Diz-se que o tempo não volta para trás. Mas e se, subitamente, a linha do tempo se invertesse? É isso que sucede com Tod Friendly - e com a estranha presença que, dentro dele, parece acompanhar, sem poder intervir, a sua vida. De repente, o mundo parece estar ao contrário. As pessoas andam às arrecuas, ficam mais novas em vez de mais velhas e encontram o fim da vida no momento do nascimento. E Tod? Tod parece ter uma boa vida na América, até ao dia em que a deixa de ter, viajando para Lisboa, e depois para Auschwitz onde desempenha o papel de assistente do "Tio Pepi", um estranho médico. Entretanto, a presença observa e espera que o mundo comece a fazer sentido. Mas não faz. E a percepção que conhece sobre a vida do seu corpo não pode ser outra coisa senão uma realidade também invertida.
Não é fácil falar sobre este livro, como não é fácil lê-lo. Não porque seja algo de demasiado hermético ou imperceptível, porque não é, apesar do ritmo bastante pausado, mas pela forma como, ao inverter a linha temporal, inverte também todas as percepções. E o que isto cria é uma narrativa de sentimentos contraditórios. Tod, a primeira identidade do protagonista, parece ser um homem suficientemente sociável, com uns quantos demónios interiores, mas normal quanto baste. E, assim, a visão que nos é transmitida pela tal presença (consciência?) que dá voz à história é a de uma situação um tanto caricata, a espaços quase divertida e em que, apesar de haver na origem um segredo, parece suficientemente inocente.
Depois, à medida que a narrativa progride, esta percepção vai mudando. Os segredos tornam-se maiores, mais sombrios, mais cruéis. E as facetas mais mórbidas de Tod vão-se revelando. E, quando se chega a Auschwitz, surge a faceta mais impressionante deste livro: a forma como o narrador entende aquilo que está a acontecer. As selecções, o trabalho, as experiências médicas, as câmaras de gás... Imagine-se isto visto ao contrário, a começar a partir da morte. Será assim tão estranho que o narrador inocente (ou esquecido) queira interpretar o que vê como algo bom? E é isto que levanta as grandes questões, realçando a verdadeira meticulosidade, a "natureza da ofensa", de tudo aquilo que foi feito. De uma forma tão organizada que, invertendo os passos, facilmente se veria um processo de cura, em vez de morte.
Esta é provavelmente a parte mais marcante do enredo e a que mais faz pensar. Mas não é a única. Ao longo de toda a vida de Tod Friendly (ou de qualquer das suas outras identidades) há um percurso de recriação de uma vida. E, neste mundo virado ao contrário, que não faz - nunca fará - sentido para o narrador que assim o vê, há muitas pequenas grandes perguntas a considerar: o valor da vida, a possibilidade (ou não) de uma relativa redenção, a crueldade dos grandes actos e a dos pequenos gestos, o direito "à vida e ao amor" e o cercear deste direito.
E quanto à inversão do tempo? Bem, é preciso reconhecer que dificulta a leitura, quando há conversas a decorrer ao contrário e actos que, vistos deste ponto de vista, não parecem fazer muito sentido. Mas não deixa de ser uma forma interessante de contar uma história - e uma forma que se ajusta na perfeição à reflexão que lhe está inerente. E, assim sendo, vale bem a pena o esforço suplementar para assimilar as peculiaridades deste livro.
Não é fácil ler este livro que, com a sua visão peculiar, o lado mais negro do que conta e as muitas questões que desperta, se entranha profundamente na memória. Mas é importante lê-lo. Importante, porque faz pensar, porque lembra o que não pode ser apagado. E porque, apesar de toda a sua estranheza, é um livro que dificilmente se esquece. Vale, pois, a pena fazer esta viagem no tempo.
Título: A Seta do Tempo
Autor: Martin Amis
Origem: Recebido para crítica
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