domingo, 14 de julho de 2019

A Holandesa (Ellen Keith)

Amesterdão. Intensificam-se os esforços dos nazis no sentido de combater os actos da resistência e é nesse âmbito que Marijke De Graaf e o marido são detidos, separados e enviados para campos de concentração. É também esse o ponto de partida para a primeira escolha difícil de Marijke: resignar-se aos trabalhos forçados ou ser enviada para Buchenwald, onde julga estar o marido, tornando-se prostituta no bordel do campo. Na esperança de reencontrar Theo, Marijke escolhe a segunda opção, sem saber que se tornará alvo das atenções de um importante oficial das SS. Este, Karl Müller, tem dúvidas sobre aquilo que está a fazer, mas as expectativas do pai e a retórica do regime levaram-no a aceitar todas as ordens como aceitáveis. E, embora a relação com Marijke o leve a questionar algumas coisas, será o instinto de sobrevivência a sua força motriz. A mesma que, anos mais tarde, levará um outro prisioneiro num país diferente a questionar - demasiado tarde - os seus próprios actos de resistência.
Dividido entre três protagonistas, com relações mais ou menos evidentes, o que mais sobressai neste livro é a capacidade de construir grandes histórias pessoais em dois dos momentos mais negros da história universal. Se a ligação entre Karl e Marijke cedo se torna bastante evidente, a relação com Luciano é bastante mais ambígua. E, ainda assim, é uma história que pertence. Porquê? Porque, mais do que as relações e os mistérios, é o percurso individual de cada um que marca. Marijke, a resistente que aceita o impensável para tentar encontrar o marido, vendo-se depois dividida entre a simples sobrevivência e sentimentos ambíguos. Luciano, também ele um resistente capturado e protagonista da sua própria descida aos infernos. E Karl, provavelmente a personagem mais ambígua de todo o livro, já que a autora começa por o apresentar como um nazi resultante, para depois expandir a sua descida à indiferença e à suma crueldade.
Apesar das relações existentes, e que se vão insinuando aos poucos, é, por isso, na jornada pessoal que estão os grandes momentos. E há muito de impressionante ao longo do caminho. Muita crueldade, acima de tudo, ou não fossem prisões os cenários dominantes. Mas também muito material para reflexão, muitas questões que, embora situadas num inferno global, adquirem uma índole mais pessoal - os sentimentos secretos de Luciano, a espécie de síndrome de Estocolmo de Marijke, a cumplicidade na sombra do medo constante - e muitos momentos perturbadores. Talvez seja também por isso que o final deixa sentimentos contraditórios, pois não há grandes revoluções nem grandes reviravoltas: apenas a recuperação possível, para alguns, a inevitável justiça poética, para outros, e o simples fim. Não é o final estrondoso que talvez fosse de esperar, mas é um final adequado. É o final que faz sentido, pois quase parece afirmar algumas grandes certezas da vida: há coisas que são insuperáveis; nem sempre os heróis vencem; e a verdade nem sempre liberta.
Há, pois, como que um grande contraste. De um lado, a fluidez de uma escrita que transporta para o mundo das personagens e dá vida aos muitos e notáveis momentos de emoção e de sofrimento. Do outro, as certezas difíceis. Quando um dos protagonistas é um nazi, é fácil antever que nem tudo acabará bem. Mas são as pequenas coisas que abalam, os gestos afáveis de um monstro, os perigos de pensar e questionar, a hesitação entre a mentira benevolente e uma verdade capaz de rasgar o mundo. Nada é fácil - e, porém, a leitura flui com uma simplicidade arrasadora. E este é um equilíbrio tão estranho quanto impressionante.
É difícil descrever as impressões que ficam deste livro, mas uma coisa é certa: são fortíssimas. E, entre a ambiguidade das personagens e o final que, embora aberto, parece ser também o mais adequado, ficam acima de tudo as emoções fortes e o cenário de crueldade que, embora povoado por personagens fictícias, não deixa, ainda assim, de ser bem real.

Título: A Holandesa
Autora: Ellen Keith
Origem: Recebido para crítica

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