sábado, 12 de fevereiro de 2022

Comissário Ricciardi - Primeiros Inquéritos (Maurizio de Giovanni)

Foi inspirado pelo desejo de justiça e assombrado desde a infância por uma maldição inquestionável que o comissário Ricciardi escolheu a polícia como sua vocação. E é certo que a sua singularidade - a capacidade de ver os últimos momentos de quem morreu de forma violenta - lhe traz algumas vantagens nas suas investigações. Mas, suspenso sempre entre os vivos e os mortos, e ancorado a uma vida onde a justiça é, por vezes, contornável, nem sempre o comissário Ricciardi consegue concretizar a missão que escolheu. E as suas primeiras investigações são prova disso. Descobrir a verdade tem um preço. E há culpados que conseguem fugir às consequências...
Um dos primeiros aspetos a sobressair neste livro, pese embora o facto de o seu impacto resultar também do equilíbrio entre os vários elementos, é inevitavelmente a parte visual. Sendo um livro a preto e branco, vive muito dos jogos de luz e de sombra, da forma como as sombras na expressão das personagens enfatizam os acontecimentos, da forma como, não havendo cor, os contrastes enfatizam a luz ou a escuridão de cada momento. Mas, mais do que isso, há uma complexidade nos cenários, uma vastidão de pormenores, que quase transborda das páginas. E não só na caracterização dos locais, mas na própria atmosfera - ou não estivesse este livro cheio de chuva.
Passando agora ao texto, sobressai também um aspeto singular: a voz do protagonista. Ao ser ele a contar a sua história, assumindo, além dos seus diálogos, o papel de narrador, expõe-se num registo mais intimista, mais introspetivo, enfatizando ainda mais a proximidade que resulta, desde logo, das suas circunstâncias. Além disso, tendo em conta a linha geral dos três casos apresentados neste livro, há sempre um elo pessoal, não só pela sua visão das vítimas, mas pelo impacto que os casos têm na sua perceção da vida. E isso gera empatia profunda - e um fascínio igualmente intenso.
Finalmente, sobressai a construção das personagens. De Ricciardi, obviamente, com a sua maldição singular e a forma como dita todos os aspetos da sua vida. Mas também de Maione, com a sua surpreendente inocência e as suas próprias sombras. São duas figuras complexas, mas com algo de verdadeiro no seu âmago. E isso torna-as marcantes, memoráveis. Acende a vontade de as conhecer melhor.
Feitos de crime e de mistério, com um rasgo sobrenatural, mas também com uma base profundamente humana, estes Primeiros Inquéritos revelam um protagonista forte e complexo, com um percurso pessoal sempre intrigante num mundo cheio de ambiguidades, onde os bons valores nem sempre são o que permanece. Mas é também essa a beleza dessa história: a da integridade no meio das sombras. Uma integridade sólida, fascinante e inesquecível - como este livro.

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