A vida é feita de memórias... e das lacunas que o tempo e o acumular de experiências vão abrindo por entre essas memórias. A Jean Eyben, restam-lhe as memórias de um caso aparentemente pouco relevante, que lhe caiu nas mãos num emprego temporário, mas que continuou a assombrar-lhe os pensamentos, como uma história escrita a tinta invisível. E é a persistência dessas memórias dispersas que o leva a decidir pôr por escrito, ao ritmo dos pensamentos, os passos que deu para descobrir a esquiva Noëlle Lefebvre. Passos também algo vagos, mas que parecem puxá-lo... como o fio de um passado que ele mesmo esqueceu.
É algo surpreendente a forma como um livro tão breve consegue desvendar, a espaços, complexidades insuspeitas, não só nas linhas do caso, que começa por evocar o enredo de um policial para se converter depois numa demanda mais intimista, mas sobretudo na cadência das palavras e na forma como reflectem a falibilidade da memória. Narrada maioritariamente na primeira pessoa, oscila entre diferentes momentos e registos, sem nunca perder a componente introspectiva que torna o texto mais pausado, é certo, mas torna também mais próxima a alma do protagonista.
Maioritariamente na primeira pessoa, porque, a determinada altura, a perspectiva altera-se e o fantasma procurado torna-se o fantasma que contempla. Não há verdadeiramente uma razão para isto, o que deixa uma certa curiosidade insatisfeita. Mas há principalmente uma complementaridade natural, em que também este novo ponto de vista vem acrescentar outras memórias e outros esquecimentos. As lacunas de Jean Eyben não são únicas, afinal. Talvez sejam parte da própria natureza humana. E essa pertença, essa naturalidade, são algo muito evidente em todo o texto.
Nem sempre é fácil compreender estas personagens, até porque uma das partes cruciais do livro é a existência de lacunas - e existem, de facto. São múltiplos os reencontros com as memórias e as manifestações do esquecimento, o que significa que faz sentido que nem tudo seja explicado. E, sim, ficam perguntas sem resposta, o que faz com que as personagens sejam também, em certa medida, incognoscíveis. Mas o essencial está lá - a persistência da memória e a luta contra o esquecimento. E não será isso o que verdadeiramente move o protagonista?
Breve, mas surpreendentemente complexo, ambíguo, mas fascinante nas suas deambulações. E surpreendente, ainda, no seu equilíbrio entre os mistérios de um desaparecimento e os mistérios interiores da memória e das suas transformações. Singular em muitos aspectos, e sempre uma boa leitura.
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