quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A Solidão de Sermos Dois (Maria João Carrilho)

Na vida de Liza há um grande mistério, o de não saber quem é o pai. E parece que esse mistério é também comum à sua mãe, que também não conheceu o seu em criança. Mas a família, essa, parece mais vasta - principalmente, porque cada elemento parece ter múltiplas e contraditórias facetas. Enquanto Liza procura respostas na mãe e na avó, os segredos de Laura e Filomena vêm também à superfície. E há amores ceifados cedo demais, relações proibidas - e uma figura que parecia ser um amigo, mas que era afinal tudo menos isso...
Relativamente breve, e abrangendo contudo vidas inteiras, este é um livro que vive tanto daquilo que conta como do que é apenas insinuado. Talvez por isto seja esta a faceta que mais acaba por ficar retida na memória: a de uma história onde muitas perguntas ficam sem resposta, e em que muitas das respostas parecem ser algo vagas, mas que atinge, ainda assim, um cativante equilíbrio entre o que de facto é revelado e o que se julga ficar a saber. 
É também um livro de sentimentos contraditórios, até porque os saltos temporais nos permitem ver as personagens em diferentes fases da sua vida - com novos conhecimentos a determinar novas posições. Se, a espaços, uma personagem parece cativar pelo seu estranho carisma, logo uma faceta mais sombria vem à tona. E quanto à relação entre as mulheres desta história... bem, é complexa. É algo disfuncional, também. Mas, com todas as suas teias e meandros, contém também bastante do possível e isso torna fácil imaginar qualquer destas personagens como uma pessoa real.
Mas é na escrita que está o encanto. Numa história em que as figuras centrais tanto despertam amor como aversão e em que os mistérios e experiências alcançam tudo menos uma resolução absoluta, é a escrita que sustenta o equilíbrio global. Pois as palavras fluem com naturalidade, dão vida às emoções e transbordam da estranha melancolia que parece preencher toda a narrativa. O resto da vida pode ficar sem resposta - mas a alma essencial das personagens está lá. Nas palavras.
Ficam, pois, os tais sentimentos contraditórios. Mas principalmente a sensação de ter entrado numa história capaz de conter, em poucas dezenas de páginas, as complexidades de uma vida inteira. O que fica por dizer torna-se secundário... porque o essencial da vida - e das palavras - está lá, nesta pequena, mas cativante leitura.

Autora: Maria João Carrilho
Origem: Recebido para crítica

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