Amor sagrado e amor obsceno, espiritual e carnal. Duas facetas do amor completamente opostas - mas talvez também complementares. E que melhor exemplo desse contraste que as duas obras que se conjugam neste Livro Amarelo? O Cântico dos Cânticos, mil vezes reinterpretado para servir a metáfora mais conveniente e, porém, explicitamente feito de amor - espiritual e carnal. E o Manual de Civilidade para Meninas, profano, blasfemo, por vezes incrivelmente obsceno... e, porém, analisando da forma mais crua a hipocrisia da sociedade da moral e dos bons costumes. Não podiam ser mais diferentes, provavelmente. E, contudo, o conjunto cria uma estranha harmonia...
Uma das características mais interessantes destes Livros Amarelos é a forma como, conjugando duas obras contrastantes, e associando-lhes depois alguns ensaios e notas bibliográficas, se constrói um todo que é mais que a soma das partes. Sim, cada obra é completa em si mesma, mas associando-lhe os textos complementares (neste caso, de Eugénia de Vasconcellos - responsável também por esta versão do Cântico dos Cânticos - e Manuel S. Fonseca) cria-se uma percepção mais vasta, mais completa do todo. Algo que, neste livro, se torna particularmente interessante, tendo em conta que há, para ambas as obras, interpretações possíveis para além do que o texto diz.
Mas passando às obras. O Cântico dos Cânticos dispensa apresentações. Poema de amor sagrado entre o amado e a amada, expressa esse amor em todas as suas facetas. Não é uma história, e contudo há algo a acontecer entre as suas figuras centrais. Não é (por mais interpretações nesse sentido que se lhe tenham dado) propriamente um texto de fé, e contudo há algo de sagrado nas suas palavras. É, sim, e acima de tudo, um texto de amor e na expressão desse amor há muita beleza e harmonia.
Quanto ao Manual de Civilidade para Meninas, é mais complexo de digerir. Conjunto de aforismos obscenos e, principalmente, irónicos, se se interpretar à letra, pouco mais parece do que um conjunto de estranhas blasfémias (principalmente se se tiver em conta a época em que foi escrito). Mas aqui importa ter em conta a interpretação referida por Manuel S. Fonseca: é que há mais no texto do que aquilo que se lê. Considerando a sociedade dos bons costumes, as estritas regras da etiqueta social e a necessidade de evitar o escândalo a todo o custo, pode ver-se cada um destes conselhos como uma estocada irónica na hipocrisia das tais regras sociais. Se isso torna a leitura mais fácil? Não propriamente. Ainda assim, tendo a concordar com esta interpretação.
E, mais uma vez, importa ainda realçar as peculiaridades da edição, que fazem deste novo Livro Amarelo uma pequena beleza em termos visuais. Invulgar em todos os aspectos, é um livro que cativa ao primeiro olhar, pois, com todas as suas peculiaridades visuais, rapidamente desperta curiosidade para o conteúdo. E este é também um dos pontos fortes deste livro - ou, melhor dizendo, da colecção de que faz parte.
O que chamar, então, a este livro senão um livro de contrastes? Contraste entre o sagrado e o obsceno, como já disse, o espiritual e o carnal. E, porque nunca é demais repetir, contraste - mas também complementaridade, formando um equilíbrio delicado. Equilíbrio que é o mais fascina - e faz com que valha a pena descobrir este livro.
Título: Cântico dos Cânticos / Manual de Civilidade para Meninas
Autores: Salomão / Pierre-Félix Louÿs
Origem: Recebido para crítica
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