Na sequência do naufrágio do Lady Vain, Edward Prendick é resgatado por um estranho navio. O capitão parece estar permanentemente bêbedo, o convés está cheio de animais e a única pessoa com quem parece possível manter uma conversa é Montgomery, o médico que lhe salvou a vida. Mas também Montgomery tem os seus segredos e quando, após uma birra do capitão, Prendick acaba por ser também largado na misteriosa ilha à qual se destinavam todos aqueles animais, a estranheza começa a tornar-se por demais evidente. Os habitantes parecem estranhos. E Moreau, o homem com quem Montgomery parece colaborar, esquiva-se a quaisquer explicações quanto às experiências que leva a cabo naquela ilha. Começam a formar-se suspeitas no espírito de Prendick. Mas, apesar da sua imaginação fértil, ele está muito longe de imaginar o que realmente se passa... e as possíveis consequências de tudo isso.
Mistura de mistério e de aventura com uma muito pertinente questão subjacente, a dos limites éticos da experimentação em seres vivos, este é um livro em que cativam mais os acontecimentos e o contexto do que propriamente as personagens. Prendick desperta empatia, claro, dadas as suas circunstâncias, mas a forma como ele, Moreau e Montgomery lidam com o que se passa na ilha é, no mínimo, questionável. É, aliás, assim que deve ser, pois realça a tal questão ética que é, no fundo, a base de toda a narrativa. Mas é curioso que, não sendo propriamente personagens simpáticas, também não são da matéria dos detestáveis, percorrendo, antes, conforme as circunstâncias, a longa linha que separa um extremo do outro. Cria-se, assim, um certo equilíbrio, que põe a humanidade (ou falta de) das personagens em contraste com os comportamentos do Povo Animal.
Outro aspecto curioso é a forma como o autor desenvolve o contexto de tudo o que está a decorrer na ilha, descrevendo ao pormenor locais, teorias e experiências levadas a cabo. E, neste aspecto, é interessante ter em conta a época em que o livro foi escrito e a evolução da ciência desde então, pois, sendo o conhecimento diferente, torna-se particularmente intrigante a caracterização que o autor constrói para os métodos de Moreau. Claro que esta vasta componente descritiva torna a leitura mais pausada e até um pouco mais distante, pois o cenário acaba por ser tão desenvolvido como as pessoas que o povoam. A imagem global, contudo, acaba por ser muito mais completa.
E depois há ainda outra questão subjacente: o que diferencia os seres humanos dos animais. A forma como o autor caracteriza o povo animal, a visão que Moreau tem deles e, depois, as experiências vividas pelo próprio Prendick, despertam algumas perguntas que, não encontrando necessariamente uma resposta certa, ficam no ar bem depois de terminada a leitura. Também isto contribui para o impacto final da narrativa, pois deixa à imaginação do leitor a ponderação sobre as questões mais pertinentes.
E é esta a imagem que fica da soma das partes: uma história cativante e surpreendente, com um ambiente repleto de mistério e de estranheza, em que nem tudo é exactamente o que parece e há uma visão maior por detrás do mais pequeno dos aspectos. Intrigante e muito relevante, uma boa leitura.
Título: A Ilha do Doutor Moreau
Autor: H.G. Wells
Origem: Recebido para crítica
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