Desde que presenciou um homicídio no parque de estacionamento, Hèctor Amat começou a ter ataques de ansiedade. Ataques esse que trouxeram ao de cima as suas inseguranças mais profundas. Agora, sente que precisa de ter a sua psicóloga na primeira fila do teatro para continuar a desempenhar o seu papel na peça em que é o protagonista. Quanto ao crime, lembra-se de muito pouco e também essa falta de memória o atormenta. Entretanto, vai conversando com a sua terapeuta, imaginando que, tal como a sua personagem em Terna é a Noite, talvez possa vir a apaixonar-se por essa mulher. Mas não é estranho que a sua psicóloga pareça ter todo o tempo do mundo para ele, ao ponto de o receber todos os dias e de ir todas as noites vê-lo ao teatro?
Apesar de ter como ponto de partida um crime, este é um livro onde os mistérios são de uma natureza diferente. Não importa quem matou ou porquê, sendo essas, aliás, as respostas mais fáceis, mas antes de que forma o sucedido moldou a vida e o estado mental do protagonista. Assim, a grande pergunta não é quem matou, mas antes, o que foi que aconteceu que fez com que Hèctor não conseguisse lembrar? E é a partir daí que todo o enredo se desenvolve.
O que acontece, portanto, é que os sentimentos, pensamentos e demónios interiores de Hèctor (e não só) acabam por ser tão relevantes como os verdadeiros acontecimentos. As conversas que tem com Eugènia, o que descobre, mas também o que pensa que está a acontecer, e a forma como avalia o seu papel de actor, a sua ligação às pessoas, o próprio raciocínio que o move a decisões inesperadas... Há, em todos estes elementos, um percurso mental que acaba por ser tão ou mais importante do que as coisas que de facto faz - no palco, na rua ou num quarto de hotel.
E depois, subitamente, a história muda. Passa a ser Eugènia o centro da narrativa e a tal estranheza do seu comportamento começa a ser, então, explicada. Explicada de uma forma que complementa o ponto de vista de Hèctor, traçando um retrato diferente da terapeuta, que, além de, por vezes, contradizer as opiniões de Hèctor, levanta uma questão muito interessante, de como a doença se entranha também nos que deviam ser os cuidadores.
Ora, tudo isto converge para um ponto em que todas as possibilidades se insinuam. Hèctor toma uma medida que, à partida, deveria ter consequências. Eugènia tem os seus motivos para se ter posto na posição em que está. E, a partir daqui, tudo pode acontecer. É neste ponto que muito fica em aberto, pois o autor escolhe encerrar a história deixando à imaginação do leitor todas estas possibilidades. Fica, por isso, uma sensação de curiosidade insatisfeita por, depois de uma tão detalhada viagem aos meandros da mente das personagens, o que acontece a seguir ser deixado por dizer. Ainda assim, não deixa de fazer um certo sentido. Criou-se, de certa forma, um equilíbrio. A partir daí, todos os caminhos são possíveis.
Não é propriamente uma leitura compulsiva. Não o poderia ser, com tão intrincadas teias a formar-se na mente das personagens. Mas é, ainda assim, estranhamente envolvente. E, na forma como mergulha nas profundezas do pensamento, partindo do que poderia ser um mistério para explorar um tipo diferente de revelação, não deixa de ser uma boa e interessante surpresa. E uma boa leitura.
Título: A Terapeuta
Autor: Gaspar Hernàndez
Origem: Recebido para crítica
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