quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A Sibila (Agustina Bessa-Luís)

Sábia nos conselhos e astuciosa nas decisões, Quina ganhou entre as gentes da terra a reputação de sibila. Mas nem dotes sobrenaturais nem o dom da profecia definem a sua longa e solitária vida. Cerne de uma história que recua aos seus antepassados e se estende para além da sua vida, para Quina convergem memórias e ambições, interesses pessoais e sentimentos intensos. E, no fim de tudo, enquanto o tempo passa, a história de Quina é a do lugar das suas raízes, da casa que manteve de pé apesar das dificuldades e das gentes que, entre amores e ódios, povoam o seu caminho. Sibila sem profecias, mas guia de muitos caminhos, Quina é a humanidade no que a particulariza. E é a sua complexidade que a torna memorável.
Narrada como que ao ritmo da memória, partindo da história de Quina para divagar rumo a outras figuras, passadas e futuras, esta é uma história que, complexa no tempo e nas personagens que a povoam, nunca será de leitura fácil. É necessária toda a atenção para assimilar os muitos pormenores, os cruzamentos entre vidas e os caminhos e escolhas nos rumos de cada personagem. E, assim, o ritmo da narrativa é, inevitavelmente pausado, dispersando-se entre os muitos ramos que constituem a totalidade da história.
A própria escrita contribui para este ritmo pausado, com o seu registo introspectivo e, por vezes, de divagação, mas em que há uma estranha poesia em cada frase e em cada momento narrado. É como se, das próprias palavras se construísse a aura enigmática que rodeia toda a vida da protagonista, uma vida que se constrói sem grandes dramatismos, mas através de pequenos momentos marcantes e de um caminho onde as poucas - mas marcantes - grandes mudanças são como um rasgo de intensidade na calma geral.
O que acontece, então, é que lugares e personagens se vão entranhando, aos poucos, na memória, sem nunca se tornarem completamente conhecidas. Há tanto de revoltante como de comovente nos seus comportamentos e ainda a insinuação de uma maior complexidade naquilo que é deixado por dizer. E, assim, a história deixa de ser apenas a das personagens, mas transforma-se em reflexo de algo de mais vasto. Os interesses e as quezílias que aproximam ou separam as personagens são parte de uma história comum a muitos. E, quanto à passagem do tempo, ou ao surgir de tempos de mudança, há toda uma série de questões que se reflectem no comportamento ou nas ponderações das personagens. Que são apresentadas como suas, mas que se estendem numa perspectiva mais ampla.
O que fica, pois, terminada a leitura, é a passagem de uma impressão de estranheza e de distância à percepção de uma vasta complexidade, onde o particular e o universal se confundem. E onde nada é fácil e tudo exige esforço, mas um esforço que acaba por compensar. Vale a pena, pois.

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