terça-feira, 18 de maio de 2021

O Mistério da Estrada de Sintra (Eça de Queirós e Ramalho Ortigão)

É durante uma passagem aparentemente inofensiva pela estrada de Sintra que um médico e o seu amigo se veem subitamente projetados para uma intriga de proporções indecifráveis. Sequestrados por um grupo de mascarados, são conduzidos a uma casa em local não identificado, onde se deparam com um cadáver cuja morte é não só um mistério, mas também causa da proteção de muitos segredos. Inicia-se assim um enredo narrado a muitas vozes - todas intervenientes, de algum modo, no drama - em que tudo converge para uma derradeira revelação que tem de ser conhecida. Mas não de todos.
Descrito como o primeiro policial da literatura portuguesa, este é um livro em que múltiplas facetas sobressaem, a começar, desde logo, pelo registo dramático e misterioso que acompanha toda a narrativa e pela estrutura por ela assumida. Narrado sob a forma de cartas escritas pelos diferentes intervenientes ao redator do Diário de Notícias, o enredo vai assumindo diferentes formas, conduzidas ao ritmo das suspeitas das diferentes personagens e das diferentes emoções que as circunstâncias lhes despertam. Da (relativa) serenidade estoica do médico aos rasgos de dramatismo do mascarado alto, da justa indignação de Z ao espírito de sacrifício de A. M. C., há, ao longo deste livro, toda uma sucessão de estados de ânimo diferentes, que fazem com que cada faceta assuma um tom distinto e com que a totalidade se torne mais complexa e mais intrigante.
Sendo certo que, tal como o título indica, é sobretudo um mistério, não deixa, ainda assim, de ter outros elementos misturados. A identidade do morto não é apenas o enigma: está na base de uma dramática história de amor e de adultério que serve de base a uma bastante exaltada crítica social - ainda que moralmente ambígua, dadas as circunstâncias. A situação do sequestro faz com que uma das personagens entre em contacto com um adepto do espiritismo, o que dá origem a uma curiosa divagação sobre assombrações e espíritos. E a descoberta do culpado surge na senda de um desenrolar de paixões dramáticas e exaltadas, que chegam a suscitar até alguns momentos de curiosa emoção.
Há, na verdade, tantas figuras envolvidas que acaba por se ficar com a sensação de que qualquer delas bastaria para protagonizar uma história. Ficam, por isso, algumas ambiguidades, sobretudo sobre Rytmel e a mulher que tantas suspeitas despertou, mas também sobre o passado das figuras que gravitam em torno da condessa. Claro que, não sendo aspectos essenciais do drama principal, não são verdadeiramente cruciais para a narrativa. Mas, tendo em conta a forma como tudo termina, fica também a sensação de que parte da força destas personagens acaba por passar para segundo plano.
Descrevem-no os autores, no prefácio, com sendo "execrável". Esta que vos escreve permite-se discordar. Pois, com um estranhamente fascinante labirinto de mistérios, intrigas, amores e desafios às normas, cativa tanto pelo que tem de dramático, como pelo que as múltiplas vozes parecem deixar por contar. Singular e curioso, um livro surpreendente.

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