domingo, 3 de março de 2019

Uma Furtiva Lágrima (Nélida Piñon)

A escrita, o mundo, os deuses, a história, a fé. Pensamentos, vivências, sentimentos e percepções. E um mundo interior tão vasto que ora parece abranger toda uma vida, ora se resume em poucas linhas. É esta a imagem que este livro, feito de memórias, pensamentos e breves ensaios, transmite a quem o lê: uma experiência pessoal e única, mas que tem algo de abrangente e intemporal.
Feito essencialmente de pequenos textos, dedicados aos mais diversos temas e percepções, este é um livro que, funcionando mais como uma recolha de memórias dispersas do que como um registo biográfico, passa uma impressão algo fragmentária. É quase como se houvesse toda uma outra vida para contar para lá destes pequenos elementos. E, no entanto, e apesar desta inevitável curiosidade insatisfeita (principalmente quando o que é revelado é já tão interessante), fica também a curiosa sensação de um tudo equilibrado. Há textos em que a autora se revela a si mesma ou à sua história familiar. Noutros dedica-se a analisar figuras históricas, mitos ou factos concretos que contrastam com a abstracção dos textos mais introspectivos. E, assim, o que acontece é que há um pouco de tudo e um todo vasto e completo que tanto cativa numa leitura sequencial como no possível regresso a um texto particularmente marcante.
É na escrita, porém, que tudo se eleva a um novo nível. Todos - ou quase todos - os textos são bastante breves e, todavia, parecem ter precisamente a medida adequada. Nalguns casos, bastam duas ou três frases para traçar o quadro completo e, por isso, embora curto, nada falta a esse texto específico. Noutros, principalmente nos dedicados à história, exige-se uma maior contextualização e, por isso, o texto alonga-se, mas nunca se torna aborrecido. E eis que surge aqui um novo contraste: entre observações simples e certeiras e ponderações mais elaboradas, entre a brevidade das coisas simples e as que inevitavelmente reflectem uma maior complexidade. 
Há, claro, elementos recorrentes, figuras e ideias que surgem mais do que uma vez ao longo do livro. Ainda assim, também esta aparente circularidade consegue não se tornar cansativa, pois cada texto acrescenta algo de novo, seja um pormenor diferente ou uma perspectiva alterada pelo tempo.  
Terminada a leitura, fica uma impressão claramente positiva: a de um conjunto de visões e pensamentos que, nascidos de uma relativa simplicidade, convergem num todo mais vasto e sempre muito cativante. Trata-se, pois, de uma boa leitura, que desperta a curiosidade em conhecer mais da obra desta autora. 

Autora: Nélida Piñon
Origem: Recebido para crítica

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