasta nas evocações, pessoal, mas com uma ligação intangível à infância de todos nós, e envolvente na forma como entrelaça memórias e pensamentos. Uma boa leitura, em suma, sobre a infância perdida... mas sempre recordada.

1 comentário:

  1. Desde sempre sou adepto do autor e obrigado pela sua cronica que permita encomendar o livro (não sabia dessa edição), cumprimentos do sul da França.

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