segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Alpendre a Cinco Vozes (Antero Barbosa)

Com vista para um legado antigo, para um extenso (e prontamente delapidado) património e para as memórias de uma família antiga, o Alpendre tornou-se o trono do reino do Menino QuiNando, que, fruto da fortuna e da educação, ficou menino até aos setenta anos. Mas a mesma fortuna que leva décadas a construir só precisa de alguns anos para se ver reduzida a nada, e eis que os restos do privilégio do Menino QuiNando se esfumaram com o abandono da Terceira Mulher. Agora, o Alpendre tem outro dono, e só o Sol e o povo se lembram de como era. E até a amizade de um gesto aparentemente bondoso pode esconder intenções egoístas e rancores à espera de despontar.
Com as suas cinco vozes e uma história que é feita mais de impressões do que propriamente de uma linha temporal precisa, este é um livro que, apesar da relativa brevidade, se torna difícil de descrever. Por um lado, porque as oscilações na linha temporal fazem com que seja difícil referir acontecimentos sem revelar os segredos ambíguos que se escondem nesta história. Depois, porque alguns desses segredos permanecem exactamente assim: ambíguos, sem uma resposta definitiva. E, finalmente, porque a narrativa acaba por viver tanto das impressões interiores - memórias, sentimentos, meditações - como dos acontecimentos propriamente ditos.
É, pois, um livro difícil de explicar, mas que, ainda assim, proporciona uma leitura estranhamente fluida. Talvez devido aos laivos de poesia que, sem nunca caírem no excesso, conferem ao romance um tom de profunda introspecção. Ou talvez porque há em todo o percurso uma melancolia que, embora difícil de despertar uma identificação directa (afinal, o Menino QuiNando vinha de vasta fortuna), consegue, ainda assim, gerar reflexões notáveis: sobre como tudo é efémero, fortuna, juventude e amor. Sobre como as boas intenções escondem, por vezes, sentidos ocultos. E, acima de tudo - ou não tivesse esta história cinco vozes - sobre como as coisas mudam consoante a perspectiva de quem as narra.
Poderia talvez ser um pouco mais extenso, mas tendo em conta o enigma que parece estar no âmago desta história - e por enigma entenda-se o simples facto de muito do que aconteceu ser mais insinuado do que relatado com todo o pormenor - e a forma como a ambiguidade parece assumir quase um papel de personagem, a brevidade acaba por fazer um certo sentido. Além disso, se a história vive mais de impressões do que de factos - e das percepções divergentes de entes e personagens - então é apenas natural que as coisas fiquem em aberto. Ninguém sabe tudo. Nem o Sol.
Ambíguo, mas estranhamente cativante, introspectivo e surpreendentemente poético, eis, pois, um livro que, em pouco mais de cem páginas, conta a história de múltiplas gerações sob a forma de um legado desfeito. E é esta imagem da vida - que brota, constrói e desfaz - que faz com que esta breve leitura acabe por ficar na memória. Isso, e a excentricidade do eterno Menino QuiNando.

Autor: Antero Barbosa
Origem: Recebido para crítica

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