sábado, 7 de maio de 2022

Enfermaria (Ana Paula Jardim)

Dificilmente a primeira imagem a surgir no pensamento ao pensar em poesia seria a de um hospital. E, no entanto, poucos locais contêm tantas histórias, tantas transformações, tantos ciclos de vida e morte, tanta emoção. E todos estes elementos compõem, de certo modo, uma forma de poesia muito singular, simultaneamente pessoal e aberta, enraizada do real, mas estendendo ramos para o sagrado, e capaz de se entranhar no pensamento com a sua proximidade indefinível. Assim é a poesia deste livro.
Ao tentar caracterizar um poema ou conjunto de poemas, contemplam-se geralmente dois aspetos: forma e conteúdo. E são aspetos que tenderão a convergir para um todo equilibrado. Neste caso, o equilíbrio é tão coeso que a linha entre as duas facetas quase se esbate, tal é a precisão com que a palavra se ajusta ao que tem para evocar.
Olhemos, ainda assim, para estas duas partes, pois ambas têm aspetos a destacar. Da forma, sobressai uma estrutura muito livre, sem normas rígidas de rima ou métrica, mas em que o ritmo resultante da cadência das palavras assume uma fluidez quase hipnótica. São, aliás, do tipo de poemas que soam especialmente bem lidos em voz alta, pois assumem, por vezes, um tom de quase profecia.
Do conteúdo, destacam-se os equilíbrios e contrastes, o entrelaçar do ambiente estéril da enfermaria com a profusão de memórias e emoções que aí habitam, da implacabilidade do ciclo da vida com as perceções do sagrado, da presença num local de vida e morte de outras vidas passadas e futuras. Há algo que ecoa na alma de forma quase inconsciente, com esta fusão de imagens singulares e estranhamente familiares.
E o que fica então deste livro é uma contemplação da vida no seu mais frágil e persistente, construída com uma voz única e fascinante cujos ecos ficam na memória bem depois de terminada a leitura. Breve, mas muito belo, um livro inesquecível. 

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