quinta-feira, 12 de julho de 2012

O Exílio do Último Liberal (Sérgio Luís de Carvalho)

Alguma precipitação e o excesso de convicção da juventude fizeram com que Salvador se visse envolvido numa emboscada que acabou por revelar intenções diferentes que as que este lhe conhecia. E correu mal. Assim, Salvador vê-se subitamente em fuga e acaba por ir parar a Londres, onde outros exilados do conflito entre liberais e absolutistas o arrancam à miséria. Salvador dá por si com a estabilidade possível: um emprego junto a um eminente médico num hospital escolar e a descoberta do amor na figura de uma costureira ruiva. Aí, espera notícias de mudança no seu país e constrói as suas poupanças, na perspectiva de um dia regressar à pátria. Mas tudo pode mudar quando o olhar de um poderoso juiz desce sobre a sua Rose e, para a ter na sua posse, está disposto a rebuscar as trangressões de Salvador e do médico que este serve. Principalmente porque sabe que é na sua palavra que o mundo acreditará...
São várias as características que se conjugam para fazer deste livro uma obra fascinante. Desde a escrita envolvente, fluída, sem grandes elaborações, mas bela na harmonia nas palavras, à forma como a história particular dos protagonistas se equilibra com um contexto histórico claro e bem construído, mas que nunca se torna monótono na forma como é exposto, passando ainda pela forma como o passado se entrelaça com o presente da narrativa, no que constitui uma visão marcante de como as cicatrizes do passado permanecem na mente (e no coração) do protagonista, tudo isto são elementos que contribuem para que esta história seja, ao mesmo tempo, complexa e fácil de acompanhar, num ritmo viciante em que acção e emoção se misturam no equilíbrio perfeito.
E a história fascina tanto pelos acontecimentos que narra, como pelos contrastes que resultam destes acontecimentos. O abismo que separa os prósperos e os miseráveis é representado em todas as suas vertentes: na oposição de ambiente entre as ruas dos poderosos e os becos miseráveis, no tratamento dado aos corpos após a morte (e aqui destaca-se como muito particularmente interessante a contextualização em torno da Lei Anatómica) e, principalmente, a credibilidade dos ricos sobre a dos pobres como meio para que os poderosos se possam impor em tudo o que pretendam. Levantam-se assim várias questões interessantes, que, em conjunto com a visão bastante clara, ainda que secundária ao enredo principal, do contexto da época, conferem à história mais pessoal dos protagonistas uma nova complexidade que abre portas para uma perspectiva mais ampla.
Há, portanto, um vasto conjunto de elementos na base do que define a narrativa e o autor conjuga-os com mestria. O resultado final uma história interessante, com o equilíbrio adequado entre acção, contexto e emoção e um leque de personagens carismáticas e com as quais é fácil criar empatia, tudo isto escrito com fluidez e harmonia cativantes, numa obra que cativa desde a primeira página.
Emotivo e surpreendente, próximo na relação com as personagens e complexo no seu retrato de uma época, O Exílio do Último Liberal apresenta, com a sua narrativa envolvente e a mestria como conjuga os dilemas pessoais e as questões universais, uma história de leitura compulsiva e uma obra simplesmente fascinante. Recomendo sem reservas.

3 comentários:

  1. Poderias-me informar como se chama a profissão que o Salvador tinha durante a noite? ( Pelo que ouvi na rádio tinha a ver com levantamento de corpos nos cemitérios)

    ResponderEliminar
  2. O autor chama-lhes ressurreccionistas. E a profissão consiste basicamente no que disseste: o grupo de que ele fazia parte roubava cadáveres nos cemitérios para depois serem usados em aulas de dissecação.

    ResponderEliminar
  3. Obrigada.Pelo que o autor disse era uma profissão mais ou menos aceite, exceptuando se fosse apanhado a levantar esses corpos. Sim era para essas aulas, provavelmente em escolas de medicina devido a escassez desse material e só terem acesso a corpos de pessoas decapitadas, e aí essa profissão abastecia o "mercado".

    ResponderEliminar