terça-feira, 23 de novembro de 2021

Do Rio ao Mar (Manuel Rui)

Do rio ao mar, fluxo eterno e inevitável das águas... mas não só. Também de fluxos são feitas as vidas dos homens e também eles percorrem caminhos de descoberta, de criação e de perda. Como a família que, discretamente, se vai revelando nas palavras deste livro, homem, mulher e criança, plenamente inseridos no costume e na mitologia da comunidade a que pertencem, mas confrontados com a necessidade de migrar, de fluir. São história sem história, caminho feito de falas discretas... mas caminho, ainda assim, do rio ao mar.
Às vezes, ao ler um livro breve, fica a impressão de que tudo é demasiado conciso, de que mais haveria a dizer. Seria, aliás, de esperar essa impressão neste livro, pelo menos até certo ponto, pois vive mais de imagens poética e os acontecimentos insinuam-se nas sombras da imagem. Pois bem, não é assim. A brevidade é a forma perfeita para este percurso, pois traça linhas individuais, mas deixa em aberto percursos comuns. A tribo, os hábitos, as pragas, as guerras, a fuga, são passos muito específicos desta viagem. Mas têm o seu lado universal e o facto de tanto ser deixado à imaginação de quem lê torna essa universalidade mais óbvia.
Outro aspeto que sobressai é, naturalmente, a parte visual. É um livro bonito de folhear, com os seus contrastes de preto e branco. E é também um livro enigmático, já que as ilustrações algo ambíguas, mas estranhamente adequadas, evocam na perfeição a aura a modos que tribal que brota das palavras.
Ainda um último ponto a destacar é a inesperada emotividade que transborda das palavras. Sendo um texto essencialmente poético, em que acontecimentos e visões surgem de forma relativamente ambígua, não deixa de ser notável a forma como estas personagens aparentemente difusas acabam por se entranhar no coração. Além disso, esta voz mais poética, mais vaga, está repleta de frases memoráveis, que acabam por ir para lá do percurso individual das figuras que vão surgindo.
Muito breve, mas muito cativante, é quase tanto o que diz como o que deixa em aberto. Mas essa ambiguidade acaba por ser também uma força, pois funciona como um apelo à imaginação. Afinal, é de fluxos que fala... e o fluxo do imaginário vive em todos nós.

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