Com quase oitenta anos, dois filhos adultos e uma vida cheia de erros e arrependimentos, Cesare Annunziata decidiu deixar de se preocupar com os outros. Não que alguma vez tenha sido muito altruísta, mas, ao olhar para os erros cometidos no passado, Cesare decidiu viver o melhor possível o tempo que lhe resta. E para ele, isso significa sossego: uma vida tranquila na casa onde vive sozinho, com a companhia ocasional do amigo do andar debaixo, as visitas a uma prostituta com quem se relaciona bastante tempo e as esporádicas interacções com a velha vizinha e os seus muitos gatos. Mas tudo muda quando uma suspeita se lhe insinua no pensamento: a nova vizinha é maltratada pelo marido. E, por muito que queira olhar para o lado, Cesare dá por si incapaz de ignorar o que se passa. Vê-se, portanto, diante de um dilema: como pode ajudar Emma sem perder a tranquilidade que tão empenhadamente cultiva? E quantos segredos não há nessa falsa tranquilidade?
Partindo de um protagonista que parece querer a todo o custo alimentar a imagem do velho rabugento - ao mesmo tempo que se distancia o mais possível da temida palavra velhice, este é um livro que cativa, em primeiro lugar, pela forma como molda primeiras impressões não muito positivas, para revelar uma realidade muito mais vasta e complexa. E o exemplo perfeito disso é o próprio Cesare. Primeiro, apresenta os seus defeitos, não só enunciando-os, mas demonstrando-os em actos. E, depois, aos poucos, vai revelando um belo conjunto de qualidades que, não, não apagam o impacto das falhas, mas que mostram o lado humano do auto-proclamado embusteiro. E isto estende-se também às outras personagens, pois a primeira impressão que Cesare transmite delas não é propriamente a mais positiva, mas o que acontece depois vem desmentir essa impressão.
Ora, estando Cesare no extremo oposto da imagem do velhinho simpático, não é de esperar, à partida, uma história fofa e ternurenta. Não, quando o protagonista vê a vida de uma forma tão cínica, são os erros, os tropeções, as dificuldades - a crueldade geral da vida, enfim - o que sobressai. E contudo... também há espaço para a ternura e para a descoberta dos afectos. E é esta descoberta, feita no meio de uma história que, a espaços, consegue ser muito cruel, que acaba por tornar tão forte o impacto dos momentos mais emotivos.
No fundo, a mudança do protagonista acaba por não se dever apenas à necessidade de ajudar a vizinha, expandindo-se também para as outras pessoas que o rodeiam. E, de problema em problema, Cesare dá por si a resolver muitas coisas - à sua maneira. Quanto ao resto... bem, nem tudo na vida tem solução e é por isso que a forma como o livro termina, por mais dura e inesperada que possa ser, é precisamente a que mais sentido faz.
História de coisas simples e emoções complexas, viagem a uma velhice ainda feita de força de vontade e ao mundo de um protagonista que se torna melhor ao sair do fundo dos seus silêncios, este é, portanto, um livro que surpreende em todos os aspectos. E que, com uma mensagem positiva mesmo nos momentos de maior cinismo, acaba por ser também um bom ponto de partida para reflectir sobre o significado da vida. Muito bom.
Título: A Tentação de Sermos Felizes
Autor: Lorenzo Marone
Origem: Recebido para crítica
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