terça-feira, 30 de outubro de 2018

O Solilóquio do Rei Leopoldo (Mark Twain)

Foi com alegadas intenções piedosas e a mais altruísta das inspirações que Leopoldo II, rei da Bélgica, conseguiu obter para si o governo do Estado Livre do Congo. Só que, nas mãos de Leopoldo... nem livre, nem estado. E se, durante algum tempo, as suas influências e alegadas boas intenções lhe permitiram fazer daquele território o seu próprio "coração das trevas", a oposição acabaria, ainda assim, por chegar. Entre as vozes contrárias contar-se-ia, claro, a de Mark Twain, que, neste curioso solilóquio, consegue, ao mesmo tempo, satirizar a figura real, questionar a aceitação das outras potências e relatar com toda a clareza as linhas essenciais da atrocidade.
Sendo certo que o Solilóquio é, em si, bastante esclarecedor, tanto pelo muito que exprime no texto como pelas imagens que o acompanham, importa começar por referir o extenso e também esclarecedor prefácio de António Araújo. É que livros como O Coração das Trevas podem ter tornado esta história bastante célebre, mas não deixa de ser essencial entender o contexto e as forças em movimento que permitiram que tudo acontecesse. O prefácio é, pois, uma viagem em si mesmo, permitindo compreender os acontecimentos, vislumbrar o alcance das atrocidades e, depois, conhecer também os movimentos da oposição, entre os quais se contaria o próprio Solilóquio.
Importa também dizer que, embora construído como que em estilo de dramatização, este é essencialmente um manifesto - embora seja absurdamente fácil imaginar Leopoldo II a barafustar contra os que o "caluniam" com a verdade. Assim, mais do que o estilo (e, diga-se, quase bastaria o estilo para que a leitura valesse a pena) destaca a mensagem que as palavras transmitem: o relato da brutalidade, que é, em si, factor de choque, mas que serve também de base para uma reflexão sobre o potencial corruptor do poder, principalmente quando concentrado nas mãos de um só homem.
E talvez seja uma coisa estranha de dizer sobre um texto satírico, mas a verdade é que, neste livro, Mark Twain soa invulgarmente sério. Talvez devido ao tema em si (e é do mais sombrio que se pode imaginar) ou a um pessimismo inerente, mas há algo de notável na forma como, de um texto que quase ridiculariza o seu protagonista, é possível nascer uma imagem tão grave.
É uma leitura relativamente breve e bastante cativante - e isto aplica-se tanto ao Solilóquio como ao muito interessante prefácio. Mas é, acima de tudo, um livro pertinente, não só para manter na memória as crueldades passadas, mas para lembrar a facilidade absurda com que, por vezes, as liberdades se apagam. Muito interessante.

Autor: Mark Twain
Origem: Recebido para crítica

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